Enólogo resume a “eternidade” dos vinhos de Marqués de Murrieta
Arnaldo Grizzo, Christian Burgos e Eduardo Milan Publicado em 31/08/2021, às 19h30
Vicente Dalmau Cebrián-Sagarriga está 25 anos à frente de Marqués de Murrieta
“Tentarei responder de forma resumida, porque você vai entender que a resposta pode ser eterna. Não longa, mas eterna, porque os anos que temos de história são muitos”, diz logo de cara Vicente Dalmau Cebrián-Sagarriga, que há 25 anos está à frente de Marqués de Murrieta, uma das vinícolas pioneiras de Rioja e da Espanha. Mas não somente essa história é longa (ou eterna), como também seus vinhos.
Murrieta sempre foi famosa por vinhos de longa maturação, seja em barrica, seja em garrafa, antes de serem lançados no mercado. Seu mais celebrado vinho, Castillo Ygay, por exemplo, somente é lançado em safras especiais “contadas nos dedos” e pode ficar mais de 10 anos aguardando o momento certo para ser lançado. A versão branca tem apenas 13 safras até hoje, sendo que a última entrou no mercado em 2014 com o vintage 1986 (!!!). A última safra do tinto foi a de 2010, lançada somente no início de 2020, e mereceu estar entre os melhores do novo guia ADEGA Espanha.
Nesta entrevista exclusiva, Vicente Dalmau revela os conceitos por trás da produção desses clássicos vinhos e como foi assumir a direção de uma das vinícolas mais tradicionais da Espanha abruptamente após a precoce morte de seu pai em 1996, apena 13 anos após a família ter adquirido essa histórica propriedade de Rioja.
A história de Marqués de Murrieta é muito antiga. É possível resumir?
Eu dividiria em dois fatos fundamentais. O primeiro foi sua fundação em 1852, que representou o começo do que entendemos hoje como La Rioja. Começou com Luciano de Murrieta, apaixonado pelo mundo do vinho, e depois chegou às mãos de uma figura relevante na história da Espanha, o general Baldomero Espartero. Existiam vinhos maravilhosos em La Rioja, aos quais não era dada importância, porque havia muito mais oferta do que demanda. Mas ele era obcecado por essas terras e vê que tinha um enorme potencial para gerar grandes vinhos. Pois bem, decide se mudar para Bordeaux e lá viveu por três anos partilhando experiências com diferentes produtores. Ele trouxe um conceito de amadurecimento dos vinhos em barricas para depois envelhecê-los na garrafa.
Qual o segundo ponto-chave dessa história?
Em 2021 é meu 25º aniversário à frente desta vinícola. Por circunstâncias nada agradáveis, tive que presidir à força e ser, de alguma forma, o capitão desta histórica vinícola quando meu pai faleceu em 1996. Assumi a liderança de Marqués de Murrieta com 25 anos de forma chocante, não só pela morte repentina e inesperada do meu pai, mas também pelo que significou ser o responsável por uma das vinícolas mais importantes da história da Espanha – e das mais relevantes no panorama vitivinícola mundial.
A vinícola Marqués de Murrieta
Você estava preparado para isso?
Tinha uma missão inicial, que era puramente amadurecer como pessoa antes de assumir e entender qual era minha visão ou qual seria minha missão dentro desta longa história. Foi um processo para mim, um longo processo de três anos, em que aprendi com muitas conversas com as diferentes pessoas que compunham a equipe de Marqués de Murrieta naquela época. Compreendi que, ao fim de três anos, já não podia esperar mais, que tinha sido um tempo razoável para amadurecer e tentar minimizar ao máximo qualquer tipo de eventual erro que a minha juventude me levasse ao gerir a vinícola – com certeza cometi muitos. E depois disso comecei um projeto que, de alguma forma, foi revolucionário.
Qual era sua experiência com vinho?
Meu pai teve uma infância difícil, teve que começar a trabalhar aos 16 anos. Então comecei a trabalhar com ele aos 15 anos. Inicialmente fui responsável por receber as pessoas que vinham de países estrangeiros, mas nunca parei de estudar até terminar Economia Empresarial e Direito na Universidade de Navarra. Aos 18 anos, meu pai me nomeou diretor geral de exportação. Aos 20, gerente geral comercial. Meu pai era um pouco arriscado nas decisões, não só arriscado, em muitos casos, tinha até tons de dureza máxima, querendo me treinar de forma acelerada e assumindo de forma tão jovem responsabilidades para as quais possivelmente não estava preparado. Quando tinha 22 anos, já conhecia 70 países. Quando terminei meus estudos, enfim, a vida me deu essa surpresa [morte do pai]. Felizmente fui submetido a esta realidade para tentar fazer um trabalho sério à frente dessa vinícola.
