Conheça as peculiaridades de duas cidades da Serra Gaúcha que estão prestes a se tornar a terceira Indicação Geográfica do Brasil
Sílvia Mascella Rosa Publicado em 13/07/2012, às 06h48 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h48
Enquanto as parreiras dormem seu merecido sono de inverno, depois de uma safra excelente em quase todo o Rio Grande do Sul, o mundo dos produtores se agita. Especialmente na cidade de Flores da Cunha, sede da Associação dos Produtores de Vinhos Finos dos Altos Montes, a Apromontes.
O município, maior produtor brasileiro de vinhos (quando somados os vinhos de uvas americanas, híbridas e finas) deve conquistar no começo do próximo ano a Indicação de Procedência Geográfica do INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) para os vinhos finos, produzidos tanto em Flores da Cunha quanto na cidade vizinha de Nova Pádua, somando 173 km2 de área demarcada.
Existem quase 200 vinícolas na região, entre produtores artesanais, cooperativas, grandes e pequenas empresas, além de inúmeros produtores de uvas que abastecem não apenas as vinícolas da região como as de outras cidades da Serra Gaúcha |
Abrindo portas
O reconhecimento da região deverá dar maior visibilidade aos vinhos e, consequentemente às vinícolas que os produzem e suas cidades sede, uma estratégia desenhada 10 anos atrás: “Quando decidimos nos associar, saímos em busca da diferenciação da região e descobrimos que era preciso um plano para separar a produção dos vinhos finos dos de mesa, setor no qual o município já era líder”, explica Deunir Argenta, presidente da Apromontes. “Daí em diante tivemos que investir, construir, pesquisar e vinificar, até chegar onde estamos: prontos para mostrar nossos produtos”, completa.
Existem quase 200 vinícolas na região, entre produtores artesanais, cooperativas, grandes e pequenas empresas, além de inúmeros produtores de uvas que abastecem não apenas as vinícolas da região como as de outras cidades da Serra Gaúcha. Mas o que manda ainda é a tradição dos imigrantes italianos, e romper com o modelo antigo não é tarefa fácil para os 11 produtores de vinhos finos reunidos na Apromontes.
Um desafio que já vem sendo vencido – essencial no pedido de reconhecimento da Indicação Geográfica – é o da reconversão de vinhedos do sistema de latada para espaldeira e a diminuição da produtividade por hectare, aumentando, com isso, o potencial qualitativo das uvas. Mas em uma região com vinícolas de 40/50 anos e de tradição familiar muito marcante, onde o lucro até bem pouco tempo vinha do maior volume e não da maior qualidade, coube à nova geração a dura missão de mudar os conceitos.
“Quando meu bisavô veio para o Brasil, todo o trabalho era para sustentar a família e a única coisa que gerava algum lucro eram as uvas americanas, fáceis de cultivar na região, e que por isso proliferaram tanto”, explica Guerino Fabian, proprietário da Fabian Vinhedos e Vinhos Finos, única vinícola da cidade de Nova Pádua na associação até o momento. Em acordo com as mudanças necessárias e também com sua própria apreciação por vinhos mais estruturados e envelhecidos, Fabian passou a não engarrafar mais os vinhos de uvas americanas, vendidos hoje somente a granel, e os 10 hectares da empresa são agora utilizados para as variedades finas francesas, muitas delas descansando em barricas de carvalho após a vinificação.
De arquitetura impressionante, onde a estrutura de metal parece acompanhar as ondulações dos vinhedos à sua volta, a Luiz Argenta (à esquerda) é uma mistura impactante da tradição da cidade com a ousadia da arquiteta Vanja Hertcert e o bom gosto dos proprietários
Buscando a diferenciação
Flores da Cunha é considerada a mais italiana das cidades brasileiras por ter recebido o maior número de imigrantes no final do século XIX. A grande maioria se estabeleceu em áreas rurais e muitos permanecem assim até hoje, tanto que a população, que passa dos 27 mil habitantes, não faz do núcleo urbano uma zona muito povoada.
O relevo dos dois municípios conta uma parte de seu potencial para a viticultura. Permeados de vales íngremes e de rios de muita beleza natural, a altitude mínima dos vinhedos é de 550 metros, podendo chegar a pouco mais de 800. Esse fator, combinado com a grande amplitude térmica da região (alguns picos chegam a ter neve no inverno), contribui para o cultivo das uvas finas.
O enólogo Elton Viapiana, sócio da empresa que leva seu sobrenome, explica que é importante encontrar microclimas que se adaptem às variedades que são permitidas na Indicação de Procedência: “Por termos uma região cheia de vales, é essencial plantar em terrenos com a correta exposição solar, onde a planta vai se beneficiar da amplitude térmica”. A vinícola, fundada em 1986, está localizada a poucos quilômetros da cidade, numa zona conhecida como travessão Alfredo Chaves. Mesmo jovem, já fez mudanças profundas em sua estrutura, construindo uma sede moderna e funcional, perfeitamente adaptada às necessidades da produção de vinhos finos e espumantes, um diferenciado bar de vinhos e uma loja que comercializa, além dos rótulos próprios, os da importadora Porto Mediterrâneo.
Flores da Cunha é considerada a mais italiana das cidades brasileiras por ter recebido o maior número de imigrantes no final do século XIX
Para as empresas bem maiores, como a Mioranza e Fante, a mudança pode ser mais lenta por conta dos altos investimentos sempre necessários na modernização de grandes parques industriais. A Fante, por exemplo, concluiu há menos de um ano uma moderna unidade produtora de suco de uva, e agora investe na reforma e readequação de seu varejo, além de ter comprado a marca de vinhos finos Cordelier.
