Direto da terra

O solo tem um papel importante no vinhedo? Como ele influencia?

Dirceu Vianna Jr - Mw Publicado em 09/03/2016, às 12h00 - Atualizado às 11h48


São três os papéis do solo: mecânico, físico e químico

O solo tem três papéis importantes no vinhedo: mecânico, físico e químico. O primeiro, mecânico, é o mais fundamental: vinhas, como quase todas as plantas, não são auto-suficientes. Elas precisam estar enraizadas em algo para sobreviver. O solo proporciona apoio para a videira, assim como é um meio através do qual suas raízes podem se expandir. Exemplos em que este papel mecânico do solo pode ser descartado, como em experimentos de viticultura hidropônica ou mais sofisticados – como o uso de diques para servir de quebravento para proteger vinhas na ilha de Pantelleria, na Itália – são extremamente raros.

Sobre os fatores físicos, é a textura do solo, e como isso influencia o suprimento de água para o vinho, que é o mais importante. O dióxido de carbono, a luz do sol e a água são os principais pré-requisitos para a fotossíntese e, enquanto os dois primeiros têm pouco a ver com o solo, a provisão de água é de inteira responsabilidade da terra. O solo tem um papel físico secundário: absorver luz e calor do sol e refletir a energia de volta para a videira em forma de calor durante o dia e quando a vinha estiver na sombra.

Além desses requisitos, alguns elementos são necessários em quantidades menores para o funcionamento da planta: nitrogênio, para a síntese de proteína; fósforo, para a produção de ácidos nucléicos; cálcio, para as paredes celulares; magnésio, para a clorofila; e outros, incluindo ferro, potássio, boro e manganês.

A influência do solo na vinha pode tanto ser positiva (sendo fonte de nutrientes essenciais para a planta) quanto negativa (sendo habitat de diversas pragas nocivas)


Entre os fatores físicos, a textura do solo, e como isso influencia o suprimento de água para o vinho, é o mais importante

O solo ainda possui um duplo papel em nível químico: ele não apenas mantém a disponibilidade desses elementos, mas também fornece o mecanismo através do qual eles podem entrar nas raízes das plantas. A vasta área de superfície de placas e treliças que compõem a argila deixam estes solos com capacidade de trocas iônicas, permitindolhes agir como condutores de minerais para as pontas das raízes da videira, da mesma maneira que a estrutura eletrônica de um metal permite a ele agir como condutor de eletricidade.

Em termos do papel biológico, o solo é o lar de organismos que criam um ambiente adequado para a planta viver. Pode-se dizer que a terra possui uma importância ainda maior no vinhedo, apesar de sua influência não ser sempre positiva. O solo é lar de diversas pragas, incluindo a filoxera, nematóides etc. Todas elas atacam as raízes e são capazes de destruir a planta. Vírus também podem aparecer no solo, daí a prática de fumigar o vinhedo antes de replantar; isso pode causar danos significativos para muitas partes da videira.

 

O vinho depende não apenas da sobrevivência das vinhas para existir, mas, mais do que isso, da natureza da sua fruta para lhe dar qualidade

 


Uma videira precisa de um fornecimento constante de água para funcionar, contudo, é do interesse do viticultor que esse abastecimento seja restrito

É dada muita ou pouca atenção ao solo?

Dados os papéis positivos e negativos, é simples constatar que o solo merece mais do que a atenção dada pelo viticultor. Primeiramente, é assunto de vida ou morte: um solo em que falta estabilidade mecânica, que não retém água, possui um desequilíbrio mineral extremo, ou esteja repleto de pragas insuperáveis fatalmente se provará inóspito para a vinha.

Porém, a produção de bons vinhos é dependente de muito mais do que simplesmente um ambiente capaz de sustentar vinhas saudáveis. O vinho depende não apenas da sobrevivência das vinhas para existir, mas, mais do que isso, da natureza da sua fruta para lhe dar qualidade. Para fazer uma analogia, o cultivador de hortênsias não vai buscar somente um solo em que suas plantas podem sobreviver. Ele vai procurar um que tenha acidez apropriada para gerar a cor das flores que ele quer. Aumente este grau de complexidade e você terá uma ideia da relação entre o solo e a vinha e o sabor de seu produto final.

Fornecimento de água

A maioria dos críticos vai concordar que a questão do suprimento de água tem a maior influência na qualidade de um vinho. Uma videira, obviamente, precisa de um fornecimento constante de água para funcionar, contudo, é do interesse do viticultor que esse abastecimento seja restrito. O excesso de água resultará em vinhas vigorosas, levando a grandes estruturas de copas, amadurecimento ineficiente e sabores herbáceos no vinho.

Isso ainda pode fazer os frutos, se formados, incharem, diluindo a concentração do sabor.Em casos extremos, se o solo fica encharcado, a saúde das raízes – e da vinha – ficará comprometida devido à falta de oxigênio. Além disso, muita disponibilidade de água perto da superfície do vinhedo desencorajará as raízes a penetrarem mais profundamente no sub-solo.

Apesar de esses mecânismos ainda não serem inteiramente compreendidos, parece que existe correlação entre a profundidade da raiz e a qualidade do vinho, possivelmente devido ao aumento da variedade dos tipos de sub-solo que as raízes encontram e dos quais retiram minerais. Essa é a razão pela qual produtores buscam solos bem drenados com capacidade de armazenar e liberar um suprimento constante, mas limitado, de água para a vinha, assim como um quadro de déficit hídrico.

