General ou vitivinicultor

Louis Michel Liger-Belair revela as particularidades de uma família que se dividiu entre o exército e a vitivinicultura e tem o monopólio do mítico vinhedo de La Romanée

Redação Publicado em 16/04/2012, às 12h01 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h48

A história da família Liger-Belair na Borgonha remonta ao século XIX, quando, em 1815, Louis Liger-Belair, um general de Napoleão, adquiriu o Château de Vosne-Romanée. Desde então, a família se alterna entre a vitivinicultura e o exército francês. O pai de Louis Michel Liger-Belair também se tornou um general. O próprio Louis Michel fez o serviço militar, mas decidiu por outro caminho.

Além do viés militar da família, a influência napoleônica também quase acabou com suas propriedades (eles chegaram a ter 60 hectares de terras na Borgonha), pois, devido ao código civil instituído na época de Napoleão, em 1931, 10 filhos precisaram dividir seus bens depois da morte dos pais. Assim, as propriedades vão à leilão e dois irmãos (entre eles o avô de Louis Michel) decidem se associar para comprar os vinhedos de La Romanée, Les Reignots e Les Chaumes.

Nos anos de 1980, o jovem Louis Michel, que morava na Alemanha com os pais, decide que gostaria de viver na Borgonha. Depois de estudar engenharia, o pai lhe autoriza e ele monta, em 2000, o Domaine du Comte Liger-Belair, que possui o monopólio dos vinhedos Grand Cru de La Romanée, colado em Romanée-Conti, entre outros hectares em denominações de renome.

"Não produzimos para o mundo todo. Quanto mais mostramos o vinho, mais frustramos as pessoas, pois produzimos apenas poucas garrafas"

Os vinhedos estão na sua família há quanto tempo?
Dois séculos. Chegamos em Vosne-Romanée em 1815. Sou a sétima geração depois de Louis Liger-Belair. Ele era um general de Napoleão. Na época, ser um oficial era muito diferente de hoje. A propriedade da família cresceu no século XIX, tendo 60 hectares. Isso parece nada no Brasil, mas, na época, era um dos maiores proprietários da Borgonha. Estávamos no lado de Côte de Nuits, focados em vinhos de alta qualidade. Tínhamos Chambertin e Clos Vougeot, adquirimos La Romanée, La Tache, Richebourg, Échezeaux...

Mas em algum ponto a história encolheu...
Ainda tínhamos parte disso no começo do século XX, com 24 hectares. Mas tivemos grandes problemas de administração nos anos 1930. Meus bisavós faleceram e deixaram 10 filhos. De acordo com a lei da época, todos os membros de sucessão precisavam ter mais de 21 anos. Dois não tinham. A solução: ou esperar terem 21 ou vender tudo. Três irmãos disseram: "Não podemos esperar". Então, venderam tudo. Foi o pior período para vender vinhas. Em 1930, havia coisas loucas acontecendo na Europa, Lei Seca nos Estados Unidos, crise de crédito, e também foi pouco antes da AOC se tornar lei na França. Antes era comum misturar vinhos de diversos lugares da França para fazer Borgonha, Bordeaux ou o que quer que seja. Era realmente difícil vender vinho naquela época. Mas tudo caminhou para chegar aonde estamos agora.

"O vinho é um produto de luxo. Uma bolsa Hermès é artesanal. O vinho é artístico. Mas uma bolsa nunca some. O problema com o vinho é que cada vez que você abre a garrafa para apreciá-lo, ele acaba"

O primeiro representante de sua família na Borgonha era um general e seu pai também. Qual a relação da família com o exército?
Quando você vê o que aconteceu nas últimas sete gerações, percebe que ou você está no negócio do vinho, ou está no exército. Meu pai era um general. Se você está no exército, é para ser general. Meu avô era general. Outros eram apenas vitivinicultores. O exército francês é bem pequeno agora, então, não estava seguro de que seria um general e escolhi ser vitivinicultor [risos]. Não decidi ser vinicultor logo de cara, decidi morar em Vosne-Romanée. Quando tinha oito anos, vivia na Alemanha, numa cidade bonita chamada Baden Baden. Na época, havia diversas tropas de americanos, franceses, russos. Meu pai era um alto oficial e tinha uma bela casa, mas não tinha com quem brincar. Passava todos os meus feriados no Château em Romanée, pois, na época, oficias não ganhavam tanto dinheiro e o vinho não dava muito dinheiro, então não podíamos ir esquiar em Côte d'Azur [risos]. Sendo assim, ia para o Châteaux e gostava de ficar lá. Meu pai, contudo, não podia me dar o Château, pois precisava pagar minhas irmãs já que, segundo a lei francesa, você é obrigado a dar exatamente a mesma quantia para cada filho. Ele disse: "Você pode ter a chave da casa quando se tornar engenheiro. Se não for engenheiro, não terá a chave". Fiquei satisfeito, pois, quando decidi fazer isso nos anos 1980, o mercado de vinho não era tão bom. Mas acredito que você precisa ser feliz com o que faz.