Quando seu pai morreu, pensou em não continuar na vinícola?
Quando estava sozinho, há 25 anos poderia escolher vários caminhos, tendo inclusive vendido a vinícola com os nervos, a incerteza, a juventude, as monstruosas cifras econômicas que foram postas sobre a mesa. Por que escolhi esse caminho? Vários motivos. Primeiro honrar a memória de meu pai. E depois para me mostrar que tínhamos capacidade e coragem de levar o projeto adiante. Minha irmã, Cristina, e eu decidimos que não venderíamos e sabíamos que essa aventura envolvia risco máximo. Alguém de fora que assumisse Murrieta poderia ter escolhido não respeitar uma identidade tão poderosa, uma história tão enraizada e ter espremido a marca ao máximo para tirar tudo dela, torná-la mega comercial.
Havia um plano para a vinícola após a morte de seu pai?
Não havia nada. Eu era muito jovem e não queria estar um projeto que se convertesse em um clássico antiquado, queria poder continuar com a palavra clássico – que para mim tem muitos aspectos positivos –, mas que o clássico não se tornasse velho, se tornasse atual. Queria somar o que havíamos feito bem no passado e aspectos de uma nova era a esses vinhos. Não sou nada mais do que um elo na história desta vinícola. E aqueles três anos de meu silêncio pessoal serviram para que pudesse ser capaz de editar parâmetros, respirar um novo ar, não estar tão influenciado pela educação que recebi, estar um pouco mais livre. Apesar de que nunca me senti livre por causa da pressão que tantos anos de história exercem sobre suas costas. Uma marca tão poderosa lhe deixa sob uma pressão tremenda. Mas quero dizer que assim poderia aplicar minhas ideias ao projeto e não assumir ideias de outras pessoas.
Depois de três anos “amadurecendo”, como passou a atuar?
De 1996 até 1999, estava só ouvindo e treinando, aproveitando o dia a dia da vinícola, mas não tomando nenhum tipo de decisão arriscada. Então decidi que o projeto precisava de uma sabedoria mais jovem, mais inquieta. Minhas ideias eram absolutamente novas, mas tinham um denominador comum – que era o máximo respeito por uma casa, uma história, uma família e o máximo respeito pela identidade dos vinhos, uma identidade tremendamente profunda. E, apesar disso, preocupava-me em não significar uma mudança. Mudança é uma palavra que nunca quis usar dentro da vinícola, mas, sim, uma atualização, um reconhecimento do que estávamos fazendo.
A ruptura seria muito grande?
Não creio que este mundo maravilhoso que é o do vinho possa se separar do conceito de longo prazo. É muito difícil entender um grande vinho sem entender o longo prazo, sem entender que um vinho se forma de um vinhedo antigo, de uma longa maturação etc. Então, esse é o primeiro ingrediente que queria aplicar. E continuamos no projeto de atualização, não terminei ainda.
Qual foi seu movimento mais importante?
Naquele momento, a primeira coisa que precisava era de uma equipe que respirasse o mesmo ar, que entendesse o que queria fazer, que respeitasse os princípios e fundamentos desta casa, e o que fiz foi atualizar este “equipamento” humano. Uma pessoa que tem sido vital para mim é [a enóloga] María Vargas. Ela tinha a minha idade e queria que assumisse o projeto. Sua resposta inicial foi clara e contundente: não queria porque não tinha experiência. Foram anos tentando convencê-la e, quando ela percebeu, tinha assumido completamente, estava no projeto de maneira tão profunda que era impossível sair. Além da figura de María, atraímos gente tremendamente jovem para ajudar, pois entendi que isso tinha que acontecer a longo prazo. Fui fazendo as coisas aos poucos, fui entendendo que mudanças bruscas não iam ser positivas. Compreendi qual era a identidade das vinhas e é daí que vêm todas as uvas. A palavra Marqués é muitas vezes se supõe grandes volumes, grandes produções. Não é o nosso caso. Somos um Marquês com um conceito totalmente diferente, respeitando as dimensões de uma fazenda. Somos o menor Marqués de Rioja. Não somos melhores que os outros, somos diferentes.