 

A capacidade do solo de refletir o calor não será de interesse de todos os produtores, mas, para aqueles que buscam alcançar maturação extra em suas uvas, isso pode ser uma diferença substancial. O amadurecimento é significativamente ajudado em condições marginais como do Mosel pela presença de ardósia no solo, por exemplo, e mesmo em partes de Châteauneuf os seixos ajudam os vinhateiros a atingir madurez perfeitas das uvas Grenache e Mourvedre.

Não é surpresa que a composição mineral do solo também tenha um efeito no estilo e na qualidade, apesar dos detalhes não serem tão bem compreendidos. Solos alcalinos, baseados em calcário ajudam a promover maior acidez ao mosto, como é o caso em Sancerre – embora eles geralmente sejam favorecidos somente em climas frios em que a acidez é naturalmente alta –, então é difícil tirar conclusões definitivas. No entanto, parece que este tipo de solo é bem inadequado para o cultivo da casta Gamay, já que o elevado teor de cálcio inibe a absorção de manganês, um elemento reconhecidamente importante para a alta qualidade da produção desta uva tradicional de Beaujolais. Os solos graníticos ácidos de Beaujolais, por outro lado, são ideais para isso.

Todo vinho francês é produto do “sagrado solo da França” e os produtores se veem como mensageiros da comunicação do solo através do vinho


A composição mineral do solo também tem efeito no estilo e na qualidade dos vinhos

O gosto do terroir?

Isso pode ser visto pelos produtores como um forte argumento para o solo, tomado-se uma prioridade. Deve-se, todavia, lembrar que a terra é apenas um elemento de um certo terroir. Fatores topográficos e, especialmente, meteorológicos possuem efeitos dramáticos no estilo e na qualidade.

Seria justo dizer que, tradicionalmente, indústrias de vinhos em várias regiões do mundo têm tomado a questão da atenção dada ao solo como “tudo ou nada”. Na França, por exemplo, a terra não é meramente a pedra angular do sistema Appellation d’Origine Protégée (antigamente conhecido como Appellation d’Origine Contrôlée), porém é tida por alguns viticultores como o ingrediente secreto que faz do vinho francês superior a qualquer outro.

O surgimento de vinhos de vinhedos únicos (single vineyard) aumenta a ênfase dada ao local de origem e, por consequência, ao solo

 


Alguns vinhedos têm sido classificados não pelo tipo do solo, mas pelo sistema de somatória de calor de Amerine e Winkler

O solo tende a ser a resposta para qualquer questão complicada. Se alguém pergunta: “Por que este vinho é tão magro, com notas herbáceas de engaço ou desequilibrado?, pode ter como resposta a dada pelos produtores franceses: “C’est le gout du terroir” (É o gosto do terroir). Todo vinho francês, grandioso, indiferente ou ruim, é produto do sagrado solo da França e os produtores são sempre levados a ver-se como mensageiros da comunicação do solo através do vinho. Se isso significa que muito pouca atenção foi dada à maturação, à gestão de copas ou processo de produção, então que assim seja.

A escola de pensamento do Novo Mundo, como é cultivada pelas universidades de UC Davis, na Califórnia, e Roseworthy, na Austrália, assumiu uma visão quase totalmente oposta. Na Califórnia, por exemplo, os vinhedos têm sido classificados não pelo tipo do solo, mas pelo sistema de somatória de calor de Amerine e Winkler. Produtores tendem a ter uma abordagem mais proativa, em alguns casos mais combativa: se um solo está muito seco, é irrigado. Se as uvas têm deficiências, elas são corrigidas na vinícola. Porém, essa aparente indiferença para os detalhes da composição do solo é compreensível.

Vejamos o Napa Valley – situado em uma região de intensa atividade geológica, perto da interface de duas placas tectônicas. Assim, há 150 tipos diferentes de solo em uma pequena área. Tentar desenhar um mapa de vinhedos no estilo borgonhês seria extremamente complicado. Nesse contexto, confiar nos mapas de soma de calor parece muito mais razoável.

Single vineyard

No entanto, cada lado do debate está cada vez mais reconhecendo a importância do outro. Regiões e vinhedos de tipos distintos de solo têm sido descobertos e documentados no Novo Mundo, com a “terra rossa” de Coonawarra sendo um dos pioneiros. Pesquisas sobre solo são conduzidas antes de novos vinhedos serem plantados e a distribuição das diferentes variedades de uvas pelos distintos lotes têm aumentado a influência destas pesquisas. O surgimento de vinhos de vinhedos únicos (single vineyard) aumenta a ênfase dada ao local e, por consequência, ao solo.

No Velho Mundo, a nova visão é que uma certa parte do solo pode ser melhor expressa no vinho por, paradoxalmente, reconhecer outras influências tais como mesoclimas, rendimento e processo de produção. Certos “gouts de terroir” têm sido re-atribuídos a caules não maduros, brettanomyces ou acidez volátil, o que são falhas no processo de vinificação e não bênçãos do solo. Assim, o caráter do local de vinhedos únicos é mais puramente expresso do que nunca foi antes.

O solo é um dos fatores fundamentais que influenciam a natureza de qualquer vinho e a indústria global está adotando uma postura cada vez mais de equilíbrio, reconhecendo sua importância, ao passo que admitir isso é somente uma parte da história.