Atuando em terroirs distintos como o nordeste brasileiro, o Chile central e as frias terras de Santa Catarina, os flying winemakers rodam o globo fazendo vinhos.
Sílvia Mascella Rosa Publicado em 11/12/2008, às 14h26 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h45
Mário Geisse já atuou no Chile, Brasil e França, ajudando produtores a fazer bons vinhos.
Você saberia dizer o que existe em comum entre os vinhos Lote 43 da Miolo, Mundus Malbec da Casa Valduga, Quorum da Lídio Carraro e Microterroir da Casa Silva? A maior parte das pessoas, mesmo entre as conhecedoras de vinhos, não saberia. Estes são exemplos de vinhos feitos por enólogos que trabalham ao mesmo tempo para várias empresas, no Brasil e no exterior. São profissionais conhecidos como enólogos consultores ou flying winemakers (enólogos voadores).
O termo inglês foi, provavelmente, cunhado pela primeira vez para falar de um australiano contratado por uma empresa francesa com grande sucesso. A Austrália, em meados da década de 1980, transformou sua vinicultura incipiente em um negócio milionário, aplicando tecnologia moderna nos vinhedos e cantinas e apresentando ao mercado um estilo de vinho mais moderno. Como muitas pessoas ao redor do mundo começaram a se perguntar como os australianos tinham feito isso, seus enólogos passaram a prestar consultoria.
Assim, para fazer fermentados nos quatro cantos do globo, estavam sempre voando, munidos de computadores, boletins climatológicos e bons endereços de fornecedores de tudo ligado ao mundo do vinho, desde as melhores mudas até barricas e engarrafadoras. Esses personagens se multiplicaram e apareceram também nos Estados Unidos, Inglaterra e até na América Latina. Sua atuação, embora polêmica para alguns, transformou o cenário da viticultura mundial.
#Q#No Brasil também
Como não poderia deixar de ser, essa globalização de conhecimento atingiu o Brasil exatamente quando ele começava a levar os vinhos finos mais a sério, na década de 1990. O nome mais conhecido por aqui é o do francês Michel Rolland. Controverso para muitos, mas inegavelmente talentoso, Monsieur Rolland teve uma participação importante na transformação dos vinhos da Miolo. O primeiro grande vinho da casa, o Lote 43 da safra de 1999, já tinha o toque do enólogo francês.
O diretor técnico da vinícola, Adriano Miolo, é um dos grandes enólogos brasileiros e ele mesmo (em parceria com o irmão, Fábio) já prestou consultoria para vários produtores nacionais quando a empresa ainda era pequena e os irmãos tinham um laboratório de análise de vinhos. "Até hoje a atuação de Rolland e sua equipe é muito importante para alguns de nossos grandes vinhos. Ela é a sintonia fina que faz a diferença", explica Adriano Miolo.
Mesmo antes de existir um termo em inglês para designar esses profissionais, o Brasil fazia uso de seu expertise de forma indireta. Empresas como a Bacardi-Martini e a Chandon traziam de suas casas matriz enólogos que vinham para desenvolver um projeto aqui e depois iam para outros países. Um deles, o chileno Mário Geisse, veio trabalhar na Chandon, casou e teve filhos brasileiros, comprou terras por aqui e fez seus próprios vinhos na vinícola Cave de Amadeu. Seu nome no País é notório por conta de seus belos espumantes, como o Cave Geisse (veja seção CAVE).
Durante anos, Mário Geisse prestou consultoria para muitas vinícolas chilenas. Consagrado em várias delas, seu altíssimo "passe foi comprado" pela Casa Silva, para garantir que o talento do vinhateiro ficasse somente entre a vinícola chilena e sua empresa no Brasil. Mesmo assim, em 2008, Mário respondeu a um convite irresistível: o de levar seus conhecimentos em espumantes brasileiros para uma Maison tradicional em Champagne e elaborar um vinho borbulhante por lá. Além desse projeto, ele faz um fermentado no Chile especialmente para os brasileiros: o "El Sueño" e seus vinhos são vendidos no mercado chileno pela própria Casa Silva.
Proprietário da Miolo, Adriano, prestou consultoria em vários terroirs do Brasil |
Mas há muito mais enólogos voando pelos céus do Brasil do que Michel Rolland, na Miolo, e Angel Mendoza, na Salton (que ajudou a empresa a lançar seu primeiro vinho diferenciado, o Salton Talento), e o próprio Mário Geisse. O jovem enólogo Eduardo Valduga, filho de Juarez Valduga, tem apenas 25 anos e já se responsabilizou por fazer o primeiro fermentado da linha Mundus da Casa Valduga, um Malbec argentino criado quando o rapaz ainda fazia o curso de enologia em Mendoza. De volta ao Brasil, Eduardo foi um dos responsáveis pela implantação da nova empresa da família, a Domno, especializada em espumantes feitos pelo método Charmat.
Com a mesma idade de Eduardo e também gaúcha, Mônica Rosetti está longe de casa há anos. Logo depois de se formar em enologia, e já trabalhando para a Vinícola Lídio Carraro, ela foi para a Itália se aperfeiçoar no mundo dos espumantes e fazer uma especialização em viticultura. Atualmente, a jovem só consegue vir ao Brasil durante a colheita da Lídio e no final do ano. Seus conhecimentos de processos do Novo Mundo são utilizados por sete cantinas italianas, em regiões como o Piemonte, Veneto e Toscana. Ela, que não se considera uma enóloga voadora, admite: "Atualmente a presença de um consultor pode representar aperfeiçoamento e desenvolvimento para a empresa, além da protocolização de operações em busca do vinho ideal para o mercado".
#Q#Boa Experiência
Uma das polêmicas relacionadas à atuação dos consultores é o fato de que eles têm um estilo de fazer vinho e acabam por levar esse estilo para onde vão. No entanto, é estranho pensar que Michel Rolland, por exemplo, seja capaz de fazer o mesmo estilo de vinho no Vale dos Vinhedos, na vinícola indiana - onde presta serviços - e até mesmo na Casa Lapostolle, no Chile, para onde também trabalha. "Um terroir tem quatro variáveis e somente uma delas é a atuação do homem. Seria difícil admitir que alguém é capaz de fazer o mesmo vinho em terroirs distintos", considera Adriano Miolo.
O enólogo gaúcho Marcos Vian, diretor da Associação Brasileira de Enologia, tem uma empresa de consultoria e atende clientes em seis estados brasileiros. Ele lembra que, quando os primeiros estrangeiros foram contratados para fazer fermentados no Brasil, muitos colegas questionaram a atitude das empresas e alguns sentiram até que seus conhecimentos técnicos foram menosprezados. Desde aquela época, Vian já não acreditava nisso. Ao contrário, ele vê essa diversidade de forma positiva: "Quem contrata está buscando a atualização constante e o crescimento técnico da equipe fixa e quer estar em sintonia com o que acontece no mundo do vinho. Os enólogos consultores fazem várias vindimas por ano, conhecem regiões e realidades diferentes e acumulam grande experiência profissional que pode ajudar no crescimento e desenvolvimento das vinícolas".
Para a vinicultura brasileira, os últimos dez anos foram cruciais. A contratação de estrangeiros movimentou o mercado e possibilitou produtos com características mais globais e melhor tratamento técnico. Fez ainda nossos profissionais buscarem especializações no exterior, deixarem o conforto das cantinas familiares e entrarem de vez na competição para fazer melhores vinhos. E, para aqueles que já conseguiram um lugar de destaque, como Adriano Miolo - que faz vinhos em vários terroirs brasileiros -, existe a possibilidade de ser um "flying winemaker" em suas próprias terras.