Sonhos e angústias de uma nova safra

Das sementes às colheitas; dos barris às taças. Com a chegada da nova safra, o mundo dos vinhos aguarda ansioso o que está por vir.

Christian Bernard* Publicado em 10/02/2006, às 08h44 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h43

Fogos e gritos anunciam a chegada de um novo ano. As rolhas dos espumantes fogem das garrafas e a comemoração do ano novo chega no seu ápice. Os goles de vinho espumante vêm na seqüência dos abraços e desejos de um ano próspero e repleto de alegrias. Essa situação é normal nas passagens de ano, quando as pessoas abrigam-se junto a familiares e amigos para ter uma entrada alegre e agradável no ano novo. No entanto, para um grupo específico de pessoas, também traz um certo sentimento de angústia, de esperança e de sonho sobre o que será a nova safra de vinhos.

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Para os enólogos, vinicultores, viticultores e enófilos, cada gole de espumante traz consigo algumas perguntas: Quais vinhos serão elaborados neste novo ano? Como será o comportamento do clima? Que aromas e sabores serão formados? Qual será a aceitação do vinho pelo consumidor?

Há quem diga que a vida do profissional da uva e do vinho não é contada em anos, mas em safras: Quantas safras tu tens? Na verdade, ela é precedida de um longo caminho, que inicia ao termo da vindima precedente e forma ciclos subseqüentes e ininterruptos, sem dias certos de início e término.

Estamos no final do inverno e início da primavera. As primeiras gemas da vinha dão sinal de brotação e inicia-se a poda. O viticultor, homem simples e dedicado, realiza a atividade que tem por objetivo, não simplesmente retirar os galhos velhos da videira, mas estabelecer a quantidade e qualidade que terá a uva oriunda de cada planta. Orientada por enólogos e agrônomos, a poda é realizada tendo por base uma expectativa de clima, a vitalidade da vinha, as características do vinho desejado... Enfim, é o início de um trabalho que será modelado ao longo do ciclo da videira, conduzindo sua nutrição, poda verde, despontes, seleção de cachos... Tudo para que se tenha o máximo de qualidade na vindima. Dessa forma, percorremos toda a Primavera, estação da floração. Chega o Verão e, com ele, o estágio final de maturação.

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Definir o momento exato da colheita da uva é muito mais do que uma ciência. Os parâmetros físico-químicos são um valor de referência para sabermos a composição da uva, mas somente a sensibilidade e experiência de um profissional da uva e do vinho conseguem saber o dia preciso da colheita. A colheita é realizada nas primeiras horas da manhã - a uva colhida e selecionada chega à vinícola, onde a ciência e a arte se fundirão para transformá-la em vinho, a bebida dos deuses.

Muitos enólogos experientes dizem a jovens profissionais: "Estamos em safra, esqueça festas e namoricos, sua companhia até o término da vindima serão as leveduras!". A uva esmagada gera o mosto que, sendo rico em açúcares, será imediatamente povoado por microorganismos (leveduras do gênero Schaccaromyces). Essas leveduras serão as únicas responsáveis pela transformação do mosto (suco) em vinho, portanto, cabe ao enólogo dar a elas as melhores condições possíveis de trabalho. Controles de temperatura, oxigenação, pressão, luminosidade, além do tipo de recipiente, forma de manuseio, movimentações da massa... Detalhes que, somados, dão ao vinho um estilo todo particular e aí estará a cara do enólogo, o perfil da vinícola, a tipificação da região produtora.

Não são poucas as preocupações do enólogo nessa fase; suas decisões não serão unicamente avaliadas pela sua consciência, mas por toda a organização (empresarial, social e cultural) que terá aquele vinho, e trará como resultado uma imagem positiva ou negativa. E isso é, profissionalmente, o que importa.

A vindima chega ao fim, mais algumas semanas e as últimas borbulhas de gás carbônico serão desprendidas pela fermentação. Agora o que tinha que ser feito já foi feito. Vem então o período de dar afinamento ao vinho, assim como o último polimento em uma jóia ou a socialização de uma pessoa. A maturação e envelhecimento do vinho, juntamente com filtrações, clarificações e estabilizações, não serão mais baseadas na uva, mas sim no jovem vinho que já tem sua personalidade formada e requer tratamento particular para não desvirtuá-lo.

Dessa forma percorremos o Outono e o Inverno, período relativamente tranqüilo: as videiras entram em dormência e o vinho descansa nos tanques ou garrafas. O viticultor aguarda e prepara-se para a poda e o enólogo analisa calmamente o vinho. Aos amantes do vinho, cabe aguardar ansiosos o momento de ter em suas taças a misteriosa bebida.

Assim é a vida de um enólogo, profissional e amante do vinho, que tem seus compromissos econômicos, sociais e culturais movidos por uma grande força: o amor. O amor à terra, à vinha, à natureza, ao vinho e às pessoas. No momento em que o vinho produz prazer nas pessoas que o consomem, tem-se a certeza de que vale a pena os esforços e preocupações, assim como quando um filho moço conquista uma namorada ou é aprovado num vestibular, ou simplesmente deixa uma pessoa feliz. Viticultores, vinicultores, enólogos e enófilos, é chegada uma nova safra, repleta de ansiedade e responsabilidade, sonhos e objetivos, certezas e algumas dúvidas. Que tenhamos todos sucesso e vinhos fabulosos!

* Christian Bernardi é enólogo e diretor da ABE, Associação Brasileira de Enologia.