A história da primeira enóloga do Chile e sua obstinação pelos vinhos de uma região em que ela foi pioneira
Arnaldo Grizzo e Eduardo Milan Publicado em 31/12/2018, às 20h00
María Luz Marín não se incomoda de maneira alguma quando questionam o preço de seus vinhos. Desde que lançou seus primeiros rótulos, ela lida com esses questionamentos sem qualquer embaraço. Desde o princípio, ela sabia que precisava posicionar seus vinhos em uma categoria de preço mais elevada (razões que ela explica nesta entrevista). E ela precisou suportar toda a pressão dessa decisão para hoje poder não somente não se incomodar mais com possíveis questionamentos, como ter respostas muito sinceras.
Nesta entrevista exclusiva, María Luz revela o quão difícil foi sua trajetória no mundo do vinho para alcançar o status que possui atualmente. Não fosse apenas pelo fato de ter sido pioneira entre as mulheres enólogas do Chile, ela conta que passou por momentos desesperadores, em que chegou a pensar em desistir de tudo, mas, resiliente, fez perseverar a ideia de produzir grandes vinhos (especialmente brancos) em uma região até então desconhecida do território chileno, Lo Abarca, no vale de San Antonio.
Descubra a seguir como é ignorar conselhos e criar uma vinícola em um local nunca antes explorado, brigar com o governo para poder cultivar vinhas, tentar ter sucesso produzindo brancos em um mundo que valoriza muito mais os tintos, não se curvar às críticas e perseverar, tudo isso sendo a primeira mulher a se graduar em enologia na Universidade do Chile.
Foi a primeira mulher a se formar enóloga no Chile. Como foi sua trajetória até Casa Marin?
Na Universidade do Chile, é preciso estudar agronomia e se especializar para o título de enólogo. Uma vez enóloga, comecei a trabalhar na Viña San Pedro, a segunda maior do Chile. Estive lá por sete anos. Esta foi a minha escola realmente. Aprendi tudo, não somente a fazer vinhos. Na época, enólogo, no Chile, mexia apenas com vinho, no laboratório, não se metia na parte comercial, marketing, tampouco nos vinhedos. Mas eu quis conhecer toda a cadeia. Isso foi muito bom para mim. Quando saí, vieram os grupos franceses para quem trabalhei. Pediram para procurar um lugar para que eles pudessem comprar um vinhedo. Aí me dei conta que algo estava acontecendo, pois eles vinham comprar no Chile sendo que a situação vitícola no país não estava boa no começo dos anos 1990. Encontrei o vinhedo, ajudei a formar todo o plano de trabalho e, em seguida, trabalhei alguns anos ajudando produtores até que quis começar a fazer meu próprio vinho.
Como foi parar em Lo Abarca?
Até então, o Chile tinha vinhos quase totalmente concentrados nos vales centrais, um setor plano, um local idílico, fácil de fazer. Com as viagens que fiz pelo mundo, dei-me conta de que a vinha é uma planta que se adapta a qualquer condição de clima e acreditava que, se o Chile tem tanta diversidade, por que não buscar coisas diferentes? Fui procurar lugares novos justamente buscando uma diferenciação. Sabia que, para ter êxito, tinha que não somente produzir um bom vinho, mas tinha que ser muito diferente. Então, fui a esse lugar, muito radical, muito difícil, com muitas colinas, com solos muito pobres, na costa, com pouca água, com muita geada, muitos ventos, frio, muita neblina... Pensei: “Aqui posso fazer algo diferente”.
Era um vinho muito diferente, diferente do que havia provado no Chile de Sauvignon Blanc, do que havia provado no mundo. “O que é isso?” Fiquei um pouco assustada
Você já conhecia Lo Abarca?
Conhecia o lugar desde que era pequena, meu pai tinha uma fazenda perto desse povoado e eu ia muitas vezes no fim do ano, para descansar. Lá, todos os camponeses tinham suas hortaliças, que eram de muito boa qualidade, alfaces, tomates, diferente do que havia na zona central. No mundo, as vinhas estão em montanhas, em climas desérticos, frios, com gelo, neve, por que não fazer aqui?
Chegou a fazer algum estudo para implantação das vinhas?
