Como o irreverente Jean Louis Despagne colocou Entre Deux Mers no mapa do vinho no mundo
Arnaldo Grizzo Publicado em 09/01/2019, às 15h00
Pode me chamar de Otávio”. Assim, em bom português, Jean Louis Despagne começa a conversa. Diante da estranheza causada (nem tanto pelo uso do português, mas pelo nome), ele explica que seu nome completo é Jean Louis Pierre Octave Despagne. “Então, no Brasil, Otávio é mais fácil”.
É difícil não notar sua figura durante uma feira de vinho. Calça, camisa e paletó não chamam a atenção, mas a gravata borboleta, geralmente colorida, para completar o figurino, denuncia sua presença logo de cara. Mais que isso, Despagne se sente à vontade quando lhe interpelam em português, respondendo a todos com um pouco de sotaque, mas com grande desenvoltura no idioma.
Não é para menos, há alguns anos ele mora no Brasil. Há pouco mais de uma década, comprou “um pequeno apartamento” em Fortaleza e, aos poucos, foi se mudando para a capital cearense. Por que Fortaleza? “Tem o melhor clima do Brasil e talvez do mundo. Temperatura máxima de 32º C e sempre tem uma brisa. À noite, nunca está abaixo de 25º C e ainda aquela brisa. Muito confortável”, garante.
No entanto, a relação de Despagne com o Brasil é muito mais antiga do que sua mudança para Fortaleza. Depois de terminar o curso de enologia, em 1967, o francês decidiu – como era comum entre os jovens daquela época – viajar pelo mundo antes de começar a trabalhar. Onde desembarcou? No Rio de Janeiro. “Passei um ano entre Brasil, Argentina e até o Canadá. Tudo andando de carona, sem dinheiro, dormindo na rua, na polícia, nos bombeiros, em conventos”, lembra.
Na Argentina, Despagne chegou a trabalhar na Bodega Esmeralda para poder seguir viagem para o Chile. No Chile, encontrou-se com Aurélio Montes, que, na época, nem sequer tinha começado seu projeto em Viña Montes. De carona em carona, o francês chegou ao Canadá e, para poder voltar para a França, fez colheita de tabaco para pagar a passagem. “Não podia pedir dinheiro para o meu pai”.
Para produzir seu ícone, Girolate, Despagne começou a plantar vinhas com distâncias menores, para haver maior competição entre as raízes
Depois do “ano sabático”, o jovem voltou, mas seu pai logo faleceu. A família Despagne tinha uma vinícola em Entre Deux Mers há mais de 250 anos. No entanto, a propriedade não era capaz de gerar renda suficiente para todos. Assim, seu pai havia aberto uma empresa de seguros, além de ser despachante e corretor imobiliário. “Otávio” bem que tentou seguir esse caminho, mas “como era muito ruim em corretagem”, começou a cuidar da vinícola.
Ele lembra que, na época, muitos produtores franceses estavam investindo fora da França. “Mas vi que, depois de algum tempo, eles não estavam ganhando dinheiro, não estavam conseguindo vender os vinhos que faziam fora da França”. Ele então pensou: “A Califórnia, para nós, é Bordeaux”. Assim, decidiu investir na região onde já tinha terras e conhecia bem.
“Em Entre Deux Mers temos terroir de primeira qualidade. O terreno é exatamente o mesmo que Saint-Émilion, mas Saint-Émilion tem uma reputação. Então, eu podia comprar 1 hectare de primeira qualidade por um preço baixo, e estava em Bordeaux”, explica Despagne. Assim, com o tempo, suas posses somam o Château La Tour de Mirambeau, o Château Bel Air – Perponcher, o Château Rauzan Despagne e o Château Mont Pérat, totalizando mais de 300 hectares de vinhedos.
