Sem crise de identidade

Preocupada com a descaracterização pela qual passaram os vinhos da região da Bairrada nos últimos anos, Filipa Pato investe na Baga

Christian Burgos E Eduardo Milan Publicado em 16/07/2013, às 06h55 - Atualizado em 01/08/2013, às 00h48

Não é fácil viver à sombra do pai ,especialmente quando ele é um vinhateiro de sucesso, um dos mais celebrados em Portugal, considerado quase um revolucionário. Ainda assim, Filipa Pato tem deixado claro para todos que não tem medo das comparações com o pai, Luís Pato, e, além disso isso, cada vez mais vai se desvencilhando de sua imagem, criando seus próprios caminhos e estilos de vinhos - mesmo quando os faz na companhia do genitor.

Sempre muito ativa, assim como o pai, Filipa hoje, depois do nascimento dos filhos, decidiu se concentrar ainda mais na Bairrada, deixando o Dão. "O bom de ter filhos é que aprendi a me focar nas coisas mais importantes. Então para mim, o mais importante é a Bairrada, pois fico mais perto dos meus filhos, família", contou em sua última visita ao Brasil, durante o II Wine Gourmet Show.

Em sua região de berço, ela vai desenvolvendo seus projetos, sempre inovadores, mas ao mesmo tempo cuidando para que as tradições e as características da Bairrada sejam mantidas. Por isso, preza muito as vinhas velhas de Baga, a casta típica da região, que vêm sendo abandonadas, quando não trocadas por variedades francesas que, segundo ela, fizeram com que os vinhos locais perdessem sua identidade. Para alguém que defende "vinhos autênticos, sem maquiagem", essa é uma grande preocupação.

Por que deixar o Dão?
Sempre gostei do Dão, e gosto. A questão é que antes de ter filhos, podia ficar muito tempo fora. E quando você tem filhos, há esse problema de tempo, você se concentra mais nas coisas que tem que fazer. Além disso, o contrato de arrendamento da vinha do Dão também estava chegando ao fim. Então optei por ficar na Bairrada. E estou conseguindo comprar mais vinhedos em outras aldeias, que era o que queria. Quando comecei a fazer vinhos, em 2001, o preço por hectare na Bairrada era muito alto. Agora, estão baixando. É mais fácil para mim conseguir expandir na região que é, no fundo, meu berço.

E como são esses novos vinhedos que está comprando? Como os seleciona?
São de várias castas. O mais importante para mim é que sejam de uvas tradicionais e que sejam boas localizações. A vantagem desses 12 anos é que sei bem onde são os meus sítios. Fui comprando uvas em várias partes da Bairrada e sei onde posso investir agora.

"(Baga) Não é um vinho de que todas as pessoas vão gostar. É um vinho de sommelier, de pessoas que gostam de provar grandes borgonheses, grandes bordaleses"

Todas são vinhas velhas?
A vinha que comprei recentemente em hasta pública (leilão) era de 30 anos, de branco. Isso é bom, mas vou demorar alguns anos para recuperá- la. Comprei ainda uma de 80 anos, que também estava abandonada. Agora temos que fazer um trabalho de recuperação. Em termos de hectares totais, devemos estar perto dos 20. Do ano passado para cá, aumentamos 50%.

Quanto produz hoje?
Produzo de 100 a 120 mil garrafas, pois os rendimentos são baixos. Dessas, 50 mil são de espumantes. É o vinho que mais funciona no Brasil, apesar da qualidade dos espumantes brasileiros. A Bairrada tem solos calcários, que dá uma complexidade e uma pureza fantásticas à fruta. A vantagem de fazer um 3B é que, graças a ele, os outros vinhos têm melhorado muito, pois faço duas vindimas. Corto uma parte para o 3B e outra para fazer um tinto mais maduro. Temos alcançado uma maturidade nos vinhos top de gama, Nossa Tinto e Nossa Branco. A linha Nossa é um vinho de vinhas muito velhas, entre 40 e 80 anos, e fazemos uma vindima no final de agosto e outra em outubro, para o Nossa tinto, que tem uma maturação melhor, mais estruturada. Ele é fermentado em lagares de carvalho, uma tradição do tempo dos romanos.

O que os lagares de madeira aportam ao vinho?
Eles dão um refinamento e um amaciamento de taninos que a cuba de inox não dá. Os lagares deixam os taninos muito mais aveludados. É uma técnica que desenvolvemos desde 2005. A safra de 2005 está ótima para beber, 2009 também, e 2010 ainda está fechado, pois é jovem. 2011 engarrafei antes de vir para o Brasil, e ele está mais pronto que o 2010, que precisa de um pouco mais tempo. Em 2009 e 2011 usei um pouco mais de engaço. Foi o ano que meus filhos nasceram, então quis fazer um vinho com mais longevidade para eles.

