Apesar do nome complicado, os míticos vinhos de TBA guardam segredos interessantes
Arnaldo Grizzo Publicado em 06/01/2019, às 15h00
Quem conhece um pouco da língua alemã sabe que uma única palavra pode conter uma frase inteira. Trocken significa seco. Beeren, bagas. Ausele, seleção. Não devemos nos deixar enganar pelo Trocken; pois não significa que o vinho é seco, mas as uvas. Ou seja, o “palavrão” Trockenbeerenauslese, portanto, significa “seleção de uvas secas”. E esse termo está estampado em rótulos raríssimos, costumeiramente entre os mais caros do mundo.
Trockenbeerenauslese (ou TBA, para facilitar) é a classificação mais alta dos vinhos ditos Prädikat (vinhos de qualidade superior) na classificação dos vinhos alemães. Isso não quer dizer necessariamente que eles são os melhores (apesar de geralmente serem os mais aclamados), mas que são os de maior concentração de açúcar no mosto (ou de maturação da uva, pois eles não podem sofrer chaptalização) – porque os diferentes níveis dos vinhos da Alemanha são definidos de acordo com o “peso do mosto”, numa escala chamada Oechsle (veja abaixo).
A escala dos Prädikat começa com os Kabinett, passando pelos Spätlese (literalmente “colheita tardia”), indo para os Auslese (seleção de cachos), em seguida para os Beerenauslese (seleção de uvas), Eiswein (vinho do gelo) e, finalmente, os Trockenbeerenauslese (seleção de uvas secas).
Não se sabe exatamente quem cunhou ou onde nasceu o termo Trockenbeerenauslese, mas sabe-se como os vinhos alemães foram evoluindo até chegar a essa denominação. Acredita-se que a primeira safra de Spätlese (colheita tardia) tenha ocorrido em 1775, no famoso vinhedo de Schloss Johannisberg.
Diz-se que, naquele ano, o administrador da propriedade, Herr Johann M. Engert, enviou um mensageiro para que o abade de Fulda, dono da propriedade, pudesse dar autorização para a colheita. Na época, somente o dono podia dizer quando as uvas seriam colhidas. Fulda, porém, ficava a sete dias de cavalgada do local e, não se sabe exatamente o porquê, o mensageiro passou mais tempo do que o esperado na estrada. Quando voltou, todas as propriedades vizinhas já haviam colhido e as uvas do vinhedo Schloss Johannisberg já estavam todas podres.
Ainda assim, foram colhidas e vinificadas. No começo do ano seguinte, Engert resolveu provar. “O novo vinho está quase todo turvo e parou de fermentar com uma aromática doçura. Estamos aguardando algo extraordinário!”, teria relatado. Meses depois, concluiu: “Este vinho de 1775 é tão esplêndido que, dos seus oito degustadores, só se ouviu um comentário: nunca tive na boca um vinho igual a este!”. Assim teria nascido o Spätlese, não o do sentido atual, mas o do conceito de uvas colhidas tardiamente para produzir um vinho naturalmente doce.
O passo seguinte foi chegar aos Auslese ao perceber que as uvas mais podres (atacadas pela Botrytis cinerea) resultavam em vinhos mais “potentes”. Dessa forma, os cachos mais atacados foram separados dos demais e vinificados também à parte. O nome dado a esse vinho foi “Auslese” (seleção) no início do século XIX. E quanto mais cuidado se tinha nas plantações e na seleções, foram separando não somente cachos, mas uvas podres de cada cacho e assim, em meados de 1800, acrescentou-se o termo Beeren (bagas) ao Auslese, nascendo o Beerenauslese. Acredita-se que foi nessa mesma época que os châteaux de Sauternes aperfeiçoaram a técnica de seleção de grãos botrytizados.
O Trockenbeerenauslese surgiu quando o termo Beerenauslese não era suficientemente enfático para expressar o quão raras eram as últimas bagas selecionadas em uma videira. Na época, apareceram termos como Goldbeerenauslese (seleção de uvas de ouro) e Edelbeerenauslese (seleção de uvas nobres), além do Trockenbeerenauslese, que hoje se consagraria e daria uma ideia melhor do tipo de seleção, pois são colhidos (manualmente) apenas os grãos completamente secos atacados pela podridão nobre.
