Arnaldo Grizzo Publicado em 30/07/2020, às 17h00
Lafite era a propriedade mais lucrativa, juntamente com Latour. Ambas rendiam 100 mil libras por ano
O século XVIII foi bastante conturbado na França, especialmente em Bordeaux, mas também foi decisivo para construir não somente a reputação de seus vinhos no mundo como também todas as questões que envolvem sua produção e comércio. Foi nessa época que viveu o maior proprietário de terras de que Bordeaux já teve notícia, Nicolas Alexandre de Ségur, conhecido como Príncipe das Vinhas.
Naquela época, os negócios entre França e Inglaterra estavam sendo paulatinamente restabelecidos depois de tantas e tantas guerras. Em 1712, após de cessadas as hostilidades entre os países, um navio inglês aportou no cais bordalês com ordens de prover vinhos para a Rainha da Inglaterra. Do outro lado do canal da Mancha, a população estava cansada de tomar apenas Portos e Jerez. Era a oportunidade de que os produtores de Bordeaux precisavam.
Nascido em 20 de outubro de 1697, Nicolas Alexandre ainda era um adolescente quando assumiu o controle das propriedades do pai, Alexandre de Ségur, que, pouco antes de morrer, adquiriu o Château Lafite, em 1716. Sua mãe, Marie Thérèse de Clausel, já era dona do Château Latour – seu dote de casamento com Alexandre. Em 1718, o herdeiro dos Ségur, não satisfeito em possuir duas das mais famosas propriedades bordalesas, resolveu comprar as terras do Château Mouton (na época, pouco valorizado), que eram vizinhas ao Latour. Futuramente, essa propriedade daria origem aos Châteaux Mouton-Rothschild, Pontet-Canet e d’Armailhac.
Nicolas Alexandre de Ségur
Além disso, Nicolas Alexandre também se casou, em 1921, com Charlotte Emilie Le Fevre de Caumartin, que trouxe consigo, como dote, uma grande porção de terras chamada Calon – mais tarde ela se dividiria nos Châteaux Calon Ségur e Montrose, além de partes menores de outras propriedades de Saint-Éstèphe. Ou seja, um verdadeiro império estava sob suas mãos.
O rei e o príncipe
Com a sede inglesa pelos vinhos de Bordeaux crescendo naqueles primeiros anos do século XVIII, a riqueza e a fama do futuro Marquês de Ségur cresciam juntas. Estima-se que sua renda somente com as propriedades de Latour e Lafite alcançava algo em torno de 100 mil libras por ano (o que hoje corresponderia a mais de 1 milhão de dólares). Para se ter ideia de sua fortuna, em uma safra ruim, como em 1744, Nicolas Alexandre declarou uma renda de 272 mil libras e alegou que deveria pagar menos impostos devido à queda de seus lucros.
Propriedades que deram origem aos Châteaux Calon Ségur (acima), Latour (logo abaixo), Montrose (à direita) e Pontet-Canet (na página seguinte) pertenceram ao Príncipe das Vinhas
Vale lembrar que, naquele período, garrafas dos futuros Premier Crus da Classificação de 1855 valiam 13 vezes mais que o preço dos vinhos “comuns” de Bordeaux. Latour era considerada a “mina de ouro” do Médoc, mas, o marquês admitia que era uma propriedade mal administrada. Por outro lado, Lafite, apesar de não alcançar preços tão elevados quanto Latour, era maior e produzia mais, sendo o vinho preferido das realezas francesa e britânica na época.
O primeiro ministro britânico, Robert Walpole, por exemplo, mandou comprar uma barrica de Lafite a cada três meses durante 1732 e 1733. Mesmo a corte de Versalhes, que até pouco tempo antes vivia à base dos vinhos da Borgonha, logo se rendeu ao Lafite. Diz-se que quem introduziu o Premier Cru ao rei Luiz XV foi o Marechal Richelieu – tido como um grande hedonista. Reza a lenda que um dia, ao entrar na corte depois de longo tempo ausente, Richelieu foi interpelado pelo monarca: “Você parece 25 anos mais novo”. Ao que o marechal respondeu: “Vossa Majestade ainda não sabe que encontrei a fonte da juventude? Descobri que os vinhos do Château Lafite são licores revigorantes: eles são tão deliciosos quanto a ambrosia dos deuses do Olimpo”. Era o que bastava para Lafite estar nas taças de todo o reino.
