Hecht & Bannier escolheram o "desconhecido" Languedoc-Roussillon para trabalhar e ajudaram a colocar a região de volta no mapa da vitivinicultura mundial
Redação Publicado em 10/10/2011, às 14h10 - Atualizado em 27/07/2013, às 13h48
A família de Gregory Hecht é alsaciana. A de François Bannier, bordalesa. Os dois são amigos e estudaram enologia em Dijon, na Borgonha, mas depois se separaram. Bannier trabalhou em Champagne por muito tempo. Hecht ficou responsável por comprar vinhos em um restaurante. No começo dos anos 2000, decidiram trabalhar juntos no Languedoc-Roussillon, uma região menos badalada da França.
Convencidos do potencial do lugar, decidiram investir. Não compraram vinhedos, mas uvas, trabalhando como négociants, fazendo uma extensa seleção de frutas para criar seus blends de denominações ainda desconhecidas do grande público, como Minervois, Saint Chinian e Faugères. Com o tempo, conseguiram ser reconhecidos e dar força a esses nomes. Sendo assim, ADEGA lhe ajuda descobrir essa região nas palavras de Gregory Hecht.
Por que escolherem o Languedoc-Roussillon para trabalhar?
Para nós, era uma região de grande potencial. Pensamos em comprar um Domaine, alguns vinhedos, mas não estávamos muito seguros. Sentimos que faltava reconhecimento à região, pois não havia nenhuma marca forte lá. Em todas as outras grandes regiões, havia. Por exemplo, no Rhône temos o Chapoutier; na Borgonha, o Bouchard. Em Languedoc não havia nada que mostrasse qual é o terroir da região. A única que existiu ali foi a Skalli. Eles foram muito bem sucedidos em criar uma marca baseada em vinhos varietais, como Chardonnay, Merlot etc. Mas, mesmo assim, não mostravam claramente o terroir de origem. Nosso objetivo, então, foi iniciar algo que já havia na Borgonha e no Rhône, nos moldes dos négociants, e ser a marca de referência de lá, em denominações diferentes, e começar sem nenhum vinhedo. Não possuímos terras, trabalhamos em parceria com alguns produtores, visitando-os várias vezes por ano, escolhendo aqueles que achamos melhor, totalmente diferente dos négociants do Languedoc. Lá, eles compram o vinho num dia e já vendem no outro. Nós não. Nós agregamos valor ao vinho. Selecionamos, trabalhamos nos blends (porque não vendemos nenhuma garrafa que seja de um único produtor) e no envelhecimento. Por isso não citamos de onde eles vêm.
Qual foi a primeira safra?
Foi a de 2001 para os tintos, com quatro denominações com que ainda trabalhamos: Minervois, Saint Chinian, Faugères e Côtes du Roussillon Villages. Produzimos 10 mil garrafas e, naquele ano, acho que bebemos mais vinho do que vendemos. Foi um pesadelo. E aí começamos a construir nossa distribuição. Na França, não vendemos nenhuma garrafa, porque lá o négociant tem uma imagem bem ruim. Lá você precisa ser um pequeno produtor, com pequenos vinhedos. O pequeno lá é muito apreciado. Decidimos, então, que iríamos começar pelos mercados de fora.
Por que decidiu se aventurar numa região tão difícil quando há outras um pouco mais fáceis?
Com certeza se tivéssemos levado esse projeto para o Vale do Rhône teríamos tido muito mais atenção mais cedo, encontraríamos distribuidores mais facilmente. Mas, adoramos a região e estávamos convencidos de seu grande potencial nos aspectos geográficos. Há uma grande diversidade de solos entre Montpellier e Perpignan: de calcário, argilosos, de areia, granito, ardósia. Você tem vinhedos em altitude (os vinhedos que usamos ficam entre 200 e 600 metros), que conseguem “driblar” o aquecimento global. Então, somos capazes de manter o equilíbrio dos vinhos. Outro motivo para termos escolhido Languedoc é que essa é uma região mágica, um tesouro de uvas e vinhos locais. Trabalhamos com tintos de cinco castas diferentes: Syrah, Grenache, Carignan, Mourvèdre e Cinsault, especialmente as quatro primeiras e, no que diz respeito à Grenache e Carignan, algumas videiras possuem mais de 80 anos, então elas têm muita personalidade. Esse é um ponto muito importante, pois não podemos competir com o Malbec, Merlot, Carménère do Chile e da Argentina. Precisamos contar uma história nova. Você pode contar uma história da região, mas é preciso apresentar vinhos distintos, com personalidade diferente.
