Sem conhecer nada sobre vinhos, ela ajudou a recuperar "o lugar das vinhas mais bonitas de toda a região de Chianti!"
Arnaldo Grizzo e Eduardo Milan Publicado em 23/12/2018, às 17h00
Descoberta. É assim que muitas vezes o vinho e a arte se mostram diante dos nossos olhos. Como uma descoberta. E foi assim para Lorenza Sebasti, proprietária do histórico Castello di Ama. Lorenza descobriu o vinho “tarde”. Segundo ela, nem mesmo seu pai – que havia comprado a propriedade nos anos 1970 em sociedade com amigos – era um apaixonado pela bebida. Ela, porém, apaixonou-se primeiramente pela bela paisagem do Castello, localizado no coração da Toscana, em Gaiole in Chianti, durante as férias quando era adolescente.
O vinho veio logo em seguida, juntamente com o relacionamento com Marco Pallanti, enólogo da propriedade, que se tornaria seu marido e com quem ela teria três filhos. Hoje, ambos dirigem o Castello di Ama. Sua paixão e seu perfeccionismo também a levaram ao mundo da arte. No fim do último milênio, Pallanti e ela criaram o projeto “Castello di Ama per l’Arte Contemporanea” e passaram a convidar artistas de renome internacional para criar obras que não somente conversassem com a paisagem de Ama, mas fossem inspiradas pelo local. Assim, gente do calibre de Michelangelo Pistoletto, Daniel Buren, Giulio Paolini, Kendell Geers, Anish Kapoor, Chen Zhen, Carlos Garaicoa, Cristina Iglesias, Nedko Solakov, Louise Bourgeois, Ilya e Emilia Kabakov, Pascale Marthine Tayou, Hiroshi Sugimoto e Lee Ufan passaram um tempo no Castello para se inspirar e produzir uma “interferência”.
Hoje, vinho e arte estão na essência do Castello di Ama e, como no conceito de obra aberta de Umberto Ecco, estão lá à mercê da interpretação de quem interage com eles.
Qual a história do Castello di Ama?
Meu pai comprou Castello di Ama com três amigos no começo dos anos 1970. Mas estava tudo em estado de abandono. Decidimos voltar a fazer uma produção de qualidade, pela qual a propriedade era conhecida antes, descrita pelo grão-duque da Toscana como o lugar das vinhas mais bonitas de toda a região de Chianti. Lá se produzia vinhos desde 1770, eram importantes, vendidos na Inglaterra, vinhos de guarda. Com essa herança, decidimos reinvestir nos vinhedos e na cantina. Fazer uma “cantina château”. Um dos sócios foi muito visionário na época. Ele foi procurar amizade e conselhos com alguém.
E a sua história com o vinho, como começou?
A minha história pessoal nasce com um encontro com Ama em umas férias. Foi para lá com 15 anos e: “Oh, este é o lugar da minha vida”. É minha “raison de vivre”, tudo é ao redor de Ama. Depois de quase 40 anos, tenho a mesma lucidez e a mesma paixão. Tentei passar isso para os meus filhos, mas se eles têm ou não a mesma paixão, não me importa, é a minha vida.
Mas sua família tinha ligação com o vinho?
Nada. Ninguém. Nem meu pai. O vinho lhe interessava, mas não era importante. O vinho para mim foi depois de Ama. Descobri Ama e depois estudei o vinho, com o mestre Marco, que me ajudou tanto. E depois fui a Bordeaux estudar. E, em seguida, como uma missão, andei por diversas vinícolas, para conhecer, conhecer, conhecer, visitei muitíssimas, e, para mim, era muito importante a busca pela qualidade. O vinho era uma emoção grandíssima, mas no alto nível. Sempre acreditei que poderia fazer melhor. Nos anos 1980, já se fazia muito bem, os vinhos eram muito bons, como em 82, 83, 85, 88, mas eu me lembro que dizia: “Devemos fazer melhor”. E Marco é extraordinário, pois ele faz vinhos sempre mais puros, mais precisos. Digo que a sua enologia é inspirada em [Henri] Jayer. Você precisa conhecer bem a enologia para fazer menos. Menos é mais. Não há uma pretensão, uma exasperação, é como um chef que respeita cada vez mais a matéria-prima.