Apesar disso, a região de Entre Deux Mers nunca esteve entre as mais prestigiadas de Bordeaux. Até o século XVII, era um local de produção majoritariamente de grãos. Rodeada por denominações famosas por seus tintos, seus principais vinhos sempre foram os brancos. Despagne lembra que, durante a década de 1960, diante da crise, muitas vinícolas precisaram reduzir custos e começaram a plantar vinhedos com plantas a cada 3 metros ou mais de distância, quando o convencional era cerca de 1 metro. “Eu mesmo arranquei uma parcela para plantar a 3 metros. Isso era um erro enorme”, admite.
A situação só mudaria em meados dos anos 1990. Despagne queria produzir grandes vinhos, mas digamos que não recebia muito incentivo de seus vizinhos de denominações mais aclamadas. “Por favor, não sonha, não tem como fazer um bom vinho em Entre Deux Mers”, teria dito um amigo. Não sem razão, pois, segundo Jean Louis, a densidade influencia diretamente no vinho. Foi nessa época que nasceu a ideia do tinto que colocaria Entre Deux Mers no mapa, o Girolate.
Para seu ícone, em 1998, Despagne e seu diretor de enologia, o sábio Joël Elissalde, plantaram vinhas a 1 metro de distância umas das outras. “Quando você coloca mais competição entre as raízes, a vinha vai sofrer e vai dar uvas menores, com mais concentração. No Girolate, além disso, fazemos uma redução ainda maior do rendimento. O máximo é 3 toneladas por hectare. Então, o vinho já é naturalmente muito concentrado. Não é por ser fermentado na barrica que concentra. Ele pode fermentar na barrica porque já está muito forte”, diz.
Além disso, Despagne pensou em fazer a fermentação alcoólica dentro da barrica. “Meu filho Thibault estava fazendo um estágio na Austrália e, nessa época, tinha bastante produtor que fazia fermentação alcoólica dentro da barrica, depois colocava o vinho em uma barrica nova para fazer malolática e depois ainda dentro de outra barrica nova para envelhecer. Isso não tinha lógica”, pondera.
Despagne já conhecia os benefícios da fermentação em barrica nos brancos e queria aproveitar nos tintos, mas não dessa forma. Em um primeiro momento, tinha receio da temperatura das uvas durante a fermentação. Por isso, comprou “uma máquina que custou quase 100 mil euros para esfriar as uvas antes de colocá-las dentro da barrica”. Em seguida, criou um sistema de vibração para que tudo ficasse equilibrado.
Depois, não queria passar o vinho três vezes por barricas novas. Assim, desenvolveu uma forma de “quebrar a barrica” para tirar as uvas e voltar o vinho para a mesma barrica. “Mandamos dois funcionários para tanoarias para aprender como fechar novamente as barricas, ou seja, o vinho entra na barrica e só sai para o engarrafamento. Assim, a integração entre a madeira é a melhor que se pode imaginar”, explica. Mas o nome Girolate não é à toa. Enquanto fermenta e matura nas barricas, elas giram duas vezes ao dia – com o intuito de produzir taninos mais suaves. Mais recentemente, um Girolate Blanc está sendo produzido com o mesmo sistema.
Girolate se tornou famoso no começo dos anos 2000 depois de ter ganho uma prova às cegas em que estavam alguns dos melhores Châteaux de Bordeaux. Ele é feito apenas com Merlot e fermentado em barricas novas. O vinhedo atualmente é biodinâmico, mas não certificado. Despagne conta que se interessou pela filosofia ainda em meados dos anos 1990, influenciado por produtores norte-americanos. Desde antes, porém, ele já se preocupava com o meio ambiente e as boas práticas empresariais, pois foi o primeiro produtor francês a ter certificado ISO 9001 e 14.001.
Mas Despagne revela que, apesar de querer expandir a filosofia de produção biodinâmica para todos os seus vinhedos (apenas 35 hectares de 300 são biodinâmicos), ele não é um “xiita”. “Já vi produtor não ter colheita por um, dois anos e, depois, no terceiro, a vinícola ser colocada à venda. Então, é preciso prudência. Se tiver um problema maior, faremos tratamento”, conta.
