A mistura de castas para formar um único vinho é algo frequente em diversas regiões do planeta
Redação Publicado em 12/09/2018, às 15h18 - Atualizado em 13/09/2018, às 10h04
Assemblage vem do termo francês assembler, que significa união, reunião, chamamento, convocação. A assemblage, portanto, seria a fusão de elementos diversos para formar um todo homogêneo. No mundo do vinho, isso é algo corriqueiro, é o blend ou a mistura.
É fácil nos depararmos com vinhos feitos de blends. Os mais famosos provavelmente são os bordaleses, uma típica mistura de variedades como Cabernet Sauvignon, Merlot, Cabernet Franc, Petit Verdot etc. Outros célebres são os blends do Rhône, com seus Syrah, Grenache, Marsanne, Roussanne etc. Ou ainda os blends com vinhas velhas do Douro, por exemplo.
Essa mistura de castas para formar um único vinho é algo frequente em diversas regiões do planeta. Aliás, ela certamente é mais comum do que os vinhos ditos varietais. Historicamente, os produtores sempre mesclaram uvas (inclusive no próprio vinhedo, o chamado field blend) para poderem ter um melhor aproveitamento. A ideia sempre foi que
uma cepa poderia compensar outra que não tivesse um resultado tão bom em determinado ano.
Ou seja, o conceito por trás desse tipo de blend é facilmente entendido. Mas essa não é a única mistura possível de ser feita. Além das castas, também pode-se misturar vinhos de mais de uma safra para compor. Sim, os multivintage são habituais em regiões como Champagne e no Vinho do Porto, por exemplo, mas há produtores que fazem tintos e brancos também com uma mistura de safras. Por que então mesclar diferentes anos?
Reserva qualitativa
“Champagne é um vinhedo setentrional onde podemos observar diferenças significativas de um ano para outro em termos de volume de colheita, maturidade (anos quentes, anos frios ou austeros), estado de saúde também... E diferenças muito significativas na colheita são muito importantes em termos de perfil do vinho. Assim, o elemento essencial é desenvolver os meios para perpetuar a qualidade, bem como o ‘estilo de casa’ de cada safra. Para isso, a palavra-chave é: assemblage. E aqui fazemos misturas de castas, terroirs e safras, tendo o cuidado de separar algo dos anos bons que será usado como suplemento que será benéfico em anos de dificuldades climáticas que prejudicam a qualidade. Esta ‘reserva qualitativa’ é, portanto, da maior importância”, explica Michel Davesne, chef de cave da casa de Champagne Deutz.
Ou seja, no fundo, assim como misturar variedades é uma forma de garantir a qualidade, a mistura de safras também. No caso, contudo, vai-se um pouco além da qualidade, e, como Davesne deixou claro, o primordial é a manutenção de um estilo que só seria garantido com essa mescla de diferentes anos. Ainda falando sobre Champagne, Benoît Gouez, chef de cave da Moët & Chandon, aponta: “Em Champagne, os anos não são todos iguais e alguns, na verdade, não são suficientes [em termos de produção] por conta própria. A assemblage de vinhos de várias colheitas permite mais equilíbrio e consistência”.
Mas não é somente em Champagne que esse conceito da manutenção do estilo se aplica. Gonzalo Iturriaga de Juan, enólogo de Vega-Sicilia, na Espanha, parte do mesmo pressuposto para criar o “Reserva Especial”. “É uma filosofia em que tentamos manter o estilo do vinho ano após ano. Provavelmente entre todos os nossos vinhos, o ‘Reserva Especial’ seja o mais ‘vega-siciliano’ e para que seja feito, é preciso: intuição para saber quais safras vão se encaixar bem, paciência para ver como elas vão se misturando e determinação, pois ao longo do caminho pode ser que todo o trabalho vá por água abaixo”, comenta.
Carlos Agrellos, enólogo da Quinta do Noval, também foca na manutenção do estilo. “Nas categorias especiais de Tawnys, como 10, 20, 30 e 40 anos, os vinhos podem legalmente ser feitos com vinhos de outras safras que, quando misturados, darão essa idade. No entanto, a Quinta do Noval procura sempre ter maior percentagem da idade precisa nos seus vinhos. A razão para fazer esses blends tem a ver com o acerto de cor, estrutura e perfil aromático. Nos vinhos secos DOC Douro, o mesmo processo é possível até ao máximo de 15% de uma outra safra para atingir o mesmo fim acima descrito”, garante.