E o relacionamento com Marco, como começou?
A relação com Marco foi no trabalho. E permaneceu por muito tempo uma relação de trabalho. Depois nos casamos, tivemos três filhos, uma família belíssima... Mas nossa relação sempre foi uma boa troca de pontos de vista. Ele tem uma visão muito metódica e precisa, e a minha é seguramente mais passional, mas também mais visionária, e isso lhe deu os instrumentos para arriscar. Devo dizer que, de nossa parte, houve uma fase sofrida de foco na busca pela qualidade, pois nós éramos integralistas e o mundo estava procurando o storytelling, o marketing. Nos anos 2000, estávamos um pouco fora do tempo, ou íamos muito à frente ou íamos de volta.
Mas vocês já tinham um grande ícone que era L’Apparita, não?
Gosto de falar de L’Apparita, um vinho importantíssimo para nós, que fez 30 anos. Lembro-me daquele dia da degustação em Zurique, em 1991, com jornalistas importantes. Eu tinha 26 anos e já estava com as rédeas da cantina. Não pensava que pudesse ¬ car entre os 100 Merlots do mundo, depois entre os melhores 20. Mas Marco era muito consciente de que tinha um grande vinho e que poderia competir. Quando vencemos, para mim foi uma emoção grandíssima, descobrir que tinha um cavalo vencedor, mas logo, como uma mãe que defende o próprio filho, pensei no Chianti Classico, a identidade que tínhamos.
Como foi lidar com isso?
O mundo queria o Merlot e tínhamos Merlot plantado em outras vinhas. Para nós, fazer um L’Apparita de todos os vinhedos seria fácil, fazer 50 mil em vez de 7, 8 mil garrafas. Hoje rio da Joana d’Arc que eu era, pois era revolucionária e passional. Mas digo: “Este vinho me representa?” Em 30 anos, o vinho é o mesmo, não mudou. E isso para mim é lindo. L’Apparita permanece um ícone do vinho italiano, é preciso, do nascimento à ultima safra, não nos comprometemos, permaneceu o mesmo, é uma obra-prima bela que se mantém fiel à origem. Me vem à mente alguns belos crus da Itália, que são um patrimônio, com produtores importantes que mantiveram sob custódia os valores da vinha. Com L’Apparita, fizemos isso.
Mas como nasceu esse Merlot?
Graças a Patrick Léon. Nos primeiros anos, ele fez a coisa mais certa a se fazer, disse: “Experimente com outras variedades. Para entender o Sangiovese talvez seja preciso uma variedade complementar”. Inserir esse varietal foi um experimento. No caso de L’Apparita foi uma sorte excepcional, pois desde o primeiro ano esse vinho já fez “uau”. Também plantamos Pinot Nero em alta densidade em 1984. Marco diz sempre: “O Pinot Nero foi a tentativa mais interessante para aprender a vinificar o Sangiovese”. A delicadeza do tanino da Pinot, a sensibilidade, permitiu-nos trabalhar nosso Sangiovese de modo muito diferente dos outros. Se me pergunta: ‘qual a sua contribuição à enologia do mundo?’ Acho que demos ao Sangiovese uma nobreza que antes não havia. Depois de nós, todos fizeram. Isso me dá muito prazer, foi uma escola que Marco experimentou, trabalhou com mente aberta e seguindo o conselho de Patrick Léon.
Vocês replantaram muitas vinhas?
Os vinhedos dos anos 1970 estavam mal plantados, com materiais diversos, com um Sangiovese um pouco bastardo. Então fizemos uma grande seleção massal interna e, a partir de 1996, replantamos a vinha. Nesses 20 anos, replantamos 50 hectares de vinhas (temos 75 hectares). Marco escolheu fazer esses terraços para ter a melhor exposição, a melhor homogeneidade de maturação e isso significou 70 ou 80 mil euros por hectare. Foi o investimento da nossa vida (devo ainda devolver mais da metade ao banco), mas precisávamos trabalhar, pois a vinha foi sempre o centro do nosso trabalho. Temos obsessão pela vinha.
