Reverência aos clássicos franceses

ADEGA visita o Le Saint Honoré em busca da melhor harmonização para dois clássicos franceses

Marcelo Copello Publicado em 26/10/2006, às 09h01 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h44

O chef Dominique Oudin, adepto da Fusion
"A descoberta de um novo manjar causa mais felicidade ao gênero humano que a descoberta de uma estrela." - Jean-Anthelme Brillat-Savarin

O que é um prato clássico? Uma iguaria que se perpetuou, mantendo-se fiel à sua origem e tradição? Um sabor que atravessou gerações? Um paradigma culinário que serve de modelo ou padrão do gênero? Uma receita que segue os cânones estabelecidos ou mesmo que originou tais cânones? Uma expressão gustativa tão particular de um país ou de uma região que o simboliza? Todas as respostas acima? Com certeza. O assunto é inesgotável, pois evoca a história do paladar e de sua evolução. Vamos experimentar hoje uma gota deste oceano, ou melhor, duas das gotas mais preciosas do mar de sabores que é a França. Em foco, o "Coq au Vin" e o "Steak au Poivre", pratos clássicos que poderiam dividir cartões postais com a Torre Eifell e o "O pensador", de Auguste Rodin, por sua representatividade na cultura gaulesa.

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Coq au Vin Steak au Poivre

Para acolher toda esta nossa reverência o restaurante escolhido não poderia ser outro: o Le Saint Honoré, no Rio de Janeiro. Fundado há 30 anos, no alto do 37º andar do prédio do hotel Le Meridien, com uma impagável vista da praia de Copacabana, sob a chancela de um dos mais afamados chefs da história: Paul Bocuse. Há cinco anos, a cozinha está sob o comando do também francês Dominique Oudin, adepto da "cuisine de fusion" e apaixonado pelos ingredientes brasileiros. Não por acaso, Oudin é da região de Auvergne, origem histórica de um dos pratos escolhidos, o Coq au Vin.

Para esta gala gastronômica, ADEGA convidou: Patrícia Quentel - da 3 Plus, organizadora da Casa Cor; Renata Domingues - da Approach, assessoria de imprensa do Le Meridien; Paula Monteiro - Estilista; Cláudio Magnavita - Presidente da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo; e Heitor Magalhães - Engenheiro.

Os vinhos escolhidos tentavam aliar as escolhas "de manual" e as ousadias, mesclando Velho e Novo Mundo. O resultado foi a escolha de três vinhos para cada prato, a harmonização tradicional com um francês, com um de outro país europeu (no caso, um espanhol para o galo e um italiano para o filé) e um do Novo Mundo (um Pinot do Oregon e um potente Tannat do Uruguai).

Antes de partir para a prática, solicitei a Guilherme Corrêa (recém sagrado campeão brasileiro de Sommeliers, competição na qual deu uma aula de harmonização), para nos dar uma palavrinha sobre o assunto.

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"Coq au Vin", "Steak au Poivre", "Confit de Canard", "Bouillabaisse", "Cassoulet", "Blanquette de Veau" etc. Falar em harmonização desses ícones da gastronomia francesa sem sugerir os vinhos mais emblemáticos do país seria, no mínimo, injusto, um trabalho de um sommelier herege. Sempre que caio em pratos clássicos de um país com larga tradição enogastronômica, procuro um vinho regional, aquele que, durante anos ou séculos, venceu os seus competidores ao lado daquela preparação culinária, numa visão darwinista de evolução natural da compatibilização vinho-alimento: não é à toa que os vinhos de uma determinada zona vão tão bem com a sua cozinha!

O "Galo ao Vinho", podendo a bebida escolhida para a preparação ser branca, embora normalmente a cor escolhida seja a tinta, é um prato rústico que pode ir do ordinário ao excepcional, dependendo da escolha dos ingredientes. Quando o vinho é branco, podemos escoltar o prato com o mesmo vinho empregado: "Coq au Riesling" com um alsaciano ou "Coq au Chardonnay" com uma garrafa dessa variedade não vulgarizada pelo excesso de carvalho. O "Coq au Vin" de manual é aquele elaborado com uma garrafa de um Borgonha tinto genérico, e por mais gorda que esteja a carteira para evaporar um "Chambertin Grand Cru", não se precisa de tanto empenho para alcançar excelência do sabor. Neste caso, acho que os Pinots fazem bonito, e assim deverá ser com o Gevrey Chambertin e com o Pinot Noir do frio e úmido Oregon, estado americano que produz vinhos relativamente semelhantes em estilo aos da Borgonha. O Rioja Reserva, pela sua maturidade e pelo estilo de elegância em detrimento de potência do produtor Luis Cañas, deverá também brilhar, uma vez que esse estufado de galo não deixa de ser um prato muito wine-friendly, com untuosidade dada pelo toucinho e pelo longo cozimento que traz a gordura da carne para o molho, rico também em impressões terrosas do tomilho e do louro.