Hoje as vinícolas são administradas por seus filhos, Basaline e Thibault
“Otávio” revela ainda que o Girolate talvez tenha tido influência decisiva na criação de um dos mais recentes ícones da América do Sul, o Clos Apalta. “Ele existe por causa do Girolate, pois Michel Rolland participou dos 10 primeiros anos do nosso vinho e ele dizia: ‘Todos que querem fazer um grande vinho precisam fazer a mesma coisa’”. O famoso consultor é amigo de Despagne e prestou serviços para Mirambeau na época.
Hoje, com mais de 70 anos e vivendo a maior parte do tempo no Brasil, Despagne parece viver despreocupado, pois já delegou tudo aos filhos. “Há cerca de 10 anos, disse que ia embora para o Brasil. Na época, minha filha (Basaline), era presidente do grupo. Fui e voltei depois de três meses. Meus filhos acharam que eu ia voltar para ficar. Mas fui embora de novo [risos]. Agora, eles acham isso normal, e passo cada vez menos tempo lá".
AD 91 pontos
CHÂTEAU TOUR DE MIRAMBEAU CUVÉE PASSION BLANC 2009
Château Tour de Mirambeau, Bordeaux, França (Mistral US$ 53). Branco composto de 60% Sauvignon Blanc, 30% Sémillon e 10% Sauvignon Gris, com fermentação de 50% do vinho em carvalho novo. Os anos de garrafa fizeram bem a esse vinho, que se mostra cheio, refinado e estruturado, mas também fresco e cheio de tensão. Apresenta frutas brancas e de caroço maduras, bem como notas florais, defumadas e herbáceas, além de toques de frutos secos, de resina e de mel. Tem textura quase cremosa e final profundo, com toques cítricos e minerais. Álcool 14%. EM
AD 90 pontos
CHÂTEAU TOUR DE MIRAMBEAU CUVÉE PASSION ROUGE 2010
Château Tour de Mirambeau, Bordeaux, França. Tinto composto de 80% Merlot e 20% Cabernet Sauvignon e Cabernet Franc, com estágio de 12 meses em barricas de carvalho francês. Mostra aromas de cassis e ameixas seguidos de notas florais e de especiarias doces, tudo sustentado por acidez refrescante e taninos de ótima textura. Estruturado, tem bom volume e final persistente, com toques de grafite e de alcaçuz. Álcool 14%. EM
AD 93 pontos
GIROLATE 2005
Château Tour de Mirambeau, Bordeaux, França. Tinto elaborado exclusivamente a partir de Merlot, com fermentação e estágio de 18 meses em barricas novas de carvalho francês. Ainda jovem, mostra frutas negras e vermelhas mais maduras acompanhadas de notas florais, especiadas, de tabaco, de ervas secas e de alcaçuz, que se confirmam no palato. De estilo mais corpulento e untuoso, tem ótima acidez e taninos de textura quase granulada, que trazem sustentação e equilíbrio a toda sua força. O final é muito longo e persistente, com toques de cereja ao licor, chocolate e grafite. Consegue aliar potência, volume, finesse e elegância. Álcool 14,5%. EM
AD 92 pontos
CHÂTEAU TOUR DE MIRAMBEAU SÉMILLON NOBLE 2003
Château Tour de Mirambeau, Bordeaux, França. Branco doce elaborado exclusivamente a partir de Sémillon, com fermentação e estágio em barricas novas de carvalho francês. Mostra aromas de frutas brancas e de caroço maduras e em compota, bem como notas florais, de especiarias doces e de frutas cítricas em calda, além de toques de marmelo e de cera. Cremoso e untuoso, tem bom equilíbrio entre acidez e doçura, ótima textura e final longo, com toques de cascas de laranja e de mel. Álcool 14%. EM