Isso de certa forma levou ao que se tornou Chianti Classico Gran Selezione atualmente?
Com seis anos de presidência do conselho de Chianti Classico, Marco nos presenteou com esse resultado. Ainda é um pouco mal comunicado, pois o jeito mais fácil de explicar Gran Selezione é que são vinhos produzidos em vinhedos da propriedade, vinhos de vinhateiros, que nascem naquela terra. Algo simples no mundo, mas em Chianti não era. Todos os vinhos de Ama são Gran Selezione, pois todos nascem de nós mesmos, mas acreditamos ter aberto uma estrada para o consumidor. Nós não tínhamos a experiência do vinho com o território, que em algumas regiões do mundo é muito banal, normal. Na Itália, acho que tirando Barolo e Barbaresco, não havia esse conceito. Essa experiência da vinha com essa identidade era algo ainda novo como conceito por aqui.
O que acha da proposta das subdivisões de Chianti Classico?
Não tenho uma resposta precisa. Acho que tudo o que tem sido feito até agora em termos de Gran Selezione é correto. Espero que eles possam ir se espalhando pelas comunas, mas, ao mesmo tempo, sei como os italianos são e pode se tornar 100 lugares. Isso seria difícil de comunicar ao consumidor. O mundo é grande, o mapa da Itália já é bastante. Talvez devesse ter duas ou três subdivisões, mas não mais, porém quando você abre a porta...
E quando nasceu o projeto de arte?
Devo dizer que a arte não é algo de segundo plano em Ama. Hoje metade da minha experiência é viver esse projeto. O desfaio para mim, cada vez que convido um artista, é sentir o lugar, fazer com que ele se apaixone pelo lugar e queira deixar um traço de seu trabalho, mas um traço inspirado no local. E de certo, modo nosso curador (Philip Larratt- -Smith), cuja sensibilidade é riquíssima, entende que estamos a serviço desse lugar e não devemos ser os protagonistas. O lugar é que fala. Esses artistas estão nos presenteando cada um com uma peça de um grande mosaico que está se completando. Há diversas experiências com arte em vinícola e locais especí¬ cos, mas a força deste diálogo com o lugar, dito pelos artistas, em Ama, é único, é uma parte criativa amarrada ao lugar. Não vou fazer uma bela escultura e decidir onde a coloco. Não, o lugar leva você a escolher algo da sua arte que se modifoca pelo lugar.
Como é essa relação com os artistas?
O trabalho de Louise Bourgeois, extraordinário, foi meu turning point. Vi tudo o que ela fez, sou obcecada pelo seu trabalho, e aquela pequena escultura, naquela cisterna... Esse encontro é extraordinário. Cada ano tentamos seguir adiante com este projeto com a sensibilidade de encontrar artistas comprometidos, que entram nesse jogo. Lembro-me de Anish Kapoor, que é um gigante, mas um dos medos que tive era de pegar uma de suas esculturas e colocar no jardim. Não queríamos isso, e dissemos isso. E o trabalho dele na igreja é emocionante. Eles e as obras entram em diálogo com o lugar. No final, nosso papel é de custódia, não somos protagonistas, pois o local permanece como protagonista.
Antes vocês não recebiam muitos visitantes...
A partir de Louise Bourgeois entendi que precisava dividir isso com a comunidade. Temos visitas, mas sou muito integralista. Então, as visitas são guiadas em pequenos grupos e os monitores são formados para explicar os trabalhos. Não em um senso didático, porém de experiência, de deixar o silêncio diante da arte. É uma visita informativa, mas de experiência, pois a arte, como o vinho, é uma obra aberta. Ela [arte] permanece desconhecida, e o que ela dá, é o que encontra. Se você estiver desinteressado, pode ver a Mona Lisa, e não muda nada. E esse encontro é um belo desafio, sempre há algum tipo de revelação.