Os segredos do Terroir do ícone The Macallan

O Rolls-Royce dos uísques é feito de forma única

Christian Burgos Publicado em 22/12/2018, às 17h00

Foto: Divulgação/TheMacallan

Durante uma degustação, nota-se que o discurso sobre o malte whisky tem muito a ver com o do vinho: visual, aromas, boca, estrutura, acidez, taninos, madeira, blend e, surpreendentemente, terroir. Seria um discurso criado especialmente para atrair enófilos?

O grupo Edrington, proprietário da The Macallan – que também possui outras marcas importantes, como Famous Grouse, Cutty Sark e Highland Park – mantém esse discurso familiar ao vinho no site internacional da empresa. A destilaria tem até um “château” que ilustra o rótulo do The Macallan, a Easter Elchies House, construída em 1700.

Neste ano, em viagem para a Escócia, fomos em busca de uma resposta para esta questão de natureza existencial: em whisky existe terroir?

Viajar para a Escócia é como passar uma semana na sala do cinema. Algo como voltar a visitar um lugar onde nunca estivemos. Nossa jornada começou em Edimburgo, a capital do país, com primeira parada para almoço num pub que surpreendentemente servia Casillero del Diablo. Não cedi à tentação e aderi à cultura local com um pint de uma cask ale (cerveja com passagem por barrica) para acompanhar uma sheppard’s pie.
Ao fim do dia, um tour no The Scotch Whisky Experience é a forma certa de receber a informação inicial para a jornada. Ali, além de aprender o básico sobre whisky, pudemos visitar a incrível coleção do brasileiro Claive Vidiz, que amealhou quase 3.400 garrafas raras para sua coleção durante 35 anos. Elas ocupam lugar de honra ao ¬ nal do tour – e, segundo Claive, “hoje voltaram para junto da família”.

No dia seguinte, deixamos “Hogwarts” para trás e nos aventuramos pelas terras de “Coração Valente”. Rumo às Highlands passamos pela Glenturret Destillery. Fundada em 1775, é a mais antiga destilaria em atividade da Escócia e seu tour “The Famous Grouse Experience” foi eleito em 2015 a melhor atração turística de whisky da Escócia.

Ali relembramos que o whisky é formado apenas por grãos, água e levedura, e começamos a entender como esses três elementos, combinados a muito calor e paciência, criam matizes infinitas baseadas nos grãos selecionados e maltados, no formato e no ângulo do topo dos alambiques, no tempo de maturação e, sobretudo, nos tipos de barricas utilizadas.

Parâmetros

O Scotch Whisky ou whisky escocês é um malt whisky ou grain whisky produzido em território escocês seguindo normas específicas. Ele era originalmente feito apenas com cevada maltada, mas, no ¬ m do século XVIII, as destilarias começaram a utilizar também trigo e centeio.

Ainda para merecer o título, o destilado deve passar por amadurecimento mínimo de três anos em reservatórios de madeira menores que 700 litros e alcançar ao menos 40% de volume alcoométrico. Sempre na Escócia. A idade expressa na garrafa representa a idade do componente mais jovem do blend. Mas encontramos o whisky escocês em cinco categorias: single malte, single grain, blended malte, blended grain e blended Scotch Whisky. Em nosso destino, The Macallan, apenas o malte de cevada é permitido e qualquer whisky da casa passa por um mínimo de 10 anos de amadurecimento.

Podemos definir o master blender (o enólogo do whisky) como um mestre de cave de Champagne, um guardião do estilo da casa, capaz de garantir que os fãs da marca tenham a segurança de reconhecer seu whisky predileto ano após ano. Mas o master blender também tem a responsabilidade de criar releituras do estilo em coleções limitadas e muito exclusivas a partir de barricas selecionadas.

Mais de 200.000 barricas estão à disposição para que o master blender execute seu trabalho, e a capacidade de lembrar das nuances de cada uma delas torna esse pro¬ ssional o colaborador mais valioso da destilaria. Ser o master blender de uma das mais cultuadas destilarias da Escócia é ser praticamente um pop star. Mas esse rótulo não combina com a personalidade de Bob Dalgarno, que está mais para um ¬ lósofo da vida e da gestão de pessoas.