Não é de se estranhar que Nicolas Alexandre tenha sido um dos membros mais proeminentes do parlamento de Bordeaux e, assim como grande parte das famílias ricas da cidade e arredores, dividia seu tempo entre as vinhas e Paris. Um dia, já favorecido pelas indulgências reais, estava na corte quando Luiz XV ficou admirado com o brilho dos botões de seu casaco. O monarca acreditava que as pedras eram puro diamante e ficou perplexo quando foi informado que elas eram, na verdade, rochas cortadas e lapidadas dos vinhedos de Nicolas Alexandre. Aí nasceu a alcunha de “Príncipe das Vinhas”.
O Château Latour permaneceu com os descendentes de Nicolas Alexandre de Ségur até 1963
O coração de Calon Ségur
Apesar de suas principais propriedades serem Latour e Lafite, o Marquês de Ségur dizia que seu coração estava em Calon. Daí acredita-se que tenha surgido o coração no rótulo do vinho do Château Calon Ségur. O nome Calon refere-se à Saint-Éstèphe de Calones, como era chamada a cidade de Saint-Éstèphe ainda no século XIII. Calones era o nome dos antigos barcos de transporte que iam de uma margem à outra do rio Gironde. Mas Calon também é uma antiga palavra bretã que designa coração.
Foi nessa época também que as bases do comércio dos vinhos bordaleses estavam se formando. Naquele tempo, assim que se fazia a vinificação, os vinhos eram logo colocados à venda. Os negociantes iam até os Châteaux, provavam os vinhos e decidiam se comprariam ou não. Isso já em dezembro, poucos meses depois da safra. Iniciava-se aí a prática hoje conhecida como en primeur. Diferentemente de agora, porém, em que os vinhos são provados em primeira mão alguns meses depois da safra, mas só são colocados em mercado dois anos depois, no século XVIII, os negociantes já levavam as barricas para serem refinadas e engarrafadas – algumas vezes até misturadas com outros vinhos mais baratos para aumentar o lucro.
Sendo assim, se os vinhos não fossem vendidos logo, os proprietários dos Châteaux ficavam em dificuldades, pois precisavam fazer o refinamento e talvez até o engarrafamento por si mesmos, processos novos e caros na época. Em 1736, Nicolas Alexandre sentiu na pele esse problema. Ele recusou uma oferta de 1.800 libras de prata por quatro barricas de Latour – valor duas vezes maior do que a média para os grandes vinhos das melhores safras de então – acreditando que poderia conseguir muito mais. Com o tempo passando, contudo, sua aposta mostrou-se ruim e ele precisou despejar todo esse vinho no mercado por 260 libras antes que ele estragasse ou fosse consumido pelo calor do verão.
O Príncipe das Vinhas viveu 57 anos, morrendo em Paris, no dia 24 de março de 1755, como um dos homens mais ricos e poderosos da França (certamente o mais rico de Bordeaux), com toda a sua fortuna fundamentada em seus vinhos e suas propriedades bordalesas. Entre seus legados está a divisão das vinhas do Lafite e do Mouton-Rothschild, criando dois estilos diferentes de vinhos. Pai de quatro meninas, seu império vitivinícola logo acabou dividido. Calon ficou durante algum tempo nas mãos de um de seus netos, que, jogador compulsivo, perdeu-o em 1778. Lafite chegou a ficar com um primo, que, contudo, morreu na guilhotina durante a Revolução Francesa. Só o Château Latour, que na época foi avaliado em 520 mil libras, permaneceu com seus descendentes até 1963.
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