O possível cruzamento entre Cabernet Franc e Merlot deu origem a uma incrível história que se tornou o Caberlot
Por Guilherme Velosso Publicado em 09/11/2022, às 15