Já imaginou vinhos de alta gama com uvas autóctones de uma ilha mediterrânea? Miguelàngel Cerdà, da Ànima Negra, dá a receita para criar bebidas nada convencionais em lugares inusitados
Arnaldo Grizzo E Eduardo Milan Publicado em 19/03/2013, às 13h03 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h48
Mallorca, a maior ilha do arquipélago das Ilhas Baleares no Mediterrâneo, pertencente à Espanha, tem pouco mais de 3,5 mil km² de área e 750 mil habitantes. É um lugar pouco lembrado. No mesmo arquipélago, Ibiza, sete vezes menor, costuma ser muito mais comentada. Apenas entre os fãs de tênis Mallorca é famosa, pois lá nasceu Rafael Nadal, o maior tenista de quadras de saibro da história, com sete conquistas do tradicionalíssimo torneio de Roland Garros. Porém, quando se trata de vinho, quantos já ouviram falar dessa ilha?
Desde 1994, porém, alguns amigos que haviam se reunido para beber uma noite e não entendiam por que não era possível fazer um bom vinho em sua ilha, decidiram colocar Mallorca no mapa vitivinícola. Eles começaram Ànima Negra, que, em pouco tempo, tornou-se uma referência. Usando apenas castas autóctones, como Callet e Mantonegro, e sem experiência anterior na produção de vinhos, Miguelàngel Cerdà e seu sócio Pere Obrador passaram a fazer rótulos de baixíssima tiragem - quase garagistas -, que são aclamados pela crítica e ansiosamente aguardados pelos apreciadores.
A figura bonachona de Miguelàngel Cerdà e seu estilo "de marinheiro" sempre traz à tona a uma conversa acalorada sobre vinhos, ou qualquer outro assunto. Com o ímpeto (nativo talvez) de sempre se lançar ao mar, durante uma década ele foi membro da tripulação de um navio que rodava o Mediterrâneo (depois de ter desistido da carreira de engenheiro aeronáutico) e conheceu muita gente nesse trabalho. De repente, viu-se vitivinicultor. E essa história inusitada, ele conta a seguir.
Como começou Ànima Negra?
Foi uma casualidade, pois ninguém do nosso grupo vinha do mundo do vinho. Eu tinha estudado engenharia aeronáutica e meu sócio criava gado leiteiro. E começamos porque era de noite, muito tarde, e estávamos tomando uma combinação de licores. "Isso é muito ruim, por que tomamos essa porcaria? Por que não tentamos fazer vinho?" No dia seguinte, nos encontramos.
"Mas como se faz isso?" [risos] Começamos a procurar vinhas e, no depósito de leite, elaboramos o nosso primeiro vinho. Foi como uma explosão de interesse sobre o tema, pelo fato de que nunca se havia feito um vinho de Callet que não fosse um vinho de consumo, pobre. Era um desafio. A primeira safra de Ànima Negra foi de 400 litros, duas barricas. Investimos nossa energia e aprendizagem nisso. A criação de gado se converteu em vinícola. Pouco a pouco, fomos tendo novos desafios, como fazer um vinho não somente para nós bebermos [risos]. No fim, isso se tornou nossa forma de vida. Eu era uma pessoa do mar, tinha um barco. Tive de ir ao campo, com os animais. Mas esse é um modo de vida completamente excitante, que lhe ensina a fazer o vinho. São novos conceitos. E chega-se a um ponto em que você tem seu próprio universo, do que entende por qualidade, por vinho, e é o que tentamos aplicar no dia a dia.
Começaram sem nenhum conhecimento prévio sobre produção de vinho?
Estamos contentes com essa coisa de não vir do mundo do vinho. Acho que foi positivo no nosso caso, pois tivemos que criar cada um de nossos vinhos, porque não existia um 100% Callet. Não há outro no mundo. Também nunca se havia colocado um Callet em barrica. Quando fizemos um branco de Callet com Premsal, nunca havia tido um vinho com essa mescla. São vinhos que não têm comparação e isso exigiu que criássemos nossa própria técnica. Se tivéssemos vindo do mundo acadêmico do vinho, provavelmente teríamos aplicado as técnicas conhecidas, mas isso nos permitiu entender as características de cada planta e criar uma tecnologia adaptada aos vinhos de lá.