Que tipo de atualizações fez?
Temos 300 hectares em La Rioja Alta de onde vem 100% das uvas dos vinhos que produzimos. Essa identidade dos vinhos, não podíamos alterá-la. Mas tivemos que renovar algumas questões. Começamos com o Marqués de Murrieta Reserva Branco. Após a atualização, o nome foi substituído por Capellanía, que era o nome do Pago de onde vêm as uvas [Viura]. Mas, ainda assim, era um vinho que ia demorar para entrar no mercado. Então, para frear minha inquietação e começar a mandar, mais rapidamente, uma mensagem do rumo que ia tomar, iniciei um novo vinho. Um corte completamente diferente dos vinhos de Murrieta, um vinho muito mais estruturado, com muito mais potência, muita concentração. Decidi usar um carvalho que nunca tinha usado na história de Marqués de Murrieta, todo francês. Pela primeira vez na história também reduzi os períodos de envelhecimento em madeira. Nessa altura, os períodos de maturação em barricas rondavam os seis anos (eram barricas usadas). E queria aplicar barrica nova nesse novo projeto, que decidi chamar de Dalmau.
Era uma forma de se dissociar do legado do seu pai?
Era para me ajudar a preencher a ausência do meu pai, para me ajudar a preencher aquele vazio de alguém que era uma potência à frente da vinícola. Dalmau começou a surpreender não só pela qualidade em si, mas acho que pelo choque que um vinho daquele estilo criou dentro de uma vinícola clássica como a nossa. Comecei a enviar uma mensagem de modernidade, de um Marqués em movimento.
Quando começou a mexer nos vinhos “clássicos”?
Em 2000, iniciamos o lançamento dos novos vinhos Marqués de Murrieta com base nessa atualização aplicada em Dalmau: menos tempo na barrica, rendimento um pouco mais baixo nas vinhas, busca por frescor, taninos absolutamente sedosos e aveludados. Apesar de menos tempo em madeira, muito mais madeira nova. Mantive o envelhecimento em garrafa em busca de algo que é fundamental nos nossos vinhos: a elegância desse processo de envelhecimento e maturação na garrafa. A resposta do mercado foi positiva. Mais tarde iniciamos Capellanía, que foi a transformação do Marqués de Murrieta Reserva Blanco, que antes eram vinhos muito mais dourados, com mais intensidade de cor, com muita estrutura. O que fiz foi buscar mais equilíbrio entre madeira e fruta, uma madeira que não se percebe, que ficou muito bem integrada.
Os vinhos de La Rioja sempre foram conhecidos pelo envelhecimento em barrica. Como vocês gerenciam esse uso?
A gestão do envelhecimento dos vinhos em barricas tem sido um dos nossos alicerces de evolução. Temos o máximo respeito pelo que a natureza nos dá todos os anos. Nosso objetivo dentro da vinícola nunca foi destruir as benesses da fruta. Nunca a madeira significará um elemento de desequilíbrio. Minha percepção em provas de Murrieta antigos é que o vinho tinha um excesso de madeira que escondia algumas coisas e, na nova era, essa madeira some. Só tivemos uma obsessão, que é o equilíbrio entre fruta e madeira nos vinhos. Mudamos tanto o grão como a tosta a cada ano dependendo da safra e das necessidades. As tostas sempre foram mínimas, praticamente neutras para que a contribuição seja sempre a mesma. Se contribuímos com madeira jovem no início do processo de envelhecimento, nunca abusamos dela. Damos inicialmente para que o vinho tenha cor e uma base um curto período. Nesse processo entre madeira jovem e velha, o vinho vai amadurecer, ficar equilibrado, mais elegante, mais redondo, mais longo. Se hoje somos conhecidos no mundo por algo, é por causa de como envelhecemos nossos vinhos em barricas. Acredito que a máxima demonstração de expertise no manuseio da barrica é justamente o contrário: que a barrica não seja notada. Há uma contradição no que estou dizendo, mas nossa obsessão tem sido não notar a barrica.
Como chegou em Ygay?
