Redação Publicado em 11/08/2020, às 18h00 - Atualizado às 20h06
Pedro Álvares Cabral, Amália Rodrigues, Camões, José Saramago, Vasco da Gama, Dom João VI, Eusébio etc. Portugal possui uma vasta galeria de ícones, mas nada simboliza este país com tanta eficiência como sua culinária e seus vinhos. A simples menção da palavra bacalhau, por exemplo, leva o pensamento a cruzar o Atlântico em um segundo em direção a Portugal. Alguns vinhos também trazem em si este teor evocativo. Nomes como "Barca Velha" e "Pera-Manca" são orgulho nacional, conhecidos por todo cidadão lusitano, mesmo os que nunca os provaram. Esses vinhos alcançaram status não apenas por sua qualidade, mas por sua importância histórica, transcendendo a classe de mera bebida e mostrando que o nobre fermentado é um fenômeno cultural. Em uma de suas cartas, Pero Vaz de Caminha fez a seguinte narrativa: "Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudo em troca de carapuças e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos, e alguns deles bebiam vinho".
Pelos documentos da época, constata- se que o vinho levado nas caravelas, no período das grandes navegações e do descobrimento do Brasil, era normalmente um tinto feito próximo à cidade de Évora, chamado "Pera- Manca". Este vinho, citado em crônicas quinhentistas, teria sido o que Cabral ofereceu aos aborígines ao aportar em solo brasileiro. Segundo os mesmos indícios, o vinho amplamente citado na obra prima de Luís de Camões, Os Lusíadas, também poderia ser o "Pera- Manca". Seu nome se deve ao terreno onde era feito, um barranco com muitas pedras soltas. Diziam que estas pedras balançavam, mancavam. Das "pedras mancas" surgiu o "Pera-Manca".
Um vinho com esse nome existiu até o início do século XX. Produzido pela Casa Agrícola José Soares, o "Pera- Manca" chegou a colecionar importantes prêmios internacionais, como medalhas de ouro em Bordeaux em 1897 e 1898. Em 1920, após a morte de seu proprietário, a vinícola fechou as portas e o "Pera-Manca" desapareceu.
Um vinho com esse nome existiu até o início do século XX. Produzido pela Casa Agrícola José Soares, o "Pera- Manca" chegou a colecionar importantes prêmios internacionais, como medalhas de ouro em Bordeaux em 1897 e 1898. Em 1920, após a morte de seu proprietário, a vinícola fechou as portas e o "Pera-Manca" desapareceu.
Em 1988, o herdeiro da Casa Agrícola José Soares, o Dr.José António de Oliveira Soares, doou a marca "Pera- Manca" à FEA. A partir daí, o produto top da entidade, até então chamado de "Cartuxa Garrafeira", ganhou o nome do ancestral vinho cabralino. A primeira safra do novo "Pera-Manca" chegaria em 1990, encerrando um hiato de 70 anos na história desse vinho.
O "Pera-Manca" só é produzido em anos excepcionais. Nos demais anos, as garrafas são rotuladas como "Cartuxa Reserva". Até hoje a FEA só elegeu as vindimas de 1990, 1991, 1994, 1995, 1997, 1998 e 2001. O volume de produção desse super-vinho varia bastante, ficando entre 15 e 30 mil garrafas ao ano. Sua fórmula não é fixa, mas a base é sempre das castas Aragonez (também chamada de Tinta Roriz no norte de Portugal e de Tempranillo na Espanha) e Trincadeira. Outro diferencial é o tipo de madeira usada. Os tonéis de 3.000 litros de mais de 50 anos substituem as barricas novas de carvalho, tão em moda hoje em dia.
Quando falamos de vinhos míticos portugueses, não há dúvida de que a primazia e a precedência são do "Barca Velha". Esse foi o primeiro - e por décadas o único - vinho de mesa português a alcançar reputação internacional. Criado a partir da safra de 1952 por Fernando Nicolau de Almeida, enólogo da Casa Ferreira desde 1927, o "Barca" é o precursor dos grandes vinhos de mesa feitos atualmente no Douro.