Na Mioranza, fundada em 1964 e até hoje dirigida por seu criador, Antonio Mioranza, os 6 milhões de litros de vinhos de mesa produzidos todos os anos estão abrindo espaço para uma pequena linha de vinhos finos, com uvas de vinhedos próprios. Já na Sociedade de Bebidas Panizzon, fundada em 1960 e hoje a maior vinícola do município e uma das maiores do país, os vinhos finos são produzidos desde 1999 e os espumantes desde 2002, mas a terceira geração da família vê com bons olhos a nova fase da região: “Nós temos investido há muitos anos em nossos produtos, seja na qualidade, seja na preservação da tradição – vinificamos até variedades italianas muito apreciadas por nossos antepassados, como a Refosco e a Montepulciano – e acreditamos que, se a região crescer como um todo, isso também será benéfico para nós”, explica Ana Paula Panizzon.
A altitude mínima dos vinhedos é de 550 metros. Esse fator, combinado com a grande amplitude térmica contribui para o cultivo das uvas finas
Casa Venturini e Viapiana são duas vinícolas que investiram em mudanças e modernizações de suas estruturas
Apostando no futuro
Localizada a 8 quilômetros do centro de Flores da Cunha, a Casa Venturini é exemplo típico da evolução de algumas vinícolas da região. Na década de 1970, havia, na estrada que leva ao distrito de Otávio Rocha, uma pequena vinícola familiar que, nos anos 1980, passou para as mãos de uma joint-venture paulistana (embora os vinhos fossem feitos por um enólogo gaúcho). Em meados dos anos 1990, a sociedade se desfez e o enólogo, José Virgílio Venturini, decidiu ficar com a empresa em parceria com o produtor paulista Claudio Góes. “Começamos a produção de vinhos finos em 2001, apostando em vinhedos especiais aqui na região e também na zona da Campanha Gaúcha, e, ao longo do tempo, fizemos as renovações necessárias para termos uma estrutura de produção de primeira linha, condizente com o potencial dos Altos Montes”, revela José Venturini no espaçoso varejo de sua vinícola.
Dentro da cidade de Flores da Cunha ficam apenas três dentre as 11 vinícolas da Apromontes, a Valdemiz (fundada em 1972 e localizada bem na entrada da cidade), a Vinícola Salvador (fundada em 1999) e a Luiz Argenta (fundada em 2004).
Com a chegada da Indicação de Procedência, a região ganha visibilidade e reforça sua identidade
A Vinícola Salvador tem fortes laços com a vitivinicultura da Serra Gaúcha, uma vez que o enólogo Antonio Salvador foi um dos vice-presidentes da ABE (Associação Brasileira de Enologia) e seu filho Daniel é hoje diretor cultural da mesma entidade. Depois de décadas trabalhando para variados produtores, Salvador tomou a decisão de passar a fazer seus próprios vinhos. Assim, adquiriu as instalações centenárias de um velho moinho no centro da cidade e começou uma longa reforma até transformá-lo na bela edificação que é hoje, um local que abriga toda a estrutura de produção e amadurecimento, bem como uma linda loja e espaço para eventos. Mas Daniel Salvador, também enólogo, conta que a família quer mais: “Tivemos que investir muito na estrutura e nos maquinários mais modernos para fazer nossos primeiros vinhos, mas agora nosso objetivo é termos nossos próprios vinhedos, que estejam em conformidade com as exigências da IP, pois isso também atesta nossa confiança no potencial da região”, revela.
A mais jovem entre as vinícolas da Apromontes é a que pertence ao próprio presidente da entidade, Deunir Argenta, e ao seu irmão Itacir. De arquitetura impressionante, onde a estrutura de metal parece acompanhar as ondulações dos vinhedos à sua volta, a Luiz Argenta é uma mistura impactante da tradição da cidade com a ousadia da arquiteta Vanja Hertcert, e o bom gosto dos proprietários. Ela ocupa um terreno que pertenceu à Cooperativa Vitivinícola Riograndese, a primeira vinícola brasileira a fazer vinhos varietais de uvas finas, no começo do século passado. Os vinhedos, totalmente replantados, de um lado se perdem na ondulação do horizonte e do outro encontram a cidade. Logo na entrada, a casa original da cooperativa foi recuperada e permanece em uso – muito especial aliás, pois, em seu sótão, batido pelo vento frio da serra, é onde são secas as uvas para alguns dos especiais vinhos da casa. “Meu projeto vitícola é novo se comparado às famílias que cultivam uvas e fazem vinhos aqui há mais de 100 anos, mas buscamos atrair a atenção para a região como um todo com nossa vinícola moderna, e assim mostrar o trabalho de toda essa gente, a beleza da região e a qualidade dos vinhos finos produzidos aqui”, conta Deunir Argenta.
Com a chegada da Indicação de Procedência, a região ganha, obviamente, visibilidade, mas, mais do que isso, reforça sua identidade e abre a possibilidade para que muitas empresas que hoje fazem vinhos para serem rotulados e comercializados por outras vinícolas, passem a fazê-lo na própria região, concentrando recursos, faturamento e contribuindo para o enriquecimento da cultura dos vinhos finos das duas cidades. Ganha o produtor, ganha o enoturismo e também o visitante.
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