Condessa Noemi Marone Cinzano e Hans Vinding-Diers falam sobre a cultura orgânica e biodinâmica em seus vinhedos italianos e argentinos
Christian Burgos Publicado em 31/03/2009, às 05h49 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h45
É certamente inusitado, uma condessa italiana e um enólogo inglês - que produzem vinhos biodinâmicos na Patagônia - imersos em uma calorosa conversa sobre vinhos em que todos falavam inglês, espanhol... e português. Encontramos a Condessa Noemi Marone Cinzano e Hans Vinding-Diers para uma conversa exclusiva no hotel Fasano antes de degustarmos os vinhos da Bodega Noemía. Noemi morou no Rio de Janeiro quando ainda era jovem para cuidar do marketing da Cinzano no Brasil, Argentina e Austrália.
Hoje, aos 50 anos e com dois filhos, sua ligação com o Brasil permanece nas frequentes viagens ao País para encontrar os amigos e na atenção em querer conversar em nosso idioma. Embalado neste entusiasmo com a nação tupiniquim, Hans - um enólogo que quase foi trabalhar com artes cênicas - arranha bem o português e adora samba, as praias, o Brasil e os brasileiros.
Como entraram o mundo do vinho?
NMC - Estou no ramo do vinho a maior parte de minha vida. Após a morte de meu pai, continuei no ramo quando fiquei com nossa vinícola Argiano, em Montalcino, Itália. Em 2000, Hans se uniu a nós na Argiano, e depois, juntos, iniciamos a Bodega Noemía na Patagônia. Em Argiano, temos uma vinícola grande, com numerosa equipe. Na Argentina, o perfil é outro, somos completamente orgânicos, e somos biodinâmicos. Na Itália, é muito mais difícil impor estes conceitos. São pessoas de mente retrógrada. Já somos orgânicos e estamos planejando ser biodinâmicos também, mas não por marketing e, sim, por um jeito de respeitar a terra e a vinícola.
HVD - Embora tenha passaporte inglês, meu pai é dinamarquês e minha mãe inglesa. Nasci em 1969, em Stellenbosch, África do Sul, em plena região vinícola. Quando tinha quatro anos, mudei para Bordeaux, onde estudei e passei a maior parte da vida. Lá, meu pai possuía um Château, Château de Landiras, e, assim, cresci no mundo do vinho. Aos 18, fui trabalhar numa vinícola na Austrália, foi quando decidi que realmente gostava de fazer vinho. Pois, antes disso, era muito mais interessado em teatro, direção, escrita.
Então você praticamente foi amamentado com vinho...
HVD - Nos últimos 22 anos, fiz provavelmente 44 ou 45 colheitas. Assim, podemos concluir que tenho a experiência de um homem de 50 anos (risos). Definitivamente, é muito interessante, pois fiz vinhos na Austrália, África do Sul, Uruguai, Chile, Argentina, França, Espanha, Portugal, Hungria, entre outros lugares.
Qual o tamanho de suas vinícolas na Itália e na Argentina?
NMC - Argiano é uma das mais tradicionais vinícolas em Montalcino. Temos 50 hectares de vinhedos e 22 hectares na denominação Brunello. O restante do vinhedo divide-se entre Rosso e algumas variedades francesas. Produzimos cerca de 300 mil garrafas, o que é uma produção normal. Na Argentina, na safra 2008, produzimos 2,8 mil garrafas de Noemía, em 1,5 hectare e não aumentaremos, pois trabalhamos com vinhedos muito antigos. Isto quando tudo dá certo, pois, em 2005, por exemplo, não tivemos a safra devido a uma forte geada.
HVD - Também temos o vinhedo de J.Alberto com quatro hectares, e o vinhedo Valle Azul com cinco hectares em outro terroir. Na Patagônia, estamos no Vale do Rio Negro, que possui uma longa história ligada aos vinhedos. O nosso tem 84 anos.
Há como aumentar a produção sem perder a qualidade?
NMC - Não pretendemos crescer, pois, para J. Alberto e Noemía, trabalhamos com vinhedos antigos. No Valle Azul, onde o rótulo é "A Lisa", trabalhamos com uma seleção de diferentes produtores, todos de Malbec, mas tomamos conta do vinhedo.
HVD - Noemía alcançará 3,1 mil garrafas no máximo e, J.Alberto, 10 mil. O máximo que chegaremos com A Lisa é 60 mil. Objetivamos a produção de vinho artesanal, biodinâmicos, de terroir etc, e não a de grande escala.
Por que escolheu Argentina para uma segunda operação?
HVD - Começou em 1998, quando fui consultor de uma companhia de comércio exterior e fui mandado para o Uruguai, Chile e Argentina. Nesta época, não se conhecia a Patagônia. Havia apenas Humberto Canale, com quem desenvolvemos produtos para a Inglaterra e aí compreendi o potencial da área. Tive a oportunidade de provar vinhos "testemunha" da adega de Canale. São garrafas de cada safra que ficam guardadas para o futuro. Provei garrafas desde 1930 até 1998. Percebi que os vinhos eram inacreditavelmente minerais, tinham muita resistência da fruta, muito boa acidez, ótimas características, mesmo não sendo muito bem feitos. Essa foi a confirmação de que aquele era provavelmente um bom lugar.
E como encontraram o lugar perfeito?