O principal produto do Douro era, e ainda é, o Vinho do Porto. Até a criação do "Barca Velha", os vinhos de mesa da região eram considerados inferiores, feitos com os excedentes de uvas não utilizadas no Porto. Fernando Nicolau de Almeida acreditava que era possível elaborar tintos de mesa com a mesma filosofia de produção dos Portos Vintage.
O Porto é um vinho fortificado, ou seja, sua fermentação é interrompida pela adição de aguardente vínica, resultando em grande concentração de álcool e açúcares. Para conseguir este equilíbrio em vinhos de mesa, Fernando Nicolau de Almeida teve que usar técnica e criatividade. Ao longo de anos fez várias experiências, nas quais recebeu o incentivo de outra lenda da enologia mundial, Émile Peynaud, do Instituto de Enologia da Universidade de Bordeaux. Utilizou uvas de diferentes terrenos, com diferentes altitudes, buscando um maior equilíbrio entre maturação e acidez natural das uvas. Inspirado nos Châteaux de Bordeaux, introduziu a remontagem com bombas e o controle de temperatura na fermentação. Para tal, como na época não existia energia elétrica na região, passou a encomendar barras de gelo, que percorriam grande distância até chegar em sua adega. Outro conceito utilizado, herdado dos Portos Vintage, foi o de produzir o vinho apenas em grandes safras. O primeiro "Barca Velha", da safra de 1952, chegou ao mercado apenas em 1960. Após ele, foram lançadas as safras de: 64, 65, 66, 78, 81, 82, 83, 85, 91, 95 e, neste momento, chega ao mercado a de 99. Ou seja, apenas 12 safras num intervalo de 47 anos. Em alguns períodos, o intervalo entre uma safra e outra chegou a ser de 12 anos (1952-1964 e 1966-1978), o que demonstra o extremo rigor de sua elaboração. Nos anos em que o vinho não atinge a qualidade necessária para ser o "Barca'", ele é rotulado como "Reserva Ferreirinha". Em anos medíocres, no entanto, não há nem "Barca Velha" nem "Reserva Ferreirinha". Em 1983, a Casa Ferreirinha foi vendida à Sogrape, uma das maiores empresas portuguesas do ramo, sendo o 1982, o último "Barca Velha" assinado pelo já falecido Fernando Nicolau de Almeida. A safra de 1983 viria a ser produzida por seu discípulo, José Maria Soares Franco, responsável técnico da casa até hoje.
O "Pera-Manca 2001", atualmente no mercado, (Adega Alentejana, R$ 426,40) tem 14,5% de álcool e é elaborado a partir das castas Trincadeira e Aragonez. Estagia 18 meses em tonéis de madeiras de mais de 50 anos e capacidade de 3.000 litros. Vermelho granada escuro, nariz com muito frescor, boa complexidade, evolui bastante na taça ao longo da degustação, lembrando muitas especiarias doces (baunilha, alcaçuz), frutos maduros, algo vegetal (tabaco e musgo) e toques animais. Paladar de bom corpo, extremamente macio e aveludado, taninos finos, longo. No nariz é excelente, fica apenas a dúvida se evoluirá por muito tempo, pois a acidez é discreta e os taninos estão totalmente prontos.
O "Barca Velha 1999", safra que acaba de ser lançada (Zahil, R$ 600), levou sete anos para chegar ao mercado. O ano de 1999 marca uma mudança de estilo do "Barca Velha". Diminuiu-se a quantidade de Tinta Roriz no corte (de 40% para 30%), aumentado a participação de Touriga Nacional e Touriga Franca (de 20% para 30% cada), além do acréscimo de 10% de Tinto Cão (uva que dá elegância), onde antes eram usadas as menos nobres Touriga Barroca e Tinta Amarela. Esta safra também marca a primeira vez em que as uvas são totalmente provenientes da nova propriedade da casa, a Quinta da Leda, substituindo a Quinta do Vale Meão. O resultado é um "Barca Velha" com uma personalidade inconfundível, mas com notada influência da modernidade, nos taninos mais prontos e doces, no toque frutado e no uso da madeira. O líquido é rubi violáceo opaco. O nariz é elegante e intenso, a Toriga Nacional com violetas, além de bastante fruta madura, couro novo, tabaco, cedro, especiarias da madeira e um ótimo frescor. O paladar é volumoso, ainda marcado pela madeira, taninos mais prontos e doces (resultado da mudança no corte), equilibrado com boa acidez, muito longo e elegante. Este foi o "Barca Velha" mais pronto na época de seu lançamento que já provei. A mudança de estilo que essa nova safra possui é óbvia. É possível que os tradicionalistas torçam o nariz, mas a qualidade continua.