Você, tendo começado há pouco tempo, relativamente, precisa ter paciência...
Isso é o mais difícil. O 2005 agora está muito bom, mas não tem mais garrafas. Então, esse é um dos grandes investimentos que estamos fazendo agora. Compramos uma adega antiga, numa aldeia onde minha mãe nasceu, e onde vivíamos, e vamos fazer uma adega não muito grande, mas com o pé direito alto, porque queremos fazer uma reserva de todos os millésimes - 200 garrafas, seja branco, tinto ou espumante.

Vocês estão usando algum princípio de produção natural?
A primeira coisa que fizemos foi não usar herbicida. E acredito que só isso seja uma ajuda imensa. Quando compro uma vinha, demoro uns três anos até conseguir convertê-la. Primeiro deixo de usar herbicida e depois oxigeno bastante, ou seja, mexo um pouco na terra para a videira respirar, a água entrar. Num solo como na Bairrada, com muita argila, com o calor, falta água, ele greta e depois seca a videira, e ela sofre muito com esse estresse. Então é preciso mexer na terra e usar um pouco de carga orgânica de ovelha, cavalo, compostos naturais que fortalecem a videira. Ela tem que ter saúde para produzir bem e com qualidade. Em muitas regiões, há o problema de eu não usar herbicida, mas o meu vizinho sim, e depois, muitas vezes, há ainda um problema mais grave que é as vinhas ao seu redor estarem abandonadas e pegarem doenças que depois chegam até os seus vinhedos. Todos esses cuidados são importantes. Na Bairrada está acontecendo isso. Há uma lei que está indo para votação que obriga o produtor a arrancar, ou pelo menos podar, as cepas das vinhas abandonadas.

Há uma doença que está anda atacando as vinhas...
Ah sim, é a Flavescência Dourada. O inseto consegue picar muitas videiras por dia, não é fácil. São as contingências da profissão, não é mesmo? É complicado. Nos meus vinhedos não tenho, mas os focos estão perto de nós. As vinhas quando estão bem tratadas não apresentam problema, o problema é ter essas vinhas mal tratadas em volta.

Como tem sido a reação dos brasileiros e novos consumidores a uma casta difícil como a Baga?
Não é um vinho de que todas as pessoas vão gostar. É um vinho de sommelier, de pessoas que gostam de provar grandes borgonheses, grandes bordaleses e que querem provar outras coisas também. Agora, para mim, é mais fácil vender meus vinhos de alta gama em Londres, Alemanha, países nórdicos, do que aqui, onde a carga de impostos é enorme e prejudica muito. Mas nossa produção é muito limitada.

Quando você fala de produção limitada se refere a quanto?
Apenas 3 mil garrafas. O branco é single vineyard. No caso do Baga, fazemos diferente. Temos várias vinhas em vários sítios, porque a Bairrada tem muitos terroirs diferentes, então optei por uma mistura dos melhores, para não ter oscilação de qualidade e também porque um terroir se comporta melhor num ano, outro em outro ano, e achei que seria injusto vender esses vinhos a preços iguais. E ainda não há em Portugal a prática de vender vinhos a preços diferentes conforme a colheita, então, preferi optar por um blend monocasta dos solos da região da Bairrada. Acho que fica um blend mais completo, melhor do que engarrafar cada um individualmente e, mesmo assim, só consigo chegar a 3 ou 4 mil garrafas. Agora, com esse aumento de área, vou poder fazer vinhos de ainda maior qualidade, pois queremos vender uma parte quando engarrafamos e outra para guardar e vender depois de 10 ou 15 anos.

Isso é um processo de infantilização do consumidor ou de atendimento das necessidades?
Acho que o consumidor tem cada vez menos espaço para guardar um vinho. Então, prefiro guardá-lo em minha adega, onde sei que tem condições, e depois vender por um preço um pouco mais alto, que cubra o custo de estocagem, mas é o esforço que fazemos.