HVD - Procuramos por muito tempo e, em 2001, achamos esse velho e abandonado vinhedo, com 1,5 hectare, plantado em 1932. E outros quatro hectares plantados em 1954. Portanto, duas gerações diferentes. O vinhedo estava completamente abandonado, pois o dono anterior só estava interessado em suas frutas. Rio Negro é conhecido por suas frutas, por produzir maçãs de alta qualidade e são, sem dúvida, as melhores peras no mundo. Penso que, se você tem realmente boas maçãs, peras e frutas, também tem boas uvas.
E o clima?
NMC - Há esse clima incrível, porque é no deserto. Temos essa incrível luz durante o dia, 40ºC, que à noite cai para 8/10ºC.
HVD - Estamos no meio do deserto, cerca de mil quilômetros ao sul de Buenos Aires, por volta de 400 a 500 km a oeste do Atlântico, 500 km a leste dos Andes e outros 2.500 km de Ushuaia. Estamos mesmo no meio do deserto. O que nos ajuda a ser orgânicos é que, além deste clima seco, o rio é antigo, com solo aluvial, muito pobre.
E a respeito do suplemento de água? Como vocês lidam com isso?
HVD - Falamos muito sobre mudança de clima e o tema principal sempre acabava sendo a falta de água. Mas, nossa realidade é que temos tanta água à disposição que chego a ficar envergonhado quando falo com outros vinicultores.
Ao contrário da ideia geral de que, por ser deserto, tem de haver falta de água...
HDV - Claro que a água foi reduzida através dos anos, mas ainda estamos falando de 2 mil metros cúbicos por segundo, que vão direto para a barragem, e de lá para o Atlântico. De fato, a água não é utilizada em seu potencial.
NMC - A área do Rio Negro tem cerca de 60 km e, no começo do século XIX, os ingleses fizeram todos aqueles "canalitos". Na Patagônia, você pode inundar os vinhedos no inverno e isto é muito útil por causa da geada. De manhã, nessa época do ano, é comum encontrarmos temperaturas de 2ºC negativos. Você deixa a água correr e previne a geada - provavelmente este é o nosso maior problema por lá, que ocorre tanto no inverno quanto na primavera.
Isso não danifica o solo?
HVD - O que nós tentamos fazer é não irrigar demais, porque ele se torna erosivo. Erosão significa que você está "lavando" os microorganismos. E microorganismo significa vida. Desde que compramos a vinícola em 2004, fomos certificados orgânicos e agora seremos certificados biodinâmicos. O princípio é não utilizarmos a irrigação artificial e fazer nossos próprios compostos e fertilizantes.
O que você usa para fazer seus compostos?
HVD - Todas as coisas locais, tudo, somente dos meus vinhedos: as cascas das uvas, temos vacas e usamos seus dejetos. Acreditamos que uma das bases da biodinâmica é não tirar de algum outro lugar e trazer para cá. Não faz sentido. O que você tem na área, volta para a mesma área. Tudo que estamos tentando fazer agora é limitar a irrigação.
Você sente alguma melhora na qualidade do vinho em mudar de orgânico para biodinâmico?
NMC - Isto tem ajudado muito os vinhedos. Mas, tenho que dizer que o vinho é bom pela qualidade da planta. Não é porque é biodinâmico que vai haver um bom vinho, depende da qualidade dos vinhedos. Com a biodinâmica, estamos ajudando a planta.
HVD - Imagine uma pessoa que tem os pés em um balde de cimento, sem poder se mover, versus ter os pés livres. É essa a diferença. A erosão, pela irrigação, pesticidas, está tirando os microorganismos, ou seja, o solo está compactado. Em outras palavras, as raízes não podem se mexer. Trazendo de volta os microorganismos, você traz de volta a vida. A circulação da planta é bem mais livre, é como fazer yoga.
Você compara muito a planta ao ser humano.
HVD - Imagino a vinha como um ser humano. Então, há as folhas que são os pulmões, você tem as raízes da planta que são responsáveis pela alimentação, e o tronco que é o corpo.
Não há porque dizer que a produção das uvas é biodinâmica, sem seguir a produção de vinhos naturais. Como é essa parte do processo na sua vinícola?
HVD - A filosofia que temos e queremos, é trazer a uva para a garrafa. Trazendo a uva para a garrafa, estamos fazendo uma interferência mínima. A única coisa que realmente estamos pondo nos vinhedos é a atenção. Nossos vinhedos são como um jardim.
NMC - Nossa vinícola trabalha por gravidade, sem bombeamento no processo. O que fazemos nos vinhedos, tentamos fazer na adega. Não estressar as uvas nos vinhedos e depois usar máquinas é contraditório.
HVD - Procuramos não falar muito sobre biodinâmica, enfatizar isso demais, pois não é isso que faz com que nosso vinho seja ótimo. Isso ajuda a melhorar a qualidade. Mas, neste assunto, acho que tudo se resume à conexão. É como os egípcios, que estavam extremamente conectados com o sistema planetário, e à astronomia, e às terras, e às enchentes etc.
E você recuperou isso?
HVD - Sim, acho. A mensagem que está se destacando não é simplesmente enterrar um chifre no solo. É estar conectado e observar. Se você estiver conectado e observar o que está ao seu redor, claro que vai funcionar.