Qual a realidade da vitivinicultura em Mallorca?
Em Mallorca, há 80 vinícolas e poucas trabalham as variedades autóctones. Essas variedades estão muito adaptadas ao contexto climático e de solo da ilha e dão vinhos mais equilibrados que as variedades de fora. O vinho somente como produto não me interessa. Ele tem que estar bom, mas isso não é suficiente. A tecnologia, desgraçadamente, ou talvez por sorte, nos permite fazer muitas coisas. Há tecnologias que permitem desenhar o vinho ao gosto do consumidor e estamos vendo muitos lugares em que os vinhos são ótimos, mas dependem menos do lugar e das variedades que representam. Faz-se degustações e não se distingue de onde os vinhos são. Para mim, isso não interessa. Quando precisar disso para sobreviver, vou me dedicar ao mar, a plantar tomate, ao que seja [risos]. É interessante que nos mantenhamos excitados e procurando aplicar as nossas técnicas em vez de transformar o vinho ao gosto do enólogo. Temos que procurar as técnicas que protejam o equilíbrio que vem da terra, pois isso sempre dá vinhos interessantes. Pode ser que você não goste, mas, do meu ponto de vista, são os que têm valor agregado no produto final.
"Queremos ter uma viticultura natural e, na vinícola, uma tecnologia para proteger isso, proteger a melhor matéria-prima" |
"Há tecnologias que permitem desenhar o vinho ao gosto do consumidor e estamos vendo muitos lugares em que os vinhos são ótimos, mas dependem menos do lugar e das variedades que representam. Faz-se degustações e não se distingue de onde os vinhos são. Para mim, isso não interessa."
Qual a tipicidade da Callet?
É difícil dizer, pois não há comparação. Mas, se me obrigam dizer algo, digo: "O Pinot Noir do Mediterrâneo". Tem a ver com o tipo de delicadeza, de estrutura, de cor muito estável, mas não muito intensa. Callet é uma variedade que sente muito as condições do ano. Nela se nota se o ano foi assim ou assado. E é muito adaptada ao Mediterrâneo, à interferência do mar. Por isso, é uma variedade de ilha. O mar é algo que une os vinhos de ilhas, como Mallorca e Sardenha, por exemplo, que lhes dá um mesmo fundo, uma harmonia.
Como é o terroir?
Toda a ilha é caustica, calcária, não é vulcânica, como Canárias ou Sicília. Há boa drenagem de água. Na superfície há muita variedade de terras, mas o substrato é sempre calcário.
"Não vemos a madeira como perfume de vinho, mas uma maneira de manter os aromas e características primárias, e a aportar à capacidade de evolução" |
Quais outras variedades têm potencial lá?
Há uma variedade que se chama Mantonegro, que tem aromas ótimos, mas devido à casca muito fina e à qualidade de taninos, isso se perde muito rapidamente na fermentação. Então, na fermentação, mesclamos com cascas de outra variedade. Os taninos que fazem falta aportamos com Syrah ou Cabernet. Isso trai os nossos princípios? Não, porque o Mantonegro que fermenta sozinho cheira menos que um que fermentou com Syrah ou Cabernet, pois os aromas não têm onde se fixar. No fim, isso lhe dá mais tipicidade.
Lemos que vocês possuem uma máquina de seleção muito avançada. Como ela funciona?
No nosso estilo de pesquisa, de busca pela nossa própria felicidade com o vinho, a parte mais importante desse equilíbrio é essa viticultura meio selvagem das vinhas; e a segunda é a seleção das uvas. Quando se seleciona uvas manualmente, ao fim de 10 horas, sua seleção não pode ser 100% boa. Então, esta é uma máquina de seleção ótica. É como um scanner: coloca-se os parâmetros de brilho, cor da casca, os grãos precisam estar bem redondos, com um certo tamanho. Ela está em funcionamento, mas não tira a necessidade da seleção manual. Acreditamos que precisamos de pelo menos cinco anos para que esse trabalho seja adequado. Queremos ter uma viticultura natural e, na vinícola, uma tecnologia para proteger isso, proteger a melhor matéria-prima. Espero viver tempo suficiente para pagar pela máquina [risos].
Como é a sua viticultura?