O segredo da mescla
Mas como fazer um blend de safras funcionar? Para Agrellos, não há segredos “a não ser muitos anos de prática na sala de provas. Isso se aprende após milhares de provas”. Davesne tem opinião semelhante: “Dados os gracejos da natureza, não há ‘receita’. Não há nada que seja um verdadeiro segredo. Todos os anos deixamos uma folha em branco para fazer o nosso ‘Deutz Brut Classic’ a partir dos vinhos do ano e os diferentes ‘vinhos de reserva’ à nossa disposição e com todas as suas características próprias. Assim, o recurso da mescla de millésimes é, como ocorre com as mesclas varietais, brincar um pouco com as sinergias oferecidas pelos componentes e fazer dessa soma de 1 + 1 + 1 muito mais que 3”.
Já Davesne revela que seus vinhos de reserva são mantidos basicamente por um ano. “Às vezes, dois anos. Três anos: será muito excepcional, porque, para o estilo de ‘Deutz Brut Classic’, é preciso manter frutas e frescor no assemblage. É também por isso que esses preciosos vinhos são mantidos em cubas de inox termorreguladas. Devemos manter vinhos com estrutura e uma certa acidez para garantir um bom desempenho ao longo do tempo. Também é desejável manter os vinhos com características variadas, a fim de corrigir certos aspectos de futuras mesclas”, explica.
Diferentes iguais
Percebe-se então claramente que manter safras diferentes tem a função de agregar características diferentes ao vinho. “No nosso caso, costumamos trabalhar com três anos diferentes, em que os mais antigos costumam aportar a complexidade e profundidade, outro vai ser o esqueleto do vinho, e o último aporta frescor e nervo. A porcentagem de cada safra varia muito e isso é o que faz com que nosso trabalho seja o mais apaixonante do mundo”,
conta Gonzalo Iturriaga de Juan, da Vega-Sicilia.
Carlos Agrellos revela ainda que essa somatória de safras é benéfica, especialmente no caso dos Porto Tawny. “Os vinhos multivintage ganham em complexidade com a adição de outros que contribuem para isso. É preciso muito cuidado nessa mescla. Por isso faz-se provas regulares de todos os vinhos em estoque bem como o acompanhamento analítico dos mesmos. As safras antigas poderão ter que ser, de tempos em tempos, refrescadas com um vinho mais novo para lhe conferir capacidade de guarda. As quantidades utilizadas são muito pequenas de modo a não interferir na personalidade do vinho. No entanto, quando o vinho de base para um determinado vinho foi bom, essas intervenções podem sequer existir”, aponta.
Vantagens e desvantagens
Segundo Agrellos, o “único” problema da mescla de safra é o blend não ficar bom. “A vantagem é alcançar um equilíbrio mais completo, mais complexidade e consistência. A desvantagem é que você tem que ter muito cuidado ao selecionar vinhos de reserva e que você deve ter os meios técnicos e financeiros para manter grandes quantidades desses vinhos”, aponta Gouez.
“O conceito de ‘vintage’ não é um fator um pouco ‘limitante’ ou ‘inibidor’ para um ‘enólogo- -criador’?”, questiona Davesne. Ele acredita que a consistência dos “Non Vintage” seja o melhor critério para julgar a seriedade de um produtor de Champagne. Assim como Gouez, ele lembra o quão custoso é manter estoques em equipamentos adaptados (com regulação de temperatura), mas garante que todo produtor “sério” se fia nisso.
“Para mim, a grande vantagem desse tipo de vinho é, sem dúvida, a complexidade, a sedosidade e a sensualidade, e saber que a cada ano tem o mesmo estilo. A grande desvantagem é que alguns deles ficam pelo caminho”, lamenta Gonzalo Iturriaga de Juan. Ou seja, a concepção de um blend de safras é tão ou mais trabalhosa que um blend de variedades. Aqui, uma decisão equivocada pode matar o vinho não somente de um ano, mas de vários ao mesmo tempo.