Ostras, aspargos e espumantes. Uma brincadeira muito séria que fez os degustadores pensarem quatro vezes antes de bater o martelo.
Redação Publicado em 19/12/2005, às 13h45 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h43
Estácio de Sá fundou a cidade do Rio de Janeiro em 1565, e os vinhos espumantes existem desde o século XVII. Demorou séculos, mas aconteceu. Finalmente a Cidade Maravilhosa apaixonou-se pela criação de Dom Pérignon. E, ao que tudo indica, é namoro pra casar. O local do enlace já está definido e o padrinho também. Será em Ipanema e a união será abençoada com o sotaque italiano de quem apresentou oficialmente o casal, Danio Braga.
Não poderíamos fazer um Enogourmet de início de verão sem escolher como tema os vinhos espumantes. A escolha do local também foi óbvia. Desde que foi inaugurada em setembro, em Ipanema, a Xampanheria (Rua Paul Redfern 37, tel.: (21) 2529-6323) está "bombando", ou seria "espocando". O proprietário é Danio Braga, que já tem seu nome escrito na história do vinho no Brasil, não apenas por ser criador da Associação Brasileira de Sommeliers (fundada no Rio de Janeiro em 1983), mas também por ser um dos introdutores da enogastronomia no Brasil.
Os espumantes levam a fama de combinar com tudo à mesa. Em parte isso é verdade, já que são muito versáteis por sua boa acidez, pela ausência dos taninos que caracterizam os vinhos tintos e, não devemos esquecer, por sugestionamento, já que borbulhas animam qualquer mesa, fazendo tudo parecer bom. Vale enfatizar que, é possível sim, acompanhar todo um jantar com espumantes, mas dificilmente com o mesmo espumante. Para que isso fique bem claro para a prova prática, escolhemos quatro espumantes bastante distintos e que representam muito bem o que se acha em nosso mercado: um espumante brasileiro, um Prosecco italiano, um Franciacorta (espécie de realeza dos espumantes italianos) e, é claro, um legítimo champagne
Como pratos, escolhemos um clássico e outro bastante ousado. Começamos com ostras, em três formas, gratinada, empanada e in natura. Depois arriscamo-nos com aspargos, uma combinação sempre difícil, acompanhado de um risotto, feito também de aspargos. A mesa de jurados-comensais foi composta por Vanda Klabin (curadora de arte e membro da confraria Companheiros da Boa Mesa), Paulo Bertazzi (empresário e membro da confraria Companheiros da Boa Mesa), Amandio Aleixo Correia (Diretor da Comunicação Estratégica), Marcos Bittencourt (diretor da revista ADEGA) e pelo chef Danio Braga
Os jurados: Danio Braga, Paulo Bertazzi, Vanda Klabin, Marcelo Copello, o sommelier da casa Marcos Lima (de pé), Marcos Bittencourt e Amandio Aleixo Correia |
A teoria por Guilherme Corrêa* | ||
Os espumantes normalmente nos remetem às "harmonizações psicológicas", que funcionam mais pelo seu irresistível apelo festivo, do que propriamente pelo sucesso técnico da sua interação com um alimento. Na verdade, os vinhos espumantes exigem, pelas suas características intrínsecas, pratos de estrutura de leve a moderada, não excessivamente aromáticos ou especiados, não transbordantes em suculência ou untuosidade, não ricos em elementos de dureza como amargor, acidez e salinidade e, principalmente, que apresentem um conforto de maciez na tendência ao doce ou na presença de gordura em estado sólido. Se imaginarmos o efeito de um vinho espumante numa degustação, fica fácil imaginar a razão destes preceitos citados acima: de leve para meio-encorpado em estrutura, com aromas finos, não particularmente potentes, de um frescor acentuado, potencializado pelo gás carbônico, o que estimula a nossa salivação. Esse equilíbrio sempre pendente para o lado da dureza da acidez, que pode ser mais ou menos balanceado pela dosagem de açúcar no licor de expedição (o teor alcoólico normalmente baixo não pesa a balança o suficiente para a maciez), é que vai definir o perfil de harmonização dos espumantes. A incorporação de um ovo com gema mole e manteiga derretida, além de aumentar a estrutura de sabor e levar-nos para o lado da franciacorta e do champagne, impõe um sério problema: traz gordura em estado líquido (untuosidade) e não sólido, a qual é normalmente limpa da boca com álcool ou taninos... Ainda assim, a maior austeridade do champagne em face da maior generosidade de fruta da franciocorta, dá a esta última mais subsídios para uma harmonização menos conturbada, isso se o caráter sensual dos espumantes não falar mais alto, como de praxe, varrendo qualquer preceito técnico para debaixo da mesa e levantando mais uma vez o velho mote: "espumante vai bem com tudo!". * Guilherme Corrêa é sommelier formado pela Associazione Italiana Sommeliers. |
A prática
O primeiro prato - Texturas de ostras (gratinada, empanada e in natura).