"Fizeram uma boa pesquisa, em termos de Baga, para melhorar a variedade, sem dúvida, mas eles perdem muito tempo estudando a adaptação da Sauvignon, da Chardonnay, da Syrah etc. É ridículo. É por isso que a Bairrada tem essa crise de identidade. Esse trabalho já tinha que ter sido feito"

"Às vezes, a submissão ao mercado acaba perdendo a originalidade, a identidade. A Baga é uma uva que precisa ser explicada, é uma uva difícil, que precisa de mais tempo, de uma qualidade de viticultura impressionante. Portanto, precisa do consumidor mais maduro, sobretudo"

 

Produzir no Dão lhe ajudou no processo da Bairrada?
Aprendi a perceber que não há uma verdade absoluta, e aprendi que, de fato, os solos fazem uma diferença enorme. A adaptação de cada casta aos solos é fundamental. E aprendi a perceber porque a Touriga se dá bem no Dão - realmente é o único sítio premium desse vinho monocasta, e nem é em todos os anos. A Touriga é uma uva difícil de fazer um vinho monocasta equilibrado, mas o solo de granito se adapta bem a ela, enquanto a Baga nesse mesmo solo não tem nada a ver com aquela do solo de calcário. No granito, ela não tem a expressão e a complexidade que tem na Bairrada, no solo argilocalcário. Isso ajudou também a melhorar a Bairrada. Por exemplo, uma das coisas que tentei influenciar meu pai a fazer foi, nos vinhedos em que tinha areia, retirar a Baga e plantar a Maria Gomes, Cercial e Cercialinho, pois são essas uvas que se adaptam bem ao solo. Esse trabalho, infelizmente, nunca foi feito por uma entidade governamental. Em Anadia temos uma escola de viticultura que tem uma área de vinhas experimentais enorme. Aí, o que eles vão investigar é a forma de adaptação da Sauvignon Blanc na Bairrada... é fora do normal. Não há lógica. Fizeram uma boa pesquisa, em termos de Baga, para melhorar a variedade, sem dúvida, mas eles perdem muito tempo estudando a adaptação da Sauvignon, da Chardonnay, da Syrah etc. É ridículo. Nós, produtores, é que tivemos que fazer esse estudo. É por isso que a Bairrada tem essa crise de identidade. Esse trabalho já tinha que ter sido feito. Foi feito por nós, produtores, e poucos sabem dessas informações, então ultimamente têm plantado Syrah, Merlot... A região está completamente descaracterizada. Em 10 anos perdeu a identidade. Claro que há ainda muitas vinhas velhas que penso que agora, com o trabalho que temos feito, com a história dos "Baga Friends", têm gerado algum barulho, as pessoas estão mais atentas e não deixam tanto acabar com as vinhas velhas. Mas perdemos muito nos últimos 10 anos.

Qual o conceito do Baga Friends?
Foi um grupo que fundei em 2010 porque estava, de fato, preocupada com o que estava acontecendo na Bairrada. Entendo que uma região estar plantada com 90% de Baga era um erro, porque a Baga tem que estar nos sítios certos. Mas o que me preocupava é que via vinhas abandonadas de Baga em lugares fantásticos. Não é possível que uma região com a capacidade e a riqueza que tem deixe acontecer isso com essas vinhas. E então criamos um grupo com alguns produtores que mantinham vinhas de Baga. Meu pai, eu, Quinta das Bágeiras, Sidónio de Sousa, os Vinhos do Buçaco... e também se associou Niepoort. Mas foi um grupo que tentou, através da uva tradicional, evitar que essa perda de patrimônio acontecesse. E de fato acho que todo o trabalho que estamos criando está dando consciência aos produtores de não aceitar essa mudança para a banalização da Bairrada.

Em que ponto começou essa vontade de usar a Baga?
Às vezes, a submissão ao mercado acaba perdendo a originalidade, a identidade. A Baga é uma uva que precisa ser explicada, é uma uva difícil, que precisa de mais tempo, de uma qualidade de viticultura impressionante. Portanto, precisa do consumidor mais maduro, sobretudo. Com a Barbaresco é a mesma coisa. A Baga é parecidíssima com a Nebbiolo. Portanto, aqui um trabalho de divulgação não está sendo feito, e é uma pena, porque a região, hoje em dia, pode ser Baga, como pode ser Merlot, como pode ser Syrah. É estranho, pode ser tudo. O consumidor, quando vai pedir um Bairrada, pode ter estilos completamente diferentes.

Essa falta de valor está lhe possibilitando comprar novas terra?
Estou aproveitando o momento para expandir um pouco em termos de área, porque, de fato, há uma diferença grande nas uvas autóctones. Penso que daqui há cinco anos, no máximo, vai haver muito mais atenção sobre as uvas autóctones.

Sua vinícola é um projeto seu ou familiar?
Familiar, meu marido (William Walters, com quem criou a empresa Vinhos Doidos) e eu nos apoiamos e o Nossa é um vinho assinado por mim e ele. É interessante provar os vinhos com meu marido porque ele prova de várias origens e isso nos ajuda, pois traz outra forma de ver os meus vinhos. Com meu marido, tenho conhecido produtores fantásticos. Tenho tido exemplos fantásticos e isso me inspirou de forma drástica. Com tudo isso, você acaba absorvendo as coisas sem querer e, depois, quando vai fazer um vinho, presta muito mais atenção aos detalhes na vinha, na adega. Por isso aprendi a fazer vinhos com o mínimo de intervenção, vinhos que chamo de autênticos, sem maquiagem, que deixem expressar o terroir onde são feitos. A madeira passa a ser só moldura, e não o quadro. São todas visões que aprendi muito nessas visitas a produtores. Acho que você aprende mais ao visitar produtores do que na escola.