Copo para o fantasma

Perguntado sobre quando se apaixonou pelo whisky, respondeu prontamente: “Não sei se sou apaixonado pelo whisky, mas, sim, que sou apaixonado pelo meu trabalho”. A responsabilidade e a honra pela tradição que representa parecem conduzi-lo na tarefa diária de fazer blends com whiskys que foram produzidos há mais de 10 anos, e destilar novos batches que muito provavelmente serão utilizados apenas por seu sucessor – numa longa cadeia de master blenders que asseguram os insumos para o sucesso da próxima geração.

Dalgarno chega calado, num misto de timidez e desconfiança, mas, ao longo do jantar, vai se abrindo e revelando uma ¬ filosofia de vida e trabalho que se entrelaçam a cada frase. Curiosamente, o que solta sua língua não é o destilado, visto que deixou seu copo intocado durante as quase seis horas que passamos conversando sobre whisky e sobre a vida. Sempre utilizando o termo “força da história”, ele diz que quando está fazendo blends deixa um copo vazio para o fantasma, pois “fazemos nosso trabalho com pessoas do passado”.

Ao mesmo tempo em que trabalha num ambiente de tradição, os novos single maltes são espaço para criação e inovação. Essas séries limitadas (e caras) são disputadas como obras de colecionador, sobretudo em países como Estados Unidos e Japão. O Brasil pode começar a receber alguns exemplares dessas criações, que são um deleite tanto para o paladar quanto para os olhos.

Arte

Para se ter ideia, um grande fotógrafo a cada ano é convidado pela The Macallan para criar uma obra inspirada nos valores da casa. O último foi o cultuado Mario Testino. Um blend especial é criado por Dalgarno a partir da obra do fotógrafo. Rankin, por exemplo, mereceu um blend cheio de personalidade e com mais arestas. Assim como suas fotos, este Masters of Photography Edition foi feito para causar reflexão em vez de conforto.

Instado pela equipe comercial a refazer uma série de sucesso, o master blender responde simplesmente não, sem pestanejar. Ele demonstra o jeito “easy going” de alguém que está acostumado à pressão da excelência. “Temos tido sucesso por muito tempo, o que não quer dizer que teremos amanhã, mas sabemos que a cada dia aprendemos alguma coisa e estamos mais bem preparados. O próximo engarrafamento é sempre mais importante que o anterior”.

Mestre das Barricas

The Macallan é um whisky de perfil elegante, que combina untuosidade e frescor, sem traços de turfa no malte e com orgulhosa pigmentação natural. Tão importante quanto o líquido que sai dos pequenos destiladores responsáveis pelo perfil do new make spirit da marca são as barricas utilizadas para seu amadurecimento. Ao lado do master blender, o master of wood é a segunda peça mais importante entre os colaboradores da destilaria, e trabalha em íntima parceria com o primeiro. Ouvi algumas vezes durante a viagem que as barricas são responsáveis por 60% do estilo do whisky.

The Macallan possui florestas plantadas com carvalho, na Galícia (Espanha) e nos Estados Unidos. Elas alimentam suas oficinas próprias para a fabricação de barricas, que são montadas e vendidas para os produtores de Jerez na Espanha e para os de Bourbon na América. Após abrigarem Jerez e Bourbon por pelo menos dois anos, as barricas são recompradas e voltam para a Escócia, onde irão transmitir as novas características incorporadas aos maltes ao longo de seu amadurecimento.

Nesse momento, a madeira, a bebida que passou por ela, o tipo de queima da barrica e o clima onde ¬ carão armazenadas para o amadurecimento vão determinar o per¬ l do whisky que sairá delas.

Assim, o suprimento contínuo de barricas de qualidade é uma grande preocupação devido ao descompasso entre o mercado crescente de maltes e decrescente do Jerez. Ouso afirmar que alguns produtores de Jerez ganham mais dinheiro com as barricas vendidas para as destilarias do que com a venda de seus maravilhosos vinhos ao mercado, que parece não compreender como são especiais.

Talvez na madeira e no local de amadurecimento estejam os traços mais próximos ao que convencionamos chamar terroir, mas apenas quando falamos do especial single malte, que representa menos de 1% do whisky consumido no Brasil. A impressão é que o master blender assemelha-se mais ao mestre de caves do que ao enólogo, porém trabalhando com componentes num universo temporal muito mais amplo.

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