Não fiz nenhum estudo. Não havia nessa época, lá havia somente campos de colina com bosques. Comecei a ver o lugar para comprar, pois onde meu pai tinha não havia água. Encontrei, comprei 56 hectares com uma casa (quase caindo) e comecei a desenvolver. Obviamente nesse setor a planície é muito ruim, pois é uma argila pesada, então queria plantar nas montanhas, mas estavam com eucaliptos. Tinha que arrancar e, para isso, tinha que ter permissão do governo. E eles não me davam. Passou um ano, já havia comprado as plantas, tinha encontrado água, mas não podia cortar. Pensei: “Vou fazer. Preciso mostrar que estão equivocados. Mesmo que tenha que ir para a prisão, ou pagar multa, vou fazer”. Fiquei muito famosa no Chile na época. “Essa mulher louca estava plantando uma vinha clandestina”. Apareci na televisão, revistas, jornais. Isso foi bom, pois criou expectativa. Precisei de advogado para lutar com o conselho florestal, mas obviamente ganhei. Plantei em 2001 e, dois anos depois, foi a primeira safra. Somente brancos.
Como escolheu os varietais?
Contratei uma especialista em viticultura da Califórnia para me ajudar a decidir que uvas comprar. Mas tinha que ser variedades que estivessem no Chile para não ter que aguardar ainda mais. Precisava ver o que tinha nos viveiros, ver as castas que podiam se adaptar. E uma coisa é escolher as variedades, outra é saber onde plantar, pois temos diferentes tipos de solos, e ela me ajudou muito. Quando comecei na primeira safra, contratei outro enólogo especialista em Pinot Noir, pois minha aposta era Pinot e Sauvignon Blanc.
Como foram os primeiros anos?
Eu não tinha experiência, fui enóloga de uma vinícola grande, mas agora estava arriscando todo o meu patrimônio. Tinha toda a imprensa e os colegas que me diziam: “Você está louca, por que não planta em um lugar mais conhecido? Você vai ter que ter uma qualidade excepcional e vai ter que vender muito caro, pois vai produzir pouco”. “Sim, sei disso”. Mas dentro de mim dizia: “Espero que seja assim”. Já não podia voltar atrás. Isso não quer dizer que, muitas vezes, não pensei: “O que estou fazendo?” É normal. Foram épocas difíceis. Houve momentos em que não queria ir adiante, pois me deparei com muitas dificuldades no caminho. Mas já estava nisso. Tinha que ter forças e seguir. Assim foi o começo.
Como explicar o sucesso do seu Sauvignon Blanc?
Na primeira safra, quando o vinho estava pronto, lembro que no dia da degustação, depois de decantado, eu estava muito nervosa. Era um vinho muito diferente, diferente do que havia provado no Chile de Sauvignon Blanc, do que havia provado no mundo. “O que é isso?” Fiquei um pouco assustada, saia do contexto, era pedra, não havia fruta, era como uma pedra molhada. Deus meu. Não era ruim. E todos os varietais iguais. Riesling, Gewürztraminer fechado, etc. Comecei a pedir a alguns colegas no Chile que viessem provar o vinho e dessem sua opinião. Mas não trazia todos juntos, pois não queria que se influenciassem. Todos diziam: “É muito diferente, como você fez isso?” Ninguém me disse: “Isso é excepcional”. Patrício Tapia disse: “Que louco, é uma loucura, um bicho raro. Que coisa estranha”. Assim foram os primeiros passos e apresentações. Até que engarrafei e, na garrafa, comecei a ver que estava um pouco mais centrado, mas igual, com característica de salinidade.
E como foi comercializar um vinho tão diferente do convencional? Como explicar para distribuidores e consumidores?
Veio a segunda fase: “Que preço?” Tinha muito claro que quando se começa de cima, você pode, às vezes, ir baixando, mas é muito difícil começar de baixo e ir aumentando o preço. “O que faço? Vou fazer uma loucura”. Na época, os mais caros vinhos brancos do Chile custavam 8 mil pesos. Coloquei nas lojas com preço de 18 mil. Em outubro daquele ano, na minha primeira apresentação fora do Chile, em Londres, veio um crítico, tomou notas, ficou muito interessado, fez muitas perguntas e, depois de 15 minutos, perguntou o preço. 14 libras. “14 libras?” Ele deixou a taça e foi embora. Sai atrás dele para perguntar o que aconteceu. Ele disse frio: “Sinto muito, nunca vai vender seu vinho nesse preço. Vinho chileno é bom, bonito e barato”. Foi muito difícil, mas não baixei, em vez de vender mil caixas, vendia 100 e assim foi. Por isso que, todos esses anos, foram um estresse, mas consegui fazer com que as pessoas tivessem uma imagem de vinho bons, mas caros. E isso foi em todos os lugares. A imagem do Chile “bom, bonito e barato” não mudou muito até hoje. Atualmente temos outras linhas mais econômicas, mas com a mesma filosofia.
Fiquei muito famosa no Chile na época. “Essa mulher louca estava plantando uma vinha clandestina
Em uma região fria, não se pensa em fazer espumante?