Português desde a raiz
"Todo vinho seria Porto, se pudesse" provérbio português
Menos conhecido do grande público, o "Quinta do Noval Nacional" é o vinho português mais cobiçado no mundo. O preço e a raridade desse Porto o colocam no mesmo patamar de nomes como "Pétrus" e "La Romanée Conti".
O seu "Vintage Nacional 1931" foi eleito um dos 12 vinhos do século pela publicação americana Wine Spectator.
Disputadas em leilões, garrafas do "Vintage Nacional 1963", para muitos o ano de sua mais perfeita expressão, podem ultrapassar a cifra de 3 mil euros cada. Enquanto isso, exemplares da mais recente, porém não menos cotada, safra de 2000, saem por cerca de 1,5 mil euros, quando achados.
A história desse objeto do desejo começa em 1715, data do primeiro registro da Quinta do Noval, uma propriedade de 145 hectares, situada na encosta sul do vale do rio Pinhão, um dos locais mais privilegiados do Douro. No final do século XIX, a região foi duramente atacada pela praga Phyloxera, que destruiu muitos parrais, incluindo toda a propriedade da Quinta do Noval. A empresa foi à falência e mudou de mãos em 1894. O novo proprietário, António José da Silva Júnior, reconverteu os vinhedos, enxertando as vinhas portuguesas em raízes de plantas americanas, resistentes à praga. O trabalho foi concluído por seu genro, Luís de Vasconcelos Porto, que decidiu plantar um pequeno vinhedo de apenas 2,5 hectares em seu melhor terreno, utilizando o "pé franco" (plantio com raízes originais). Apesar de proporcionar líquidos mais concentrados, esse método é arriscado, pois deixa as plantas vulneráveis à praga Phyloxera.
O vinho produzido ali, pela primeira vez em 1925, foi um Porto Vintage batizado de "Nacional". O nome se deve ao fato de utilizar parreiras com raízes nacionais e não o artifício importado.
Durante seus quase 300 anos de história, esta Quinta pertenceu à apenas quatro famílias, até ser comprada em 1993 pela multinacional francesa AXA Millessimés. A empresa elabora, sempre com alto nível de qualidade, toda a gama de Portos: Ruby, Tawny, LBV etc. Na gama dos Vintages, além do "Nacional", produzem o "Quinta do Noval" comum e o "Quinta do Sival" (sua segunda marca, lançada há alguns anos com grande sucesso). A quantidade de Nacional produzida é mínima, cerca de 2.400 garrafas ao ano. Para se ter uma idéia, o "La Romanée Conti" tem uma produção que equivale ao dobro dela, e o "Château Latour" faz 100 vezes mais vinho, o que torna cada garrafa do "Quinta do Noval Nacional" tão rara quanto cara.
O cardeal dos vinhos portugueses é longevo. Normalmente está pronto aos 10 anos de idade, mas chega bem aos 20 anos, e pode viver bem mais. Sua produção gira em torno das 50 mil garrafas ao ano. Uma curiosidade é a origem do nome "Barca Velha". Nasceu de um vinhedo na Quinta do Vale do Meão, uma das quintas que forneciam uvas para a mescla do vinho. Nesse vinhedo, localizado na margem do rio Douro, ficava uma velha barca, usada para cruzar o rio. O interessante é que as uvas cultivadas ali eram brancas, da casta Malvasia Rei, que, naturalmente, jamais foram utilizadas na elaboração desse vinho mítico.
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