REQUERIMENTOS MÍNIMOS
Os requerimentos mínimos para os vinhos Trockenbeerenauslese são
de 150 a 154 graus na escala Oechsle, dependendo da região e da
variedade da uva na Alemanha. Essa escala mede a densidade do mosto,
que é uma indicação da maturação da uva e do teor de açúcar. Para se
ter ideia dos diferentes níveis, os vinhos Kabinett precisam ter mínimo
de 67 a 82 graus, os Spätlese de 76 a 90, os Auslese de 83 a 100 e os
Beerenauslese e Eiswein de 110 a 128.
O clamor pelos Trockenbeerenauslese deve-se por sua qualidade e raridade. Para que sejam produzidos, é necessária uma conjunção de fatores, como a aparição da Botrytis cinerea e também, geralmente, uma onda de calor fora de época, que ajude a desidratar ainda mais as uvas, que são colhidas uma a uma dos cachos. Dessa forma, eles dificilmente são produzidos todos os anos, mas somente em safras favoráveis.
Os TBAs possuem uma alta concentração de açúcar residual ao mesmo tempo que apresentam uma excelente acidez para contrabalanceá-lo. A graduação alcoólica costuma ser baixa, de cerca de apenas 5,5%. São vinhos tidos como etéreos e eternos, graças à capacidade de envelhecer em garrafa por tempo indeterminado. Apesar de costumeiramente serem feitos com Riesling (pois é a casta mais susceptível à podridão nobre e com ciclo mais longo), outras variedades também podem ser usadas. E vale lembrar que esse estilo de vinho não é feito somente na Alemanha, mas também na Áustria – que possui classificação bastante similar à alemã em seus vinhos de topo de gama.
Tem-se ideia do que são os Trockenbeerenauslese através de uma descrição de meados do século XIX de um conde que visitou a região do Rheingau, na Alemanha. “A descrição dos vinhos deveria ser deixada para Byron, Shakespeare ou Schiller, e nem mesmo esses gênios lhes fariam toda justiça até que tivessem absorvido umas duas taças cheias. Um bom gole, que desliza gota a gota pela garganta, deixa na boca o mesmo aroma que um buquê das mais selecionadas flores deixaria no olfato”, relata.
“Eles (TBA) precisam ser degustados para que se conheça sua grandeza, pois não há palavras para descrevê-los”
E o mesmo conde já revela o quão caros eram esses vinhos desde aquela época: “Eles precisam ser degustados para que se conheça sua grandeza, pois não há palavras para descrevê-los. Esses vinhos são, às vezes, oferecidos em leilão para o público, mas a preços tão exorbitantes que nós, pobres republicanos, estremeceríamos só de pensar em beber um líquido tão caro como ouro derretido”, afirmou ao se referir aos vinhos do Schloss Johannisberg.
Ainda hoje esses vinhos são míticos e caríssimos. Na última lista dos 50 mais caros do mundo divulgada pelo site WineSearcher, há nada menos que 10 Trockenbeerenauslese, sendo o do produtor Egon Muller o segundo colocado, com média de preço de mais de US$ 11 mil, atrás apenas do lendário Romanée-Conti.
VINHO AVALIADO
VERRENBERG RIESLING TROCKENBEERENAUSLESE 2013
Fürst Hohenlohe-Oehringen, Württemberg, Alemanha (Vind’Ame R$ 1.059 – 375 ml). Branco doce elaborado exclusivamente a partir de uvas Riesling botrytizadas advindas do vinhedo Verrenberg, propriedade da vinícola desde o século XIII. Elaborado somente em anos excepcionais e sempre em pequeninas produções, este vinho exala complexidade aromática e gustativa, mostrando frutas cítricas, damascos e maçãs em compota, além de cera de abelha, mel e frutos secos, tudo permeado por deliciosas notas minerais. Impressiona pelo equilíbrio entre sua vibrante acidez e sua doçura. Delicioso e raro. Álcool 11%. EM