Como um casal de enólogos mudou o conceito sobre os tintos do Douro

O casal Jorge Moreira e Olga Martins apostou em vinhas de face norte para gerar vinhos mais frescos e elegantes

Por Arnaldo Grizzo Publicado em 14/07/2016, às 11h00 - Atualizado em 16/06/2019, às 09h56

Dá para imaginar o desgosto dos pais de Olga Martins ao avistarem uma quinta caindo aos pedaços na cidadezinha de Provesende, ao longo de uma encosta no vale do Pinhão, no Douro, onde só se chegava com um veículo 4x4. “A vinha velha era muito boa, mas o resto da quinta era uma desgraça. Uma casa em ruinas, toda podre, caída, com muito mato. Era uma visão um bocadinho assustadora. Quando nossa família foi lá pela primeira vez, entrou em pânico, pois tínhamos pedido dinheiro ao banco e gasto tudo o que tínhamos para comprar um coisa que era uma loucura”, admite Olga.


Poeira, projeto pessoal de Olga e Jorge, começou em 2001. “Tínhamos pedido dinheiro ao banco e gasto tudo o que tínhamos para comprar um coisa que era uma loucura”, admite Olga

O casal Jorge Moreira e Olga Martins apostou em vinhas de face norte para gerar vinhos mais frescos e elegantes no Douro

Apesar de esta talvez ser a maior loucura da filha, não era a primeira. Anos antes, a menina, que “era completamente da cidade, mimada, dos papais” (“Não podia ver pó ou uma aranha que era ‘Ai’”, admite), decidiu trancar o curso de química na universidade e optar por enologia – pela qual se interessou depois de passar alguns dias estudando para os exames ao lado de uma amiga que cursava a matéria (“No fim, minha amiga virou professora, nunca fez um vinho na vida”, ri).

“Quando disse que ia mudar de curso, minha mãe quase caiu da cadeira. Ficou em pânico, pois eu já estava no segundo ano”, conta. A mãe de Olga ficou indignada, pois, primeiramente, enologia era um curso de menor prestígio. Mais do que isso, a sábia genitora levantou a questão: “Onde vai arranjar emprego? Todo mundo sabe que o mundo do vinho está destinado às famílias dos herdeiros, dos filhos da Dona Antónia, dos Symington... O que você, filha de um bancário e de uma professora, que nunca teve um pedaço de terra sequer, vai fazer?”

Olga admite que parte da preocupação da mãe estava certa. Ela não sabia nada desse mundo no qual queria entrar. Sua família, que havia vivido por quatro gerações em Angola, não era de vitivinicultores. Ela decidiu, então, estagiar. Candidatou-se a uma oportunidade na prestigiada Quinta do Noval. “Fui toda arrumadinha para a entrevista e disseram: ‘A menina quer trabalhar na vinha?’ ‘Quero!’ ‘Vestida assim? Tem roupa velha?’”, recorda Olga, que conseguiu o estágio (“Não ganhava nada, só queria aprender”), fez sua primeira vindima em 1998 e se apaixonou definitivamente pelo vinho.

Um novo conceito no Douro

Do Noval, ela foi para a França e, por fim, voltou à Portugal trabalhar no Lavradores de Feitoria. Nesse ínterim, conheceu seu marido, Jorge Moreira, então enólogo da Real Companhia Velha, mas que, como ela, não vinha de uma família ligada ao vinho. Apesar disso, ambos tinham vontade de fazer algo novo. “Quando se trabalha para uma empresa, temos que seguir uma linha, um estilo. Queríamos algo que tivesse a nossa imagem”, diz Olga.

“O vinho tinto do Douro ainda estava no início e era uma versão seca do Vinho do Porto. Muito intenso, muito encorpado, com muita estrutura. Queríamos o oposto disso”, lembra. Jorge e ela, então, já tinham ideia do que deveriam fazer: “Queríamos encontrar uma vinha numa zona boa, quente, com sol, bom terroir, mas com exposição norte, contrariamente ao que as pessoas procuravam”.

Assim decididos, em 2001, encontraram uma quinta próxima a uma propriedade da Taylor’s. “Como era virada ao norte, eles não ligavam muito. Então conseguimos comprá-la. Era o grande passo da nossa vida”, admite.

O casal precisou restaurar a quinta. “A vinha velha era muito boa, mas o resto da quinta era uma desgraça. Uma casa em ruinas, toda podre, caída, com muito mato. Era uma visão um bocadinho assustadora”, lembra Olga

Mesmo com a desconfiança da família, Jorge e Olga foram em frente, incentivados especialmente por Dirk Niepoort – um dos líderes da revolução dos vinhos tintos do Douro. “Comprem a vinha, façam o vinho que eu vendo”, teria dito o amigo. Em 10 hectares, três eram de vinhas velhas – as únicas coisas realmente boas do lugar. O resto era quase tudo “poeira” na Quinta da Terra Feita, como era chamado o local até então. “No dia em que convidamos as nossas famílias para ver o que compramos, meu cunhado disse: ‘Vocês podem chamar de Quinta do Poeira, porque isso é poeira por todo lado’. Achamos que ia funcionar. Era um nome fácil e tinha o sentido de terra, mineralidade, que queríamos dar ao vinho. Então ficou”, conta Olga.

