Tintos para bicos e penas

No inusitado matrimônio entre aves e vinho tinto, tudo pode acontecer. Como cenário, o restaurante de Roberta Sudbrack; como protagonistas, arroz de pato, codorna e vinhos tintos de diferentes origens

Marcelo Copello Publicado em 11/11/2005, às 14h27 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h43

Nunca pensei que um clichê do futebol se aplicasse tão bem à requintada temática da harmonização entre vinhos e alimentos. Depois dessa reportagem, só posso dizer que "a harmonização é uma caixinha de surpresas".

Mesmo pretendendo abordar a compatibilização de forma completa, com uma análise detalhada dos vinhos, dos alimentos e de seu matrimônio, confrontando teoria e prática, percebe-se que mesmo a mais sólida teoria requer confirmação prática, dada a complexidade do tema.

Inusitado

A primeira idéia que vem à cabeça quando se pensa em "aves e vinhos" é "carne branca com vinho branco". Para fugir do óbvio, ADEGA escolheu "aves x tintos".

Para tal, nada de restaurantes típicos e cozinhas tradicionais, fomos direto à melhor novidade surgida no Rio de Janeiro em 2005: o restaurante de Roberta Sudbrack (www. robertasudbrack.com.br). Esta talentosa chef, que já comandou as panelas do Palácio da Alvorada, prima pelo bom gosto, leveza em suas criações e respeito aos ingredientes.

Como a variedade de bicos e penas é imensa escolhemos um representante de sabor mais delicado, uma codorna grelhada, e um mais encorpado, um arroz de pato. Os pretendentes ao matrimônio com esses pássaros eram quatro galantes tintos, de quatro de origens, uvas e safras diferentes, fornecendo um amplo painel.

Além deste abnegado editor que vos escreve e da supracitada chef, foram convidados a emprestar seu palato à reportagem: Vera Carneiro - proprietária do restaurante Atrium; Marcos Lima - sommelier vice-campeão brasileiro do restaurante Locanda della Mimosa, e Reinaldo Paes Barreto - diretor institucional do Jornal do Brasil e membro da confraria Companheiros da Boa Mesa.

Antes de qualquer garfada, no entanto, fiz uma prévia análise dos vinhos e pedi ao especialista Guilherme Corrêa para nos fornecer um texto como base teórica sobre o que iríamos encontrar.

Da esquerda para a direita, Vera Carneiro, Reinaldo Paes Barreto, Roberta Sudback, Marcelo Copello e Marcos Lima

A teoria por Guilherme Corrêa*

Frango de granja, frango caipira, galeto, capão, codorna, perdiz, faisão, pato, ganso, pombo etc. É difícil generalizar o perfil de vinho quando tratamos com tantos níveis de estrutura, textura, gordura e aroma no universo alado. Isso sem falar na miríade de preparações culinárias a que esses animais se sujeitam, possibilitando um amplo espectro de vinhos para uma perfeita harmonização.

A primeira regra de harmonização é a do nivelamento da estrutura. Em se tratando de aves, podemos fazer um agrupamento em três níveis: pouco estruturado (peito de frango e peru, galeto), moderadamente estruturado (frango caipira, codorna, perdiz, peru, capão, galinha d'angola) e estruturado (faisão selvagem, pombo, marreco selvagem, pato, ganso). Outra característica importante das aves é que geralmente as carnes não são ricas em gordura, concentrada abaixo da pele dos animais. Se a cocção não for perfeita, a carne pode ficar menos suculenta, proibitiva aos tintos tânicos. Para aves mais ricas em lipídios e sabor como patos e gansos, um crescimento em estrutura e taninos via de regra é bem vindo. Os patos têm também uma perceptível tendência ao doce natural na carne, que deve ser confrontada com o frescor ácido ou com a sapidez (riqueza de sais minerais) do vinho. Analisando os pratos e os vinhos que serão provados, teoricamente o arroz de pato, por ser um prato de maior sabor, se acomodará melhor com os tintos estruturados do Barolo, do Hermitage e do Prado Rey. A untuosidade do arroz de pato trará conforto para o assalto tânico do Barolo e do Hermitage, e a boa acidez de ambos deverá pôr vida no prato, este com uma perceptível tendência ao doce. O Prado Rey também disponibilizará álcool e taninos suficientes para enxugar a untuosidade, e dotado de um perfil olfativo mais etéreo e complexo acenderá a chama rústica/regional da harmonização.

A codorna, por sua vez, fará um casamento clássico com o Pinot Noir. Com seus taninos leves e dóceis e sua acidez suculenta, o Pinot Noir, irá abraçar e trazer estímulo à codorna e, não obstante ande bem com arroz de pato, carecerá de um pouco mais de estrutura e firmeza para ajudar no processo de limpeza das gorduras líquidas na boca (sobrará untuosidade).

*Guilherme Corrêa é sommelier formado pela Associazione Italiana Sommeliers.