#Q#

É ótimo ter a oportunidade de poder degustar seus vinhos no Brasil.
Não produzimos para o mundo todo. Quanto mais mostramos o vinho, mais frustramos as pessoas, pois produzimos apenas poucas garrafas. Então, meu principal trabalho é educar. Fazemos 25 mil garrafas em um bom ano. 25 mil garrafas de 20 vinhos diferentes. Na Borgonha, os monges do século XV provavam os vinhos e diziam que um solo era diferente do outro. Isso criou parcelas muito pequenas. Se você compra vinhedos em vários lugares e quer misturar tudo, só pode chamar de Bourgogne Rouge. Pode misturar um Chambolle-Musigny com um Vosne-Romanée, mas tem que chamá-lo de Bourgogne Rouge. Não é uma boa solução.

Isso é uma dificuldade da Borgonha?
Nos Village, você mistura tudo e tem grandes propriedades. Depois, tem os Premier Cru. Mas, se quiser colocar o nome do Premier Cru, tem que ser um Single Vineyard. É mais fácil vender um Vosne-Romanée 1er Cru "Les Suchots" do que um Vosne-Romanée 1er Cru. Se eles chamaram "Les Suchots" assim e o outro vinhedo como "Aux Reignots", é por que há uma diferença. Se você os misturar, não segue o que os monges disseram. Isso é muito complicado às vezes. Mas não tanto, pois as classificações são simples, há Bourgogne, Village, Premier Cru e Grand Cru.

Bordeaux é mais simples nesse sentido?
Em Bordeaux, você tem uma classificação no Médoc, outra em Sauternes, outra em Saint-Émilion, outra em Graves. O que é simples lá é que você tem a combinação de marca com a denominação.

Bordeaux tem tido uma época de grande crescimento em valor. Acha que é possível continuar assim?
Tenho ido aos leilões e os preços de todos os Premier Cru de Bordeaux caíram de 25% a 40% em relação ao ano passado. Mas Borgonha está subindo. Por quê? A razão é simples: você precisa de um pallet de Lafite 82? Basta pedir. Mas você não vai achar garrafas de Romanée-Conti. Não existe raridade em Bordeaux. Quando se faz 300 mil garrafas por ano de Mouton Rothschild, isso não é raro. Fazemos 3 mil de La Romanée. Isso é raro. Não posso fazer mais, pois temos só 0,852 hectare. Se quisermos ser maiores, temos que comprar meu vizinho, Romanée-Conti [risos]. Não estou certo de que ele ficará feliz, mas lá não faria La Romanée, faria Romanée-Conti. Em Bordeaux, se quiser você fazer mais vinho de uma marca sua, compra o Château vizinho. Pode-se fazer, pois é uma marca. Você não está vendendo Pauillac, está vendendo uma marca. É fácil. Há muitos Châteaux que aumentaram suas superfícies.

"Não existe raridade em Bordeaux. Quando se faz 300 mil garrafas por ano de Mouton Rothschild, isso não é raro. Fazemos 3 mil de La Romanée. Isso é raro. Não posso fazer mais, pois temos só 0,852 hectare"

Você está produzindo no Chile agora. Está usando o mesmo conceito da Borgonha?
Exatamente. Agora estamos fazendo Chardonnay e Cabernet Sauvignon e a ideia é planejar a melhor área para eles. No Chile, podemos "jogar" com a altitude. Para o Pinot Noir, por exemplo, estamos indo muito próximos a uma área nebulosa, pois precisamos de nuvens. Se tivermos a luz que temos em outros lugares, podemos não ter uma boa maturação. Temos que estar no limite. Por isso sei que o Pinot que produzimos lá não será excepcional todos os anos.