"Uma boa maneira de entrar no mercado com os nossos vinhos é dizer que eles são blends de variedades do Rhône"
#Q#Os négociants gostam de colocar sua própria personalidade nos blends. Como lida com a ideia de querer ter uvas diferentes, desconhecidas para muitos consumidores, e fazer um blend atraente e de qualidade? Isso é um problema?
As uvas dependem do mercado. Hoje, nos Estados Unidos, o Vale do Rhône está muito forte. Uma boa maneira de entrar no mercado com os nossos vinhos é dizer que eles são blends de variedades do Rhône. E eles realmente são. Syrah, Grenache e Mourvèdre são muito comuns no Rhône e então essa é uma boa maneira de entender o vinho e a região. É difícil passar por todas essas barreiras, mas esse é um dos motivos de o negócio ser tão excitante.
Quão complicado foi manter um negócio em uma região sem reconhecimento?
Como os vinhos eram desconhecidos ainda, precisavam ser bons. Mas, no mercado global, não podemos ir contra a Wine Advocate, e a nossa região perdeu mais de 10 anos nesse aspecto. Antes de David Schildknecht (avaliador de Robert Parker para o Languedoc), que assumiu a região nas safras 2005/2006, a última safra citada no guia foi a de 1998. Entre 98 e 2005, não havia nada na Wine Advocate sobre Languedoc. Foi um pesadelo para a região toda. Era como se não existíssemos. Não estou dando desculpas, mas é difícil começar sem esse reconhecimento.
Qual é o perfil dos produtores de quem compra as uvas?
São muitos. Compramos de uma cooperativa que controla cerca de 70% da produção, e esse é um dos motivos pelos quais Languedoc não tem espaço no cenário internacional. Eles vendem bastante para redes de supermercado. Além disso, trabalhamos com produtores “autônomos” que não possuem cooperativas, e desde o começo trabalhamos com o maior Domaine da região, que vende seus vinhos já engarrafados, mas que abre uma exceção para nós porque pagamos adiantado e bem.
Nunca pensaram em ter vinhedo próprio?
Pensamos que, no futuro, em locais específicos, denominações específicas, poderemos ter alguns, sim. Talvez em Faugères. O ponto é que hoje, por conta das pequenas quantidades que produzimos, não precisamos ser donos dos vinhedos pelo simples fato de que, mesmo quando se tem uma safra muito boa, não há competidores para comprá-la, então...
Você pode explicar um pouco da personalidade das uvas de seus vinhos?
O Languedoc Blanc é feito com duas uvas, com destaque para a Picpoul Blanc. Por muito tempo, hesitamos em usá-la porque o sul da França não é o melhor lugar para vinhos brancos, é muito quente, mas optamos por essa uva por ser uma casta local. Ela é a chave do blend, que é feito a partir de 85% de Picpoul e 15% de Roussanne. A Picpoul é um pouco como a Muscadet, tem aromas de limão, é fresca, e a Roussanne possui aromas de flores brancas. Mas a Picpoul é curiosa. Ela surpreendentemente tem maturação bastante tardia. Nessa região, as uvas brancas geralmente estão prontas no começo de setembro, mas ela só vai estar madura quase na metade de outubro. E o processo de colheita é longo, pois ela é plantada a poucos metros do mar, para que tenha o benefício da brisa marítima no final do verão, o que é muito importante para que ela ganhe fruta e tenha acidez. Já nos tintos, usamos a Syrah, Grenache, Carignan, Mourvèdre e um pouco da Cinsault.
E como se comporta a Syrah?
A Syrah é um pouco diferente do usual. É plantada em grande escala em Languedoc, mas não é uma uva antiga no sul da França. Ela começou a ser plantada nos anos 60, em Faugères. Depois disso, foi para Minervois e Saint Chinian. Ela dá à bebida um caráter mediterrâneo. Dependendo do solo, pode ser bem tânica e ter mais estrutura. É muito interessante trabalhar nos diferentes tipos de solo. Enquanto no xisto temos os taninos e a estrutura, na argila há mais acidez e mineralidade, um caráter floral.
Como é a Grenache?