Na vinha, as coisas mais simples são as mais difíceis. Cercar a vinha de uma vida silvestre gera uma dependência de observação. Trabalhamos controlando a planta, dando estímulos para ela viver. A planta quer viver feliz como as pessoas. Não quer viver sozinha, quer ficar em um estado meio silvestre. Isso é o que dá o sabor da uva. Podemos ter uma planta tecnicamente perfeita, equilibrada, e, no fim, ela vai dar um vinho correto. Mas, se queremos algo mais que um vinho correto, precisamos que a planta nos aporte o solo e seu equilíbrio, e isso só se consegue se ela estiver feliz, vivendo entre outras plantas distintas, sem a obrigação de ter uma produção que ela não quer, respeitando suas designações técnicas. No final, a planta, o solo e o clima não têm nunca culpa. A culpa é sempre nossa. Às vezes, sabemos entender isso. Outras vezes, não. É um aprendizado constante.
Vocês são adeptos da agricultura orgânica ou biodinâmica?
Somos normais. Faço uma comparação: na minha casa, evitamos a calefação, no fim de semana, vamos ao mar, que está muito frio, 8°C, mas nunca tenho febre. O mesmo ocorre com as vinhas. Elas são resistentes. Não necessitam de ajuda constante. Mas, se meu filho tem um problema, levo ao médico para curá-lo. Com a vinha é igual. Se ela precisa de um produto para se salvar, se você é uma pessoa honrada, o que deve fazer é tirá-la da produção durante os anos ruins, curá-la e voltar à produção. Das 170 parcelas que temos, se dissesse que é 100% biodinâmico seria bobeira, pois necessitaria de umas 700 pessoas para cuidar da vinha. Se precisasse vindimar no dia adequado, precisaria de 2 mil pessoas. Então, damos preferência para as coisas que são importantes. Somos normais. Se você não maltrata as mulheres, você coloca uma etiqueta na roupa? Se eu não coloco uma etiqueta quer dizer que eu as maltrato? Não, o normal é não maltratá-las. Não preciso de uma etiqueta para dizer isso. Mas respeito.
No caso, usam só leveduras indígenas, ou selecionadas também?
Estamos em processo de seleção de leveduras indígenas. Até agora não tem funcionado. A fermentação espontânea não funcionou. Nem tudo o que vem do autóctone é bom. Nem todas as indígenas são boas. Tivemos problemas de volatilidade. Mas o que fazemos é isolar cada uma para ver se há uma ou duas que sejam boas. Isso é um processo custoso e longo. Se um dia tivermos uma, será fantástico. Agora usamos uma absolutamente neutra, que não aporta nada, que só faz a fermentação. Não podemos perder de vista que temos que fazer o melhor vinho possível.
"Se juntamos as variedades naturais, se o homem não quiser ter o protagonismo do processo, se deixamos o produto como o que é, que é a planta, o solo e o clima, tudo vai bem."
"Nem tudo o que vem do autóctone é bom. Nem todas as indígenas são boas" |
E em relação ao uso da madeira?
Não vemos a madeira como perfume de vinho, mas uma maneira de manter os aromas e características primárias, e de aportar à capacidade de evolução. Com Callet, ficamos muitos anos pesquisando para procurar a madeira adequada. Trabalhamos 100% com madeira francesa e agora estamos no processo de selecionar as curvas de tostado. No estilo de Ànima Negra, nos últimos anos, uma das coisas que mais se nota é um maior aporte de complexidade pela madeira, que se sente menos, mas aporta mais.
Qual o segredo de vinhos de variedades pouco conhecidas?
As pessoas querem provar coisas diferentes. Penso que devolvemos o sentido ao vinho, que é uma relação entre a terra, o clima e o homem. Acho que estamos do outro lado da invasão das variedades francesas no mundo. Talvez seja menos comercial, talvez nunca nos reconheçam, mas acho que estamos devolvendo, muito modestamente, a maneira de entender o vinho como um produto complexo, e estamos aportando algo com nossas variedades. Se juntamos as variedades naturais, se o homem não quiser ter o protagonismo do processo, se deixamos o produto como o que é, que é a planta, o solo e o clima, tudo vai bem.
VINHOS AVALIADOS AD 91 pontos AD 87 pontos |