Um dos Châteaux mais antigos e notáveis de Bordeaux, Cantemerle ficou marcado pela inclusão tardia na lista dos Grand Cru Classés de 1855
Carolina Almeida Publicado em 04/05/2016, às 16h00 - Atualizado às 14h22
A história é a responsável por eternizar fatos, pessoas e lugares, mas, às vezes, ela também é traiçoeira. Um pequeno "deslize" e pronto: um trabalho de séculos pode perder todo o valor. Em menores proporções, foi isso que aconteceu com o Château Cantemerle. Apesar dos séculos de tradição, tanto na vitivinicultura quanto na nobreza da Idade Média, ele sempre será lembrado por ter sido o último incluído na classificação de Bordeaux de 1855. Em algumas listas há um asterisco ao lado do Château, em menção à dita controvérsia em relação à sua inclusão, que alguns ainda acreditam que não passou de um lobby muito bem-feito da proprietária.
Desde o início o Château desempenhou um papel significativo na França. Junto com outros castelos, fazia parte de um cordão de isolamento que protegia as colinas de Médoc, que ficavam a pouco mais de um quilômetro de distância do Château atual. No século XIII, quando a região da Aquitânia ainda pertencia à Inglaterra, o Lorde de Cantemerle foi convocado pelo rei Henrique III na batalha contra a França, mas acabou perdendo a guerra, o que, por sorte, não gerou maiores consequências. Seu domínio permaneceu intacto e sob sua tutela.
Anos mais tarde, em 1354, já sob o comando de seu filho, houve a primeira atividade vitivinícola no local. Na época, o Lorde de Cantemerle usava tonéis de vinho para o pagamento de dízimos, mas a produção não ia muito mais longe. Como todo o Médoc concentrava suas áreas férteis no plantio de cereais, havia pouco espaço para qualquer outro cultivo. No Cantemerle foi assim até o final do século XVI, quando Jean de Villeneuve, segundo presidente do Parlamento de Bordeaux, comprou a propriedade.
Propriedade pertenceu ao Lorde de Cantemerle, que servia ao rei Henrique III, quando a Aquitânia ainda estava sob domínio inglês |
Essa mudança guiou uma outra transformação. O novo proprietário, livre das regras dos senhores feudais e sem imposições de produção, passou a investir no cultivo de vinhas. A família Villeneuve controlou o Château, um dos mais antigos de Bordeaux, por séculos, e iniciou uma tradição no cultivo das uvas. Os anos foram passando e o nome "Cantemerle" foi se consolidando tanto no país quanto em mercados internacionais.
Durante as décadas e séculos seguintes, os herdeiros se empenharam em manter a qualidade dos vinhos em seu mais alto patamar. Na década de 1840, sob o comando de Caroline de Villeneuve- -Durfort, o Château sofreu uma série de modificações que mudaram a maneira de como a propriedade era vista. Caroline começou demolindo o antigo castelo e erguendo um elegante Château. A partir daí, investiu pesado no avanço da região e da vitivinicultura em geral, particularmente no que dizia respeito ao controle de doenças e pragas. Uma em especial, o oídio, foi fortemente combatida pela família Villeneuve de Durfort, a primeira a testar, em seus vinhedos, uma nova técnica de proteção, que deu ao autor uma série de prêmios.
O frenesi em torno dos vinhos Cantemerle era tanto que outros vinicultores das redondezas começaram a usar o mesmo nome - que, na Idade Média, caracterizava o "feudo" e não a propriedade em si - em seus próprios vinhos. Em 1845, houve um processo que ficou famosíssimo em todo o departamento de Gironde, envolvendo os Villeneuve e Pierre Chadeuil, dono do Château Pibran. Aproveitando-se do sucesso dos vinhos ao lado, o produtor, cuja propriedade era vizinha ao Cantemerle, passou a rotular seus vinhos como "Chadeuil Cantemerle Château Pibran", alegando que Cantemerle era uma designação de terras muito maiores do que as da propriedade dos Villeneuve e que, por isso, teria direito de usá-la. No final das contas, Chadeuil perdeu o processo, foi obrigado a tirar o nome de seus rótulos e acabou dando ainda mais notoriedade ao Château Cantemerle.
Depois desse contratempo, o amor de Caroline de Villeneuve-Durfort pelo vinho levou o Château ainda mais longe. Em 1855, houve a histórica classificação dos vinhos de Bordeaux, mas, por ironia do destino, o Cantemerle não estava lá. Apesar de ter tradição e reconhecimento para figurar na lista, os corretores não tinham acesso ao histórico de preços dos vinhos e, sem isso, seria impossível classificá-los.
Durante muito tempo o Cantemerle comercializou seus vinhos para mercados internacionais, especialmente a Holanda, razão de não haver histórico de vendas disponível. Após a divulgação do ranking, então, Caroline reuniu um dossiê que continha todas as vendas desde o início do século e enviou ao Sindicato dos Corretores, exigindo que sua propriedade estivesse, ao menos, na lista dos Cinquièmes Crus. Como os vinhos Cantemerle foram vendidos num preço mais elevado que os do último da classificação (Château Croizet-Bages), ele foi incluído na lista no início de 1856.
Depois de intervenção, Château foi incluído na lista dos Premiers Grand Crus em 1856
Em 1981, quando passou a ser controlado pelo Grupo SMABTP, o Château recebeu um investimento de US$ 8 milhões e expandiu sua área de plantio, que era de 33 hectares, para os atuais 90, dos quais 87 são produtivos. O Cantemerle prioriza a plantação de Cabernet Sauvignon, que ocupa cerca de 50% da área cultivada. Os outros 50% ficam por conta da Merlot, com 40% da área de cultivo, e da Petit Verdot e Cabernet Franc, que dividem os 10% restantes.
As vinhas possuem, em média, mais de 30 anos, com densidade de 9.600 pés por hectare e rendimento de 50-55 hectolitros por hectare. O solo de lá, uma mistura de sílica e cascalho, unido com o microclima, produz vinhos de cor brilhante, buquê poderoso e marcado pelo aroma de baunilha proveniente da passagem de 16 meses pelo carvalho. A produção anual é de pouco mais de 35 mil caixas. Destas, 25 mil são do primeiro vinho, Château Cantemerle, e cerca de 12.500 do segundo, Les Allées de Cantemerle.