Os chefs Neto Garaventa e Danilo Braga |
As ostras gratinadas em zabaione de champagne estavam muito saborosas, em sua untuosidade e cremosidade. As fritas estavam meio borrachudas (depois foram depostas por outras mais crocantes). As in natura enfatizaram o iodo e a textura suculenta. Em minha opinião, o champagne ultrapassou as ostras com sua presença marcante, enquanto o Adolfo Lona pareceu pesado demais. O prosecco, por ser o mais macio, não brigou, mas também não conversou com os moluscos. O franciacorta foi o que se saiu melhor, por estar em um meio-termo de acidez e cremosidade, se equilibrou melhor com o prato. Paulo, Marcos e Danio concordaram com minha escolha, enquanto Vanda e Amandio não duvidaram em apontar o champagne que, por sua austeridade, seria o único a rivalizar com o prato.
O segundo prato - Aspargos a Bismarck (com ovo de codorna frito), acompanhado de risotto.
Ao nos prepararmos para enfrentar os aspargos aconteceu algo inesperado: o consumo do champagne Laurent-Perrier foi tão entusiasmado que a garrafa foi exaurida. Na falta de outra do mesmo produtor prosseguimos a prova com o champagne Drappier Zéro Dosage (Zahil). 100% Pinot Noir, com zero grama de açúcar. Encorpado e concentrado, o mais seco da noite. Os aspargos mantiveram a fama malvada e dificultaram nossa tarefa. Com o espumante Lona, o gosto metálico apareceu; o champagne tendeu à aspereza e amargor e o Prosecco de novo, foi o mais neutro. O Franciacorta, como que em uma corda-bamba, equilibrou-se para conquistar o prato. Foi proclamado vencedor. A ala masculina em peso acompanhou minha opinião. Para o chef Danio, o nobre espumante da Lombardia foi o único a conseguir neutralizar o caráter fortemente vegetal do aspargo, agravado pela gordura do ovo, enquanto o Prosecco e o Adolfo Lona pareceram acídulos demais.
Vanda, por outro lado, não abriu mão de seu champagne, por sua maior estrutura e presença. Assim chegamos ao final de uma grata prova, com a sensação já esperada pelos que brindam com borbulhas, o mais puro júbilo. Tin-Tin!
#Q#Os vinhos da noite
Prosecco Brut Rive di San Floriano 2004, Nino Franco, Veneto-Itália (Expand).
100% uvas Prosecco. Amarelo palha claro, com perlage fina e abundante.
Aromas de amêndoas, abacaxi, limão e maçãs. Bom corpo, concentrado, excelente
acidez. Final longo. Dos vinhos da prova foi o com maior sensação de maciez.
Franciacorta Satèn Ante Omnia 1999, Majolini, Lombardia-Itália (Cellar).
Elaborado com uvas 100% Chardonnay, pelo método Champenoise*, com 30 meses
em autólise. A denominação Satèn significa acetinado. Palha claro, perlage
muito fina e abundante. Aromas de leveduras, frutas maduras e baunilha.
Lembra ligeiramente um Chardonnay barricado. Muito elegante e equilibrado
na boca.
Champagne Brut Laurent-Perrier, Champagne-França (Aurora). 45% Chardonnay,
40% Pinot Noir e 15% Pinot Meunier, três anos em autólise*. Palha com
reflexos dourados, perlage muito fina e abundante. Aromas de maça, frutas
cristalizadas, amêndoas, minerais, manteiga e gengibre, com toques de
evolução. Paladar encorpado, boa acidez, cremoso. O mais austero da prova.
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A primeira vez a gente nunca esquece por Marcos Bittencourt* | ||
Que medo! Eu hoje convivo quase diariamente com o mundo do vinho, porém (ainda) não entendo nada dele... Por isso, essa foi a minha primeira sensação ao me sentar numa mesa cheia de conhecedores: como me comportar? O que fazer? Como segurar a taça? Como cheirar o copo? Como falar sobre os taninos macios (ou seriam suaves?), sobre o gosto de grama recém-cortada (ou mesmo pedra de isqueiro... juro que ouvi isso de um de nossos comensais se referindo a julgamentos que ele já ouviu em suas inúmeras mesas degustativas). Bem, minha solução foi dizer a verdade: sou um eno-idiota (neologismo que se aplicou muito bem àquela situação). Essa realidade, claramente colocada, me permitiu participar de uma noite muito agradável (por que não dizer inesquecível?) de uma forma mais leve, sem a cobrança que seria normal sobre uma pessoa que trabalha numa revista de vinhos. Saindo do susto inicial, já relaxado pela minha confissão e ajudado por alguns goles de espumantes, aliado a bom papo, excelente comida, pude perceber claramente o poder socializante do vinho e de seus rituais. Juro! Saí de minha primeira experiência como um novo homem, quase trocando minha religião simplista de chop-pista (outro neologismo) pela complexa doutrina que é o vinho! Posso também assumir que em muito o vinho transcende o conhecimento técnico. Basta respeitá-lo e sentir seu gosto, descomplicadamente, prazerosamente. Acho que na próxima já posso levar um isqueiro, sem pedra! |
*Marcos Bittencourt é diretor da Revista ADEGA