Você recebe muitos produtores na sua vinícola?
Agora tenho tido cada vez mais produtores querendo visitar, mas, por enquanto, não estamos recebendo nenhum, pois é difícil de alojar. Agora, com a construção da adega, vamos começar a receber, pois esse intercâmbio é importante, é fundamental.

Saindo da Bairrada, o que você está sentido em Portugal como um todo?
Acho que Portugal está num bom momento. Está mais consciente do valor das castas, os enólogos estão cada vez mais especialistas em cada variedade, estão se revitalizando regiões mais difíceis, como a nossa, como Madeira, que hoje desperta a atenção de sommeliers de restaurantes em grandes capitais. Por falar nisso, esqueci de dizer que fiz um vinho fortificado de Baga em 2010. É um vinho fortificado das mesmas vinhas que fazemos o Nossa. Retiramos as uvas mais tânicas para fazer o fortificado. Só 900 garrafas por ano. É um vinho fortificado de Baga que recebe aguardente de Baga também, e fazemos uma pisa tipo Vintage Port. O engraçado é que, como a Baga é tão elegante, mesmo com muita extração, ela ainda fica elegante. Havia um rumor de que os vinhos do Porto antigos usavam um pouco de Baga da Bairrada, para manter a longevidade. Então tinha essa ideia em mente. Como não tinha experiência nisso, chamei Dirk Niepoort e ele adorou. Tanto adorou que comprou a vinha depois. Essas trocas de impressões no vinho são interessantes.

"Tenho tido exemplos fantásticos e isso me inspirou de forma drástica. [...] Você aprende mais ao visitar produtores do que na escola"

VINHOS AVALIADOS

AD 89 pontos
3B MÉTODO TRADICIONAL 2012

Filipa Pato, Bairrada, Portugal (Casa Flora R$ 63). Espumante Brut elaborado pelo método tradicional a partir de 70% Baga e 30% Bical, com estágio de seis a nove meses em contato com as leveduras. Apresenta cor rosa-salmão e aromas agradáveis de frutas vermelhas frescas, notas florais, herbáceas e minerais. Em boca, é frutado, limpo, equilibrado, tem acidez vibrante, boa cremosidade e final gostoso, confirmando a mineralidade do nariz. Jovial e gostoso de beber. EM

 

AD 89 pontos
BOSSA DE MARIA GOMES 2011

Vinhos Doidos, Bairrada, Portugal (Casa Flora R$ 47). Branco composto de 80% Maria Gomes e 20% Bical, sem passagem por madeira. Apresenta cor amarelo-palha de reflexos esverdeados e aromas de frutas brancas e tropicais maduras, notas florais, herbáceas e minerais. No palato, é frutado, equilibrado, estruturado, tem acidez vibrante e final médio/ longo muito agradável. Fresco e descompromissado, para beber, uma delícia. EM

 

AD 90 pontos
FP BRANCO BICAL ARINTO 2010

Filipa Pato, Bairrada, Portugal (Casa Flora R$ 61). Branco elaborado a partir de uvas Bical e Arinto, com fermentação de 20% do mosto em barricas usadas de carvalho francês. Apresenta cor amarelo-citrino de reflexos esverdeados e aromas de frutas brancas e tropicais maduras envoltas por notas florais, minerais e herbáceas. No palato, é frutado, estruturado, equilibrado, tem acidez vibrante e final suculento e persistente, com uma agradável nota salina. Surpreende pela profundidade e complexidade do conjunto, sem comprometer sua leveza e frescor. EM

 

AD 91 pontos
NOSSA CALCÁRIO BRANCO 2011

Vinhos Doidos, Bairrada, Portugal (Casa Flora R$ 122). Branco elaborado a partir de uvas Bical advindas de um vinhedo único localizado em Óis do Bairro, com fermentação em barricas de carvalho francês de 500 litros. Apresenta cor amarelopalha de reflexos esverdeados e aromas de frutas brancas e de caroço maduras, notas florais, herbáceas e minerais, toques de frutos secos e de especiarias doces. No palato, é frutado, estruturado, tem acidez vibrante, ótimo volume de boca e final persistente e fresco, muito mineral. Profundo e elegante, está bom agora, mas deve ficar ainda melhor nos próximos 4/5 anos. EM

Filipa Pato Luís Pato entrevita filha