Após a apresentação de Dalmau e Capellanía, surgiu o ícone, o nosso vinho sagrado. Ygay foi o vinho que mais nos custou a atualizar devido à sua personalidade profunda. Você pode imaginar as longas noites que tive com María discutindo a evolução deste vinho, como faríamos para manter a essência e a identidade. São vinhos que vão ser vendidos no décimo primeiro ano, mas que têm a presença de frutas, uma madeira muito integrada, para serem bebidos hoje, mas também de um potencial de guarda de 30, 40 anos. Decidi retirar a Garnacha de Castillo Ygay. Nele está a Mazuelo, que dá uma identidade absolutamente única, uma sutileza tremenda, alguns florais muito especiais, mas sobretudo uma acidez é o que faz o vinho durar com o tempo.
Você mudou algo nos vinhedos?
O destino me iluminou. Dediquei-me a plantar Mazuelo e Graciano, não que achasse que fossem decisivas, mas porque acreditei. Agora, depois de 25 anos, com essa mudança climática, essas duas uvas trouxeram frescor e acidez aos vinhos.
Qual o conceito de Castillo Ygay?
É tão difícil fazer um Castillo Ygay? Digamos que o fazemos todos os anos, mas não chega ao mercado todos os anos. Em seu segundo ano de estágio, decidimos se o vinho atingiu os patamares não só de qualidade, mas de personalidade. Se não atingiu, vai para o Marquês de Murrieta Reserva.
Entrada da vinícola Castillo Ygay
O Castillo Ygay Branco é uma raridade ainda maior?
Na história de Marqués de Murrieta houve apenas 13 safras brancas. Desde 1852, apenas 13 vinhos saíram com o rótulo Ygay Blanco, nada mais. O décimo terceiro, da vindima 1986, foi apresentado em 2016. Posso contar um segredo? Quando fiquei sozinho à frente da adega e provei este vinho com María Vargas, estávamos completamente perdidos. Porque nem Maria nem eu sabíamos como proceder com ele. E tomei uma decisão inteligente, que devíamos deixar o vinho amadurecer. Houve uma decisão artística, vamos chamá-la assim, com uma presença avassaladora da madeira, mas uma madeira muito velha. É surpreendente ver que a madeira fica perfeitamente equilibrada com fruta. Algo maluco. Defino esse vinho como um roqueiro antigo, porque tem algo inconcebível, uma maturidade extrema ao lado de uma juventude impressionante no nariz. Apesar de um longo envelhecimento em barricas, isso não se percebe. Acho que é onde nós realmente mostramos nossa arte. Quando apresentei este vinho, garanto que estávamos tremendo, nossas pernas tremiam. Era como uma espécie de néctar do néctar do vinho. Como ter a responsabilidade de colocar no mercado outro vinho desse calibre? Você não sabe o que é.
O que muda em Ygay a cada safra lançada?
Damos uma “apertada no parafuso” cada vez que ele sai. Quando digo uma torção no parafuso, digo qualitativamente. Amadurecemos e sabemos até onde poderíamos levar Castillo. Já tínhamos um nível muito alto qualitativamente, então já não é era questão de qualidade, mas de personalidade. Existem certos vinhos no mundo que, quando você os prova, não entra na questão da qualidade, mas percebe uma sensação especial, de algo único, de algo com um alma especial. E é isso que Castillo tem.
Com o sucesso do vinho, há pressão de demanda...
Distribuímos todo esse vinho por cotas. Apoiamos nossos clientes que sempre nos apoiaram, que não só apoiaram Castillo Ygay, mas todos os vinhos desta casa. A prioridade para nós será nossa distribuição global, com aqueles que estiveram conosco. Respeitamos essas cotas apesar da enorme demanda que tivemos nos últimos tempos. E há boas notícias os amantes de Castillo, pois a próxima safra, que será de 2011, está ainda melhor. Teremos 2012, mas o próximo será apenas da safra 2016. Castillo Ygay está bem acima de fatores econômicos. E representa algo muito importante na história do vinho e da cultura do vinho.
Vocês possuem um projeto em Rías Baixas?
Sim, uma vinícola em Pazo de Barrantes, onde temos investido muito. É mais uma loucura nossa. Decidimos evoluir todo o projeto ali, atualizá-lo. Há dois anos que não lançamos um vinho e, no próximo ano, já se poderá ver as novidades. Quisemos dar mais tempo ao vinho e, em vez de apresentar Albariños jovens, vamos apresentar Albariños maduros, com pelo menos três anos de envelhecimento. Um Albariño maduro e estruturado. Acredito que o Albariño que estamos fazendo mudaria o conceito do que está se fazendo ultimamente em Rías Baixas.
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