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A prática

Arroz de Pato

Ao contrário do esperado, Roberta serviu o arroz de pato antes da codorna. A surpresa foi logo entendida por todos, dada a delicadeza do preparo. Reinaldo chegou a brincar que era "quase uma canja de galinha". As características do pato foram mantidas: riqueza aromática, complexidade e nível de sabor, porém com menos estrutura e untuosidade do que as receitas tradicionais.

As opiniões sobre qual o melhor vinho para o casório ficaram divididas. Dos cinco comensais dois preferiram o Hermitage, dois o Pinot Noir e um o Barolo. Vera e Reinaldo optaram pelo grande vinho do Vallée du Rhône, com seus taninos já evoluídos. Para eles, pato e vinho tinham a mesma complexidade e nível de estrutura, enquanto os outros fermentados se sobrepunham à ave. Para a chef Roberta o escolhido foi o italiano que, por ter taninos nervosos sem perder a elegância, teria enfrentado bem o sabor marcante da ave. Marcos e eu ficamos com o Pinot Noir, para nossa própria surpresa. As notas de funghi e especiarias, com taninos presentes e finos estavam na medida do pato; enquanto o Barolo atropelou o pato com penas para todos os lados, exacerbando sua tendência ao doce no fim de boca.

Arroz de Pato Codorna

Codorna

Os suspiros pareciam ensaiados quando todos provaram as coxinhas de codorna grelhadas com pele, acompanhadas de cuscuz marroquino de castanha de caju e uva passa. A unanimidade no amor ao prato não foi estendida à escolha do melhor vinho: o Barolo saiu ganhando com três votos, contra um para o Hermitage e um para o Pinot. A chef Roberta optou pelo francês, sem dúvida um vinho encantador no palato, com a riqueza necessária ao contraponto com as passas e castanhas. Pinot Noir e codorna formaram um belo casal, para Vera.

Contrariando todas as expectativas, Barolo e codorna formaram o melhor par da noite. Para três participantes, Marcos, Reinaldo e eu, o grande "B" do Piemonte e a codorna nasceram um para o outro, quem diria. Se provássemos 100 Barolos com 100 codornas, teríamos 99 litígios e uma paixão, que comprovaria apenas que no mundo dos sabores mora uma exceção em cada esquina. Certamente a gordura da pele da ave, aliada a castanha de caju e a uva passa contribuíram de forma decisiva para que a frágil codorna agarrasse um vinho tão tânico e persistente quanto o potente italiano, que tinha tudo para ser o solteirão da noite. Como dizem, "no amor, na harmonização e na guerra" vale tudo para sair vitorioso!

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Os vinhos da noite

Pinot Noir 2002, Hamilton Russel Vineyards - África do Sul (Expand, R$ 178).
Amadurecido 10 meses em barris franceses, com 13,5% de álcool. Granada entre claro e escuro. Tostados aparecem bastante, mas sem o toque de baunilha que o tornariam vulgar. Frutas secas, minerais, couro, cogumelos, e especiarias completam o quadro. Taninos muito finos bem presentes com toques e madeira aparecendo no fim de boca. O binômio fruta/madeira não domina e permitem a expressão do terroir.

Hermitage Pied de la Côte 1997, Jaboulet - Vallée du Rhône, França (Mistral, US$ 85).
Paul Jaboulet é um dos grandes nomes do Valée du Rhône e seu Hermitage La Chapelle, uma das maiores expressões mundiais da uva Syrah. O Hermitage Pied de la Cote, é considerado, por seu próprio produtor, como seu segundo vinho. Sua cor é granada com reflexos alaranjados. Os aromas já estão totalmente etéreos, denotando que o vinho já não deve evoluir mais, com frutas secas, couro, defumados e especiarias. Na boca está perfeito: taninos macios e 14% de álcool, elegante, complexo e com longo final.

Barolo Cannubi 2000, Marchesi di Barolo - Piemonte, Itália (World Wine, R$ 249).
Cannubi é um dos melhores vinhedos do Piemonte, gerando os mais elegantes Barolos. Este exemplar amadureceu dois anos em barricas de carvalho (35% esloveno e o restante francês), depois descansou 18 meses em sua garrafa. Sua cor é rubi com reflexos violáceos. Nos aromas lembra violetas, baunilha e outras especiarias, além de madeiras (carvalho, cedro). Grande corpo, taninos finos ainda bem presentes, com toques de frescor, no fim de boca aparece a doçura dos seus 14% de álcool.

Prado Rey Reserva 1999, Real Sitio de Ventosilla - Ribera del Duero, Espanha (Decanter, US$ 75,60).
Amadurecido 24 meses em barricas (de 240 litros) de carvalho americano e depois mais três meses em tonéis franceses de 21 mil litros; elaborado com 95% Tempranillo, 3% Cabernet Sauvignon e 2% Merlot, com 13,5% de álcool. Ótimo ataque aromático, complexo, com muitas especiarias, madeira aparece bastante, baunilha, torrefação (café), frutos maduros e minerais. Encorpado e muito seco (deixa a boca enxuta), com taninos finos ainda bem presentes, ótimo equilíbrio e um longo final. Longa guarda.