Uma Pintura de Menu

O Restaurante Canvas é mais uma excelente opção de boa mesa, incrustado nas dependências do Hilton Morumbi

Luiz Gastão Bolonhez Publicado em 24/09/2008, às 07h08 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h45

Canapé redondo ornamentado com um pequeno camarão preparado no bafo

Era terça-feira, dois de setembro. Uma noite muito agradável em São Paulo. Nosso ponto de encontro era o Hotel Hilton Morumbi, ao lado do complexo World Trade Center no coração da Avenida Luis Carlos Berrini. É muito bom ver que São Paulo volta a ter excelentes restaurantes em hotéis de padrão internacional. Depois do Emiliano, onde nos surpreendemos com um menu inesquecível, foi a vez de irmos ao Canvas, um lindo espaço nas dependências do charmoso Hilton. Dias antes montamos um belo menu harmonizado em conjunto com o chef Fabio Boschero, um discreto romano radicado em São Paulo. A idéia era harmonizar sete pratos com sete vinhos. Passamos para Boschero os vinhos que seriam servidos e montamos a quatro mãos um menu especial.

Um Salmão para acompanhar o Champagne Rosé, crustáceos para dois brancos franceses de estirpe e para um potente Barbera Barricato, desafiamos o chef pedindo por uma surpresa. Quanto ao robusto Cabernet Sauvignon Chileno, a companhia perfeita seria uma carne com intensidade. Com os queijos, decidimos ousar: para os de leite de vaca e cabra, um tinto clássico da Espanha. Por último, a finalização especial do chef a nosso pedido, uma sobremesa com chocolate para harmonizar com um Porto Vintage.

Lívio Salles André Berenger Christian Burgos Rubens Benedik Luiz Gastão Bolonhez

Quando recebemos o menu de Boschero, já percebemos sua criatividade. Ele praticamente fechou o menu com um hole in one (referência à jogada de golfe em que um jogador acerta a bola no buraco com apenas uma tacada). Muita aderência aos princípios básicos da harmonização, mas sempre com uma coragem a mais.

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Os convidados eram Rubens Benedik, executivo do segmento consultoria empresarial; Livio Salles, executivo do setor de serviços; André Berenger, executivo setor bancário; Christian Burgos, publisher da revista ADEGA; e eu, seu editor de vinhos. O staff do hotel nos acompanhou de perto, atentos a todos os detalhes nessa noite de total harmonia.

Tartare de Scampi, Mini Brunoise de Legumes, Gengibre e Azeite Extra Virgem

O início, como mencionado acima, foi clássico. O Boschero preparou um canapé redondo com um leve toque de maionese e uma deliciosa fatia de salmão defumado ornamentada com um pequeno camarão preparado no bafo. Para acompanhar essa delicada gostosura tivemos o especialíssimo Champagne Rosé Millésimé 2002 da Casa Henriot. O toque na maionese untou o palato de todos preparando-os para receber o delicioso Champagne. “Com esse canapé e esse Champagne não podíamos errar”, exclamou Rubens, emendando: “começamos muito bem”.

O comentário de Rubens nos lembra que harmonizar um vinho e um prato é a arte de fazer o vinho complementar o prato e vice-versa, sem que um se sobressaia ao outro. Apesar de pouco difundido, o ato de harmonizar vinhos e comida está relacionado a seqüência de vinhos a mesa, por exemplo, em um grande evento em que temos farto couvert (ou canapés), entrada, prato principal, queijo e sobremesa, além de harmonizar um prato com o vinho, a harmonização do conjunto dos pratos é fundamental, ou seja, não faz sentido comer um bolinho de bacalhau com um tinto encorpado e depois comer um leve linguado com um Sauvignon Blanc sem madeira.

Como regra básica, o grande segredo da harmonização em um evento enogastronômico é que tanto pratos como vinhos devem ter uma seqüência crescente, ou seja, devemos ter no início vinhos mais leves como espumantes e brancos de preferência, e, seguindo uma escala crescente, passar por rosés (podem ser opcionais) e tintos, sempre dos mais leves para os mais encorpados e finalizar com vinhos doces, podendo ser fortificados ou não.

Costeleta de cordeiro recheado de foie gras em crosta de amêndoas, salada da horta ao vinagrete balsâmico e flor de sal

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Pois bem, após esse bom começo e obedecendo à risca o exposto acima, fomos para a segunda emoção da noite. Tínhamos pela frente Tartare de Scampi, Mini Brunoise de Legumes, Gengibre e Azeite Extra Virgem e o branco do Rhône Chateauneuf Du Pape La Bernardine Blanc 2006 de Michel Chapoutier. A Brunoise (pequenos pedacinhos) foi preparada com cenoura, aipo e pimentão vermelho com toques de molho inglês e complementada com o bem-cortado Scampi com raspas de gengibre. Nesse prato podemos notar o talento do chef romano. O conjunto provocou sensações impressionantes, deixando claro que, para harmonizar, teríamos de ter um vinho com muita personalidade também. O reluzente branco do Rhône tinha tons doces no nariz, o que, de imediato, contrapunha com o toque delicioso e provocante do gengibre. Ao colocar o vinho na boca todos ficaram impressionados com a sensação do conjunto vinho e prato. Ao final da noite, essa harmonização foi a campeã, dentre todas, no voto direto dos felizardos à mesa.