Como o que valia a pena eram as vinhas velhas, diferentemente de outras empresas que começam com vinhos básicos, o projeto Poeira partiu com um vinho de alta gama logo em 2001. No ano seguinte, o Poeira foi considerado uma das 10 melhores novidades da Vinexpo, em Bordeaux e, desde então, vem sendo considerado um dos melhores vinhos de Portugal por inúmeros críticos mundo afora.

“Há 12 anos não se falava de vinhos virados ao norte, de vinhos frescos no Douro. Era só concentração, intensidade, exuberância. Nunca elegância, acidez, frescura eram usadas para descrever um vinho do Douro. Acho que nisso Poeira foi pioneiro. São vinhos que gritam menos, que impressionam menos no primeiro impacto, que não nos deixam extasiados, mas são de uma complexidade que deve ser descoberta aos poucos, que nos faz passar um tempo com ele”, acredita Olga.

Segundo ela, a longevidade dos tintos durienses sempre foi calcada no tanino e isso não estava certo. “Quando o vinho está sustentado no tanino, há um desequilíbrio. É preciso esperar cinco anos para o tanino amaciar, mas, quando se espera, a fruta também cai”, aponta. Para eles, a base do vinho deveria ser a acidez. “Um vinho que tem muita acidez pode ser equilibrado desde o primeiro dia”, garante.

Ao sabor do terroir e da safra

O segredo da elegância e do frescor dos vinhos Poeira está, em parte, na exposição norte de seu vinhedo. “Temos muito calor, mas, com a vinha virada ao norte, não há sol direto. Há calor, maturação, nossos vinhos têm álcool, mas conseguirmos uma maturação ligeiramente mais lenta do que a face sul e, com isso, temos uma paleta de aromas mais complexa”, diz Olga.

“Não vendemos madeira. Dá muito trabalho ter uma vinha no Douro, então qual a lógica de ter uma uva cheia de caráter para depois escondê-la com madeira?”, pergunta Olga

Outro fator seria a pouquíssima intervenção e o ecletismo dos dois enólogos. A cada ano, o vinho muda ligeiramente apesar de manter o estilo e, por isso, também muda o desenho no rótulo – que, curiosamente, representa um tubo de aspirador de pó. “Se o ano é mais quente, o vinho vai mostrar que o ano é mais quente. Não forçamos a vinha a nada. Não é uma Coca-Cola, sempre igual. Todo ano é diferente. Em um ano, usamos 50% de madeira nova, noutro, 20%. Um ano fica em madeira por 12 meses, noutro, oito. Todos os anos tentamos fazer o melhor daquela vinha. E tudo é feito para que a uva se expresse da melhor maneira, mas sempre com esse fio condutor de frescura, acidez, elegância”, garante a enóloga, que, diante disso, é extremamente parcimoniosa no uso das barricas: “Não vendemos madeira. Dá muito trabalho ter uma vinha no Douro, então qual a lógica de ter uma uva cheia de caráter para depois escondê-la com madeira?”

O foco na acidez é realmente importante, tanto que Olga conta que uma das castas mais relevantes nesse sentido, especialmente para fazer o segundo vinho da propriedade, o Pó de Poeira, é o Souzão. “Na maior parte das vezes, ela é usada para dar cor. No nosso caso, foi usada por causa da acidez”, aponta, recordando que, tirando uma parte de suas vinhas velhas, quase todas as outras precisaram ser replantadas, por isso seu segundo vinho só nasceu em 2006.

Apesar de não virem de famílias ligadas ao vinho, Jorge e Olga agora parecem destinados a fincar suas raízes na terra. “Não temos o peso de seguir com algo, correr o risco de perder o que é da família há gerações. Somos descontraídos, fazemos o que queremos. Mas é curioso, pois, quando dizem que alguém vendeu uma quinta, fico muito triste, porque, para mim, é muito importante um dia passar isso para meus filhos”, diz.

E talvez o futuro da Quinta do Poeira reserve ainda mais glórias, pois segundo Olga, Margarida (de 6 anos), sua filha com Jorge (ele tem um filho, Miguel, de 13 anos, do primeiro casamento), apesar da inocência de criança, tem um pouco da alma de uma das pioneiras do vinho português. “Ela vai ser a nova Dona Antónia, pois é rigorosa, gosta de tudo direito e é um bocadinho autoritária”, ri a mãe, lembrando que a filha, aos 2 anos, já queria falar inglês para poder entender as conversas dos visitantes. Ela conta ainda que, durante um jantar longo com convidados e clientes, a menina, ensonada, perguntou por que a mãe não podia levá-la para a cama. Ao ouvir de seu irmão que os pais ainda estavam ocupados, disparou reticente: “Ok, tudo pelo vinho...”.

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