Estamos fazendo, mas de Riesling, em método tradicional. Produzimos em 2016. Vamos ver se somos capazes de lançar antes do fim do ano ou, talvez, no ano que vem. Não sei como vai ser, não estou muito segura, é a primeira vez que faço, é um desafio tremendo. Fizemos com uma variedade que não é tradicional, para ser diferente, pois praticamente todos são de Pinot e Chardonnay.
E por que não produz Chardonnay?
Porque não gosto. Sou pequena, tenho 50 hectares, quando tinha que decidir quais castas plantar, uma delas era Chardonnay, que se daria muito bem. Mas nunca gostei. Por que produzir algo de que não gosto? Às vezes me senti tentada, mas não.
O estilo de Casa Marin mudou nos últimos anos?
Mudou, mas não porque fizemos algo diferente, mas porque a vinha foi amadurecendo. Da infância, à adolescência e agora está começando a vida adulta. Mudou de forma natural. Essa salinidade, mineralidade, acidez etc., foi mudando, estabilizando, ficando mais definidas, começou a ter mais fruta, uma acidez não tão cortante, mais crocante, mais equilibrada, não essa loucura do começo.
Mas o perfil continua sendo bastante diverso do convencional...
Como curiosidade, em 2005, embarquei 400 caixas para Québec, no Canadá. Elas chegaram lá e, de repente, ligaram e disseram que o vinho que chegou estava ruim. Toda vez que chega um vinho novo no Canadá, faz-se um painel de degustadores e esse painel rechaçou o meu vinho. Peguei um avião no dia seguinte. “O que aconteceu?” Não diziam nada... Fomos para a prova. “O que tem o vinho?” “Você não sente? Está salgado”. “Salgado?” “Sim!” “Acham que eu coloquei sal?” Eles queriam que eu mandasse outros vinhos. Disse: “Vai ser o mesmo. O vinho está são. Este é o terroir”. Nunca mais compraram. Mas, na próxima semana, dois executivos deles vão à vinícola. Essa anedota explica um pouco o que é o vinho.
AD 90 pontos
CARTAGENA GEWÜRZTRAMINER 2016
Casa Marin, San Antonio, Chile (Vinci US$ 33). Branco elaborado exclusivamente a partir de Gewürztraminer, sem passagem por madeira. Mostra notas florais, de ervas, de chá verde e de pimenta branca escoltando os sabores de abacaxi fresco. Estruturado e untuoso, tem ótimo volume de boca, vibrante acidez e final longo, com toques minerais. Álcool 14%. EM
AD 94 pontos
CASA MARIN CIPRESES VINEYARD SAUVIGNON BLANC 2016
Casa Marin, San Antonio, Chile (Vinci US$ 57). Branco elaborado exclusivamente a partir de uvas Sauvignon Blanc plantadas em solos de granito, sem passagem por madeira. Mais austero tanto no nariz quanto na boca, impressiona pela força e pela intensidade. Tem bom volume de boca, textura cremosa e final longo e persistente, com toques minerais, florais, cítricos e de aspargos. Álcool 14%. EM
AD 92 pontos
CASA MARIN ESTERO VINEYARD SAUVIGNON GRIS 2016
Casa Marin, San Antonio, Chile (Vinci US$ 57). Branco elaborado exclusivamente a partir de uvas Sauvignon Gris, com fermentação e estágio de 50% do vinho em barris de 500 litros de carvalho francês. Esbanja frutas brancas e de caroço maduras seguidas de notas florais, minerais e de ervas frescas, com a acidez, a ótima textura, tudo escoltado por intensa mineralidade. Tem delicioso final, com toques de melão maduro acompanhado de gotinhas de limão. Álcool 14,5%. EM
AD 92 pontos
CASA MARIN LITORAL VINEYARD SYRAH 2014
Casa Marin, San Antonio, Chile (Vinci US$ 57). Tinto elaborado exclusivamente a partir de uvas Syrah, com fermentação espontânea e estágio de 16 meses em barricas usadas de carvalho francês. Tenso, estruturado e refrescante, mostra muita fruta vermelha madura escoltada por ótima acidez e taninos de cheios de textura, que convidam a mais um gole. Tem final persistente, com toques minerais, de ervas e de sangue. Álcool 12%. EM
AD 90 pontos
LO ABARCA SAUVIGNON BLANC 2016
Casa Marin, San Antonio, Chile (Vinci US$ 24). Branco elaborado exclusivamente a partir de uvas Sauvignon Blanc, sem passagem por madeira. Mantendo o perfil da casa, mostra estilo vegetal e austero nos aromas, que se confirma no palato. Mostra profusão de frutas brancas e de caroço maduras, além de notas florais e de ervas frescas. Tem final cheio e persistente, com toques de frutas cítricas maduras e em compota. Álcool 14%. EM