O terceiro encontro foi o Timbale de abacate tomate concassée marinado, tapenade de azeitonas e Scampi ao lado do monumental Chassagne Montrachet 1er Cru Abbaye de Morgeot 2006 de Frédéric Cossard. O chef mostrou coragem, pois sabia que para harmonizar com um vinho branco potente como esse Chassagne, tinha de ousar e sugerir algo que desafiasse o palato dos presentes. A iguaria foi preparada em camadas: uma com abacate, que por si só já era um desafio; uma camada de um concassé de tomate muito fresco; e uma camada de uma superpresente tapenade de azeitonas. A montagem desse prato constituía num show de engenharia, cores e, principalmente, sabores. A doçura e a gordura do abacate foram contrabalanceadas pela acidez do tomate e pela intensidade da tapenade. Um prato absolutamente provocante e multidimensional. Pois bem, quando prato e vinho se encontraram, a sensação foi marcante. Christian comentou: “Um vinho maravilhoso com um prato opulento fez desse encontro uma desafiante aula de harmonização”.

Soneto tulipa crocante, mousse de chocolate, creme chibust e sorvete

A próxima experiência foi, para Lívio, uma das maiores de sua vida no quesito harmonia e complementaridade à mesa. O prato era Risoto de Camembert Rúcula Selvagem, Juliene de Bresaola, Brunoise de Tomates e Nozes e o vinho o Piemontês Barbera D’Alba Fides 2005 de Pio Cesare. O risoto foi preparado com o mais consagrado super fini arroz da Italia, o Riso Carnarolli. Foi à panela com vinho branco, manteiga e queijo Camembert. Na hora de servir foi adicionada a Juliene de Bresaola (finas fatias) e as mini rúculas selvagens para acompanhar. O prato foi interessante, pois o queijo e a bresaola, conjunto gorduroso, foi contrabalanceado pelo delicioso amargor da rúcula. As nozes eram a nota final que colocava toque crocante para fechar a complexidade do prato. Por si só, esse conjunto era harmônico e ao mesmo tempo provocante. Com a boca arredondada pelo delicioso risoto, esperávamos um vinho com taninos redondos e bem formados. Bingo! O Barbera Fides, dentre os tintos, foi o vinho que mais atenção chamou, devido a sua intensidade aromática e boca sedosa. André suspirou: “Vinho e prato estão em total consonância... deliciosa harmonia na boca”.

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O último encontro antes dos queijos foi a Costeleta de cordeiro recheado de foie gras em crosta de amêndoas, salada da horta ao vinagrete balsâmico e flor de sal com o marcante chileno Haras Elegance 2003, da Viña Haras de Pirque. O prato estava mais para uma obra de arte do que qualquer outra coisa. A costeleta de cordeiro foi artesanalmente preparada com flor de sal e recheado com foie gras. Em seguida, a costeleta foi empanada com farinha e amêndoas que, depois de frita, foi à mesa acompanhada por uma deliciosa salada verde. O sabor da costeleta crocante levou a nota máxima de todos. A harmonização foi na medida, pois o herbáceo e fresco Cabernet Sauvignon fez o balanço ideal no palato. Talvez a facilidade de harmonizar Champagne Rosé com salmão defumado seja a mesma de harmonizar costeleta de cordeiro com um Cabernet Chileno de raça.

Chegava então a hora dos queijos. Foram escolhidos quatro tipos: Reblochon, Taleggio, Petit Chèvre e Camembert de Cabra. Essa harmonização foi mais para aguçar paladares do que falar muito de teorias, pois queijos e vinhos sempre são motivos de muita discussão. Sabemos que harmonizar um único vinho com todos esses queijos seria impossível. O objetivo aqui era mesmo testar os comensais à mesa. Talvez um branco seria também uma bela pedida, mas decidimos pelo clássico Gran Muralles 2001 de Miguel Torres, produzido a partir de vinhedos únicos na denominacion de origen Conca de Barberá na Catalunha. Todos os queijos estavam deliciosos, mas o destaque foi o Camembert ao lado do firme e redondo tinto espanhol.

O fechamento foi o delicioso: Soneto tulipa crocante, mousse de chocolate, creme chibust e sorvete. A sobremesa teve ao seu lado um dos vinhos doces mais tradicionais do mundo, o Porto Vintage. Era difícil esperar que depois de seis pratos salgados de alta qualidade e formosura, o chef também se superasse no doce. Boschero fechou com chave de ouro. Um tubinho crocante com um cremoso mousse de chocolate inebriou todos pela sutileza aliada a muita personalidade. O Porto Vintage teve o papel de ser a pincelada final de nossa maravilhosa noite. Afinal de contas, Canvas em inglês significa tela (para pintar) e saímos de lá com uma pintura inesquecível em nossas mentes e corações.