Ela é uma uva histórica, sua casa é a região de Roussillon. No início do século XX havia um mercado gigante de vinhos de aperitivo, que se assemelhavam ao Martini, e eram produzidos a partir da Grenache, por sua habilidade em produzir vinhos de alto grau alcoólico. Então, ela era plantada por todos os lados. Mas, ano após ano, sua área de plantio foi decrescendo. Então você tem esse tesouro que produz vinhos fantásticos. Há um ótimo terroir que traz muito caráter ao vinho, dá suavidade e doçura.
E como é a Mourvèdre?
A Mourvèdre é uma uva fantástica do sul da França, mas não é plantada em muitos locais. Temos poucas mudas porque ela é de maturação muito difícil, muito tardia. Nosso blend em que vai mais Mourvèdre é o Faugères, que leva 35%. Quando temos uma boa safra, ela faz toda a diferença. Dá estrutura, taninos, potencial de envelhecimento, é fantástico.
"É muito importante ter a “abordagem de Champagne”, um estilo. Claro que você tem o estilo da safra, mas também precisa de uma direção. Construímos uma marca, construímos uma assinatura"
#Q#Como manter o padrão dos vinhos como négociant?
Costumamos trabalhar com os mesmos produtores, mas sempre tentamos encontrar novos, para o caso que algum deles dizer: “Desculpa, mas esse ano não poderemos trabalhar juntos”. Mas é muito importante ter a “abordagem de Champagne”, um estilo. Claro que você tem o estilo da safra, mas também precisa de uma direção. Construímos uma marca, uma assinatura.
O que vocês trouxeram para o vinho da região?
Quando fomos para Languedoc, já tínhamos estudado a cultura do vinho antes. Isso é muito diferente da maioria dos produtores da nossa região, que não conheciam outras. E acho que progredimos. Demos mais finesse ao vinho, mais equilíbrio, trouxemos a cultura do norte para lá. A obsessão em manter o vinho fresco, equilibrado, bebível. O problema é que, chegando ao sul da França, você precisa esquecer tudo o que aprendeu. Quando se aprende sobre vinho na Borgonha, todo o foco é na maturação, em encontrar um clima melhor para colher a Pinot Noir madura. Em Languedoc, o que procuramos é um local onde haja processo de maturação longo e progressivo, onde dê para preservar o equilíbrio e a acidez, e evitar a sobrematuração. O problema não é a maturação, é a sobrematuração. E com o tempo desenvolvemos isso.
Nos vinhos da França, a capacidade de envelhecer bem é um ponto-chave. Na sua região costuma-se beber vinhos jovens. Como lida com isso?
Primeiro de tudo, não temos uma história longa. Nossa primeira safra foi em 2001, então ainda não sabemos para onde nossos vinhos estão indo. Tudo depende de como você gosta dos vinhos. Pessoalmente, prefiro aqueles que estão com quatro ou cinco anos, porque ainda têm alguma fruta, mas já desenvolveram a expressão do terroir, então estão mais complexos. Acho que bem poucos vinhos no mundo envelhecem bem, até mesmo os de Bordeaux. Você precisa perguntar o que significa envelhecer. É ficar naquele ponto, ou cair, ou...
"É muito interessante trabalhar nos diferentes tipos de solo. Enquanto no xisto temos os taninos e a estrutura, na argila há mais acidez e mineralidade, um caráter floral"
Como lida com os estilos do Novo e Velho Mundo?
O trunfo de nossa região é que podemos fazer vinhos que agradam o consumidor em diversos países, porque ele é fácil de ser entendido. Alguns vinhos da França não são fáceis de serem bebidos, você precisa de muito conhecimento para dizer que ele é interessante. E em Languedoc os vinhos podem ser fáceis.
É um elogio dizer que um vinho é fácil de ser bebido?
Quando digo que é fácil de beber, quero dizer que é fácil de entendê-lo, fácil de estar em contato com ele. Você não pensa no terroir nem em nada, seu primeiro reflexo é dizer: “Gostei”. Nos Estados Unidos, as pessoas são acostumadas a sabores fortes, como Coca-cola, ketchup, mostarda, e precisam de algo que seja saboroso, então não é surpresa que os vinhos da América consigam sensibilizar o palato. Temos contato com esse caráter primário, mas também queromos dar um passo a mais, introduzir o terroir, para que possamos conversar com dois níveis de consumidores.