O tema dos clones de Pinot no Chile tem sido recorrente. Qual sua opinião?
O principal problema do Pinot chileno é o clone de origem, antes todos usavam o chamado Valdivieso. Ele foi trazido para o Chile para vinhos espumantes, não para fazer vinhos tranquilos. Agora, mais pessoas estão trazendo novos clones, mas ainda há uns problemas, pois são clones da Borgonha para maturação rápida e isso não é ideal para o Chile. Outro problema é que tudo tem que ser rápido no Novo Mundo. Você planta agora e em três anos tem que fazer uma safra de 6 toneladas; no quarto, 10 toneladas. Se você quer velocidade vá para o Nordeste do Brasil e faça duas safras ao ano. Se quiser tratar de terroir, leva tempo.

#Q#

O que é tão especial na Borgonha?
Não sabemos com certeza por que é tão diferente. Mas a Borgonha é especial. Há argila e calcário, especiais. No topo das montanhas, tem mais calcário. Na base, mais argila. No meio, onde há os Grand Cru, há níveis perfeitos de argila e de calcário. Mas você precisa ter o tamanho perfeito de calcários. É por isso que há Grand Cru e Premier Cru. Algumas vezes, no meio da montanha há um Premier Cru, pois, mesmo quando há um nível perfeito de argila e calcário, não há um tamanho perfeito das pedras de calcário. Quando se tem tudo isso, temos um Grand Cru. Por que em Beaune há mais do que em outros lugares? Acho que Beaune está entre áreas. Não é como Nuits Saint-Georges, que é mais potente. Não é como Chambolle, que é mais delicado e elegante. É uma mistura disso. É um mix dessa potência e elegância. Quando você degusta La Romanée, Romanée-Conti, ou outro Borgonha, está bebendo história, dois séculos da minha família na Borgonha... Então, temos que zelar por tudo isso. O vinho é um produto de luxo. Uma bolsa Hermès é artesanal. O vinho é artístico. Mas uma bolsa nunca some. O problema com o vinho é que cada vez que você abre a garrafa para apreciá-lo, ele acaba.

"Acho que cada vinhedo tem sua seleção própria de leveduras e, se você começa a misturar leveduras de todos os lugares na mesma vinícola, começará a fazer o mesmo vinho em todo lugar"

La Romanée fica ao lado de Romanée-Conti e parece brilhar pela finesse. Romanée-Conti parece ter mais estrutura. Isso não vem somente do solo, é uma questão de estilo?
É um estilo que damos para nossos vinhos. Não estamos longe um do outro, obviamente, mas há algumas diferenças no vinhedo. E depois também há diferenças na vinificação. O solo é parecido, mas não é exatamente o mesmo. A poda é parecida, mas não é a mesma. E por aí vai. Fazer vinho é uma sucessão de pequenas decisões e a somatória delas é que cria cada vinho como único.

Seus vinhos são biodinâmicos?
Sim. A ideia é continuar fazendo grandes vinhos onde estamos, mas precisamos proteger o solo. Vivemos dessa montanha por séculos e precisamos continuar com isso. Não podemos destruir.

Dada a elegância de seus vinhos, temos curiosidade de saber como seria um Chambolle de Liger-Belair. Você já pensou nisso?
Gostaria muito de experimentar. Meu playground é ao redor de Vosne-Romanée. Quanto mais observo, mais acho que você precisa estar perto dos seus vinhedos. Você não pode fazer vinhos em qualquer lugar. Por diferentes razões. Uma é o clima, que não é tão diferente, mas é levemente diferente. Quando há chuva leve onde está, você pode saber o que está acontecendo. Fora isso, usamos apenas leveduras naturais dos vinhedos. Acho que cada vinhedo tem sua seleção própria de leveduras e, se você começa a misturar leveduras de todos os lugares na mesma vinícola, começará a fazer o mesmo vinho em todo lugar. Essa é uma parte da resposta de por que os vinhos se parecem um pouco mais ao redor do mundo. Nós fazemos 20 vinhos sabendo que é o mesmo processo, a mesma vinificação, envelhecimento etc. Mas, no fim, são 20 vinhos diferentes.

VINHOS PROVADOS
Échezeaux 2007 - US$ 647 - 87 pontos
La Romanée 2007 - US$ 2.2235 - 97 pontos