O pão que tomou chuva

Antes do futebol, a cerveja é a preferência nacional; e todo brasileiro tem alguma dica sobre a melhor maneira de apreciá-la. ADEGA mostra as dela.

Redação Publicado em 11/11/2005, às 10h06 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h43

Sabe-se que o organismo humano produz espontaneamente, durante a digestão, uma quantidade de álcool vital à sua sobrevivência, não sendo necessária a ingestão. Fato amplamente contrariado pela história da cultura. Até hoje não existiu uma única civilização, nem entre as primitivas, nem entre as evoluídas, que não tivesse produzido uma bebida alcoólica, quando não duas, ou dez. Assim a maioria dos povos produzia e consumia, concomitantemente, mais de uma bebida, sendo as mais antigas e difundidas, o vinho e a cerveja.

A exemplo de antigos e contemporâneos, enófilo notório, me confesso também um ocasional bebedor de cerveja, de pouca freqüência e ainda menor resistência, mas sabedor de seu ritual e que não o faz por alimentação, remédio, rito ou culto, nem por desafio ou penitência, mas, como deve ser, por puro prazer. Após árduas horas diárias degustando vinhos, um gole de uma bebida mais leve e descompromissada é uma permissão inegável.

A origem da cerveja se confunde com a do pão, sendo impossível determinar com exatidão. Remonta a 7 ou 8 mil anos. Na antigüidade, descobriu-se que mastigando o trigo e deixando-o secar ao sol, formavase uma massa que poderia ser guardada para ser consumida no inverno. A massa foi molhada por acaso e, por isso, fermentou naturalmente. A cerveja é, então, um pão que tomou chuva.

Como acontece com o futebol, no Brasil todos são técnicos em cerveja. Todo brasileiro tem sua própria escalação da seleção e também dá aulas de como beber uma loura gelada, ensinando como servir, a temperatura ideal, o tipo de copo ou caneca, se clara ou escura, com ou sem colarinho. Para unificar o conhecimento, esclarecemos os principais pontos:

#Q#

Copos: Devem ser transparentes, de vidro fino, para que o bibente possa apreciar o estimulante e dourado líquido. O melhor formato é o ovalado e alongado, para reter os aromas e ajudar a boa formação da espuma e, com base e haste, para evitar que líquido esquente com o contato das mãos.

O tamanho do copo é uma função da sede do zitolibador, da temperatura ideal para o tipo de cerveja em questão e da temperatura do ambiente. É fundamental que os copos sejam bem limpos, pois pequenos resíduos de gordura ou detergentes prejudicam a espuma. O melhor seria lavá-los com a própria bebida a ser provada. Gelar previamente o copo é uma boa prática, convém, contudo, molhar o seu interior depois de gelado, assim as paredes ficam lisas, deixando o líquido descer macio.

Temperatura: Nós, brasileiros, temos por hábito beber a cerveja gelada demais. Muitos só aceitam a garrafa quando ela chega embaçada de tão fria. Se a loura estiver "estupidamente gelada", prejudicará tanto a formação da espuma, quanto irá adormecer as papilas gustativas. O ideal seria de 4 a 6oC para as cervejas mais leves, como a Bavária Pilsen; de 6 a 8oC para as tipo Pilsen Premium, como Skol, Brahma, Antárctica e Bavária Premium; de 8 a 10oC para as Super Premium, como a Bohemia; e de 10 a 12oC para as marcas importadas de alta fermentação, como a belga Corsendonk.

Espuma: Tomar cerveja sem colarinho é uma heresia, a alma dessa bebida está representada em sua espuma. Dois dedos é o ideal para reter os aromas e evitar a liberação do gás. Ela deve ser consistente e densa. Quando cremosa, revela a persistência e o bom estado da bebida.

Visual: Avalia-se pureza, cristalinidade e coloração. Se está brilhante ou turva, se há partículas em suspensão. A cor vai de castanha loiríssima à preta.

Aroma: Para avaliá-los, agite o líquido no copo. Aproxime lentamente do nariz para sentir o odor numa distância maior e em seguida mais próximo. Os aromas característicos lembram, naturalmente, malte e lúpulo, matérias-primas da fabricação da cervejas. Podem ser notados muitos outros, como frutas e caramelo.

Sabor: Quanto mais jovem for consumida, melhor será seu sabor. Na boca, verifica-se o equilíbrio, corpo, acidez, doçura, amargor e teor alcoólico, que devem ser harmônicos - no que chamamos de "descer redondo". O teor de gás deve passar uma sensação refrescante e agradavelmente picante na língua. O amargor, provocado pela adição do lúpulo ao mosto, deve ser perceptível, fino e agradável. Os europeus usam lúpulo mais forte, enquanto o gosto dos brasileiros é por cervejas menos amargas.

Conservação: Este é o problema das importadas encontradas por aqui. Cervejas viajam mal, sofrem com o calor e com o chacoalhar. As garrafas devem ser guardadas em pé, em lugar escuro e fresco, fora da geladeira. Depois de geladas, devem ser consumidas. Nunca coloque-as direto no freezer, pois a violência do congelamento acabará com o ciclo da bebida. Em caso de pressa, use um balde de gelo com sal, que precipita a ação do frio.

A lata: Muitos acham que ela interfere no gosto. Segundo os especialistas, a atual, de alumínio, não deixa gosto, nem quando amassada. O mito se deve às antigas, de folha de fl andres. A cerveja em lata envelhece um pouco mais rápido e costuma ter menos gás, para evitar o estufamento durante a pasteurização. Por outro lado, protege melhor o líquido do Sol e gela mais rápido. Seja você um consumidor assíduo ou bissexto, a preferência nacional lhe dará muito mais prazer ao tomar esses cuidados.

Especialíssimas por Tatiana Fraga

Assim como os vinhos, há muitas cervejas elaboradas com ingredientes específicos e que são dignas de degustação. Ao contrário das pilsen, produzidas industrialmente e em grande escala, as cervejas especiais, tradicionalmente feitas apenas para os monges na Bélgica, são o resultado de um trabalho cuidadoso, comparável à produção dos melhores vinhos.

Segundo Xavier Depuydt, cervejólogo belga, "as cervejas são para os belgas o que os vinhos são para os franceses. Há dois tipos de cervejas: as que matam a sede e as específicas para degustar". Essas são o resultado da união dos melhores ingredientes, à fermentação natural e ao armazenamento em barris de madeira durante três anos, para só enfim serem engarrafadas. "A fabricação das cervejas especiais requerem muita paciência, pois não temos o controle da natureza, do clima, do solo", afirma Depuydt.

Na Bélgica, atualmente, existem 85 tipos de cervejas especiais, "os belgas estão mais preocupados com a qualidade do que com a quantidade. As microcervejarias não têm concorrentes, não brigam com as grandes". Depuydt acredita ser esse um dos caminhos para o mercado atual: "Na Europa e na América do Norte, já existem muitas pequenas cervejarias que fazem cervejas de qualidade. Recentemente eu experimentei uma inglesa maravilhosa, Utopia, uma bebida que já é quase um licor. Os ingredientes são selecionados criteriosamente para que a bebida alcance o aroma desejado, de queijo, de casca de laranja ou de chocolate", finaliza.