Nuances por trás do melhor vinho da nova edição do Guia ADEGA – Vinhos do Brasil
Por Christian Burgos Publicado em 12/09/2014, às 00h00 - Atualizado em 07/02/2019, às 12h46
As uvas foram dispostas cacho a cacho em redes e lá ficaram por 43 dias concentrando açúcar e aromas
Como não poderia deixar de ser, levamos muito a sério a escolha dos melhores vinhos do ano para o Guia ADEGA – Vinhos do Brasil. O guia nos permite ter uma visão privilegiada do que está acontecendo na indústria vitivinícola nacional em termos de qualidade, caminhos e tendências.
Muitas vezes, certos vinhos nos surpreendem e abrem espaço para conversas e interpretações. Mas, algumas vezes, um rótulo se destaca muito e daí chega a hora de analisarmos a fundo o que aconteceu.
Sentimos que parte de nossa missão, além de apontar os melhores vinhos para nossos leitores, também seja contribuir com nossa opinião quando alguém vai muito além de fazer um bom vinho. E é o que acontece com o “Melhor Vinho” deste ano, o Luis Argenta Merlot Uvas Desidratadas 2009.
Sim, o nome não é um primor de marketing. Mas como diria nosso editor de vinhos, Eduardo Milan, “é a cara do Edegar”, referindo-se ao jovem enólogo Edegar Scortegagna, que sempre tecnicamente impecável e respeitoso nunca utilizaria o esperado “tipo Amarone”. Então, já nos demos por satisfeitos de o vinho não ser batizado “Luis Argenta Merlot Uvas 100% Desidratadas 43 dias por Processo Exclusivamente Natural 2009”.
A primeira vez que ouvimos falar deste vinho foi no ano de seu nascimento, em 2009. Em visita à Luis Argenta, conversávamos sobre a safra em Flores da Cunha, comparando-a com a histórica 2005. Deunir Argenta, o proprietário, e Edegar nos falaram que, no casarão construído em 1931, localizado à entrada da vinícola, estariam uvas Merlot em processo de desidratação.
Ano após ano visitando a vinícola, o assunto deste vinho vinha à toa. Certa vez, vimos as duas barricas e, numa visita com jurados do Concurso Internacional de Vinhos do Brasil, em abril deste ano, Deunir confidenciou que estava “quase pronto”. Confesso que me perguntava por que não nos ofereciam uma prova de barrica, mas, quando levamos em consideração que apenas 600 garrafas seriam produzidas, tudo se explica.
Edegar Scortegagna acreditava que a Merlot poderia ser utilizada por não ser uma uva de maturação tardia nem prematura, ter bagos espaçados no cacho e a casca não ser muito fina, possibilitando a secagem das frutas sem que se rompessem ou fossem atacadas por fungos
Apenas 600 garrafas foram produzidas da safra 2009
Em 2009, a safra em Flores da Cunha terminou com 24 dias de estiagem em março. Isso possibilitou às uvas Merlot atingirem um ponto de maturação ideal para essa “aventura”.
No Vêneto, os Amarones são elaborados com as uvas Corvina, Rondinella e Molinara. No Brasil, Edegar acreditava que a Merlot poderia ser utilizada por não ser uma uva de maturação tardia nem prematura, ter bagos espaçados no cacho e a casca não ser muito fina, possibilitando a secagem das frutas sem que se rompessem ou fossem atacadas por fungos.
Após 2009, próxima safra do vinho deverá ser 2011, que está em fase de elaboração
O histórico casarão foi adaptado com redes especiais para a desidratação das uvas. Suas paredes duplas propiciaram isolamento térmico, ao passo que o alto pé-direito e as janelas possibilitavam a ventilação necessária para o processo.
Assim, as uvas foram dispostas cacho a cacho nessas redes e lá ficaram por 43 dias concentrando açúcar e aromas. Ao final desse período, os 1.500 quilos de uva iniciais haviam se tornado uma só tonelada, com 500 quilos perdidos para a evaporação.
Nesse momento, os cachos foram levados à mesa de seleção, onde foram desengaçados em um processo delicado e extremamente manual – seis pessoas trabalharam por cinco horas selecionando bago a bago, que depois foram levados para um tanque de microvinificação. O pequeno tanque foi acondicionado dentro de uma câmara fria a 26oC. A fermentação se estendeu por 45 dias até o mosto atingir 16% de álcool e 8 gramas de açúcar por litro. Após a fermentação malolática, os 450 litros de vinho foram acondicionados em duas barricas de carvalho francês de 225 litros de segundo uso e aí ficaram por 36 meses para que o processo de polimerização fizesse sua parte.
Em outubro de 2013, 600 garrafas foram preenchidas e guardadas para o afinamento.
Por fim, cinco anos depois da colheita, degustamos o vinho pronto. O processo produtivo pode nos levar a imaginar um vinho doce. Ledo engano. Estamos diante de uma bebida seca com aroma muito profundo e complexo. Com fruta vermelha, muita lavanda e um toque medicinal.
Em boca, é intenso, aquece, tem estrutura, ameixa seca e deliciosa acidez. O retrogosto é impressionante e persistente, poderoso, com taninos no primeiro ataque e que rumam para a elegância.
Este vinho merece reconhecimento também por ser o fruto do comprometimento com um projeto, da confiança numa visão, na capacidade técnica para inovar e no investimento em experiências para alcançar novos patamares.
Um vinho a ser produzido todos os anos? Não. Após 2009, somente 2011 está em elaboração. Estarão sempre tão bons? Não ousamos prever. Mas vinhos como esse abrem uma porta para novas possibilidades e sinalizam mais um caminho para os vinhos do Brasil.