O "Steak au Poivre", por sua vez, pede tintos ricos em estrutura, com boa carga tânica para enxugar a untuosidade do demi-glace enriquecido de creme. O álcool em excesso poderá por fogo na harmonização, se o chef caprichou no emprego da pimenta. O perfil clássico olfativo para este prato é o de um Cabernet Sauvignon ou de cortes de feitio bordalês, com suas notas apimentadas de metoxipirazinas que proporcionam um bom diálogo com o prato. O "Château d'Angludet" de uma safra de vinhos com muita tipicidade (2001) será possivelmente o campeão, mas o uruguaio Família Deicas, do canto do Novo Mundo que faz os vinhos mais Velho Mundo segundo o inspirado escritor britânico Oz Clarke, poderá surpreender trazendo um pouco mais de "doçura" para a harmonização. O supertoscano "Cerviolo", à base de Sangiovese, Cabernet Sauvignon e Merlot, corre por fora e poderá, com sua potência e assertividade, embirrar os francófilos, lembrando na esfera da enogastronomia que o grande cantor popular francês Yves Montand, é, na realidade, um Toscano...

*formado pela Associazione Italiana Sommeliers.e atual campeão brasileiro de Sommeliers

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A PRÁTICA
COQ AU VIN

"Coq au Vin" significa "galo ao vinho". A origem do preparo é antiga, remete ao Império Romano. Num cerco comandado pelo general Julio César a uma aldeia de gauleses, eles foram obrigados a capitular. Em sinal de rendição, os revoltosos enviaram aos romanos um belo galo de briga como presente. Em troca, seu líder recebeu um convite para jantar. O prato principal era a ave cozida em vinho, a bebida que simbolizava a civilização romana.

O galo preparado no Saint Honoré foi frango caipira, marinado 24 horas em vinho e cozido durante oito horas com alho, cenoura, aipo, cebola, bouquet garni. Como resultado, ele ficou macio, com nível de sabor elevado, mas magro, sem muita gordura ou cremosidade. Foi interessante constatar que todos os convivas perceberam todas as nuanças acima descritas, do prato e do vinho, percebendo e concordando na prática com seus palatos, com todo o mecanismo da harmonização descrito por Guilherme Côrrea.

Para Patrícia, Paula e Cláudio, o vinho predileto foi o norte-americano, por sua maior maciez alcoólica e nível médio de sabor, enquanto o Borgonha ficou aquém da estrutura do prato e o Rioja, além. Para Heitor, Marcos e Dominique, o Borgonha foi o casamento perfeito, por seu melhor equilíbrio, maior elegância e perfil aromático de maior afinidade com o prato. Renata e eu adoramos o Borgonha, mas achamos que lhe faltou taninos para encarar o prato, quesito no qual o Rioja foi perfeito, e preterimos o Pinot pelo mesmo motivo que outros o elegeram, por sua mais acentuada maciez alcoólica. Nossa conclusão foi que a teoria funciona, está correta e ajuda bastante, mas precisa ser ajustada às nuanças do gosto pessoal.

STEAK AU POIVRE

O "Steak au Poivre", ou filé apimentado. é uma receita simples, um mignon empanado em pimenta do reino salteado na manteiga, flambado ao cognac, e servido com molho da manteiga e caldo da carne. O resultado foi um prato magro e pouco cremoso, mas Dominique não economizou na pimenta e nenhum gaulês poderia pedir mais. De início, os paladares ficaram um pouco oprimidos pela pungência, que fez com que todos os vinhos se banalizassem. Após duas ou três garfadas, a nuvem pontiaguda foi se dissipando perante os paladares e as sutilezas transparecendo. Ao contrário do prato anterior, onde os gostos divergiram, a unanimidade recaiu no clássico Bordeaux. No fim das contas, o melhor meio de boca do Toscano foi bem na prova e o Tannat impressionou como grande vinho, mas sobrou em estatura e dureza de taninos. O Margaux, por sua melhor acidez e equilíbrio, sem exageros, sobreviveu à tempestade de pimenta e foi quem melhor conversou com o prato. O mundo gira, novos vinhos surgem, e os clássicos continuam clássicos. Como diz a canção: The fundamental things apply as time goes by.

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OS VINHOS DA NOITE
Para o “COQ AU VIN”

Gevrey Chambertin 2002, Domaine Trapet, Borgonha - França (Terroir, R$ 324). Elaborado 100% com uvas Pinot Noir. Uma das únicas vinícolas do mundo certificadas como biodinâmicas. Vermelho rubi claro. Encanta no nariz com potência e elegância, muitas frutas frescas (morangos, framboesas), musgo, cogumelos e fundo mineral. Paladar de bom corpo, taninos firmes e finíssimos, seco, 12,5% de álcool, acidez excelente, grande equilíbrio, longo. Um grande clássico da Borgonha.

Pinot Noir cuvée Laurène 2002, Drouhin, Oregon - EUA (Mistral, R$ 235,44 ). Esta cuvée top da casa é da excelente safra de 2002, uma das melhores de todos os tempos no Oregon, e foi elaborada pelo craque da Borgonha, Druhin, o que o torna , um dos melhores Pinots do Novo Mundo. Cor rubi escura. Aromas mostram um mix de flores (violeta) e frutas (amora, ameixa), com toques de especiarias doces (baunilha, alcaçuz) e minerais. Paladar de bom corpo, macio, 14,1% de álcool, muito elegante, equilibrado, tende levemente para a maciez, com boa profundidade. Em estilo é um meio termo entre os Pinots do Novo Mundo e os clássicos da Borgonha.

Reserva 1999, Luis Cañas, Rioja - Espanha (Decanter, R$ 92,80). Da clássica região espanhola da Rioja Alavesa. Elaborado com 95% Tempranillo, 2,5% Graciano, 2,5% Garnacha, amadurecido 12 meses em barricas de carvalho francês e seis meses em barricas de carvalho americano. Cor vermelho granada entre clara e escura, com reflexos alaranjados. Aroma com bastante evolução, mostrando couro, frutas secas, toques balsâmicos, madeiras (carvalho, cedro), tabaco. Paladar encorpado, elegante, 13,5% de álcool, equilíbrio tende levemente para a aspereza dos taninos, longo. Um vinho com sinais de envelhecimento.

Para o "STEAK AU POIVRE"

Cerviolo 2000, San Fabiano Calcinaia, Toscana - Itália (Decanter, US$ 87,80). Elaborado com 50% Sangiovese, 25% Merlot e 25% Cabernet Sauvignon, amadurecido por 18 meses em barricas novas de carvalho francês. Rubi muito escuro, reflexos granada. Bom ataque aromático, com madeira e frutas maduras na frente, toques florais de violetas, alcacuz, musgo, baunilha e tostados. Paladar volumoso, com 14% de álcool, taninos presentes, a Sangiovese aparece bastante no paladar, com seu toque de alcaçuz e de leve rusticidade.

Château d'Angludet 2001, Cru Bourgeois de Margaux, Bordeaux - França (World Wine, R$ 168). Este Château pertence à família Sichel, do Château Palmer. Elaborado com Cabernet Sauvignon, Merlot e Petit Verdot, amadurecido em barris de carvalho. Cor rubi muito escura com reflexos violáceos. Aromas de fruta madura, cassis, especiarias, madeiras, fundo mineral. Paladar de médio-bom corpo, 13% de álcool, taninos finos e prontos, acidez muito boa, equilibrado e elegante.

Familia Deicas 1er Cru Garage 2000, Estabelecimento Juanicó, Canelones - Uruguai (Expand, R$ 285). Tannat 100%, fermentado em grandes tonéis de carvalho francês de 4.500kg e posteriormente amadurecido em barris menores por 18 meses. Vermelho rubi opaco, com reflexos violáceos. Nariz potente com muita madeira, frutas em compota, baunilha, tostados, chocolate, toques florais. Paladar muito encorpado, boa acidez, 13% de álcool, equilíbrio pende claramente para a dureza de sua sólida estrutura de taninos, ainda presentes, madeira aparece na boca, bastante longo. Possivelmente o maior vinho do Uruguai e um dos grandes do continente. Para guardar.

Tabela de notas
Extraordinário ( de 95 a 100 pontos)
(93 a 94)
Excelente (90 a 92)
(88 a 89)

Muito Bom

(85 a 87)
(83 a 84)
Bom (80 a 82)
(76 a 79)
Médio (70 a 79) (70 a 75)
- Fraco (50 a 69) (50 a 69)
= Beber
= Beber ou Guardar
= Guardar
Obs: preços aproximados no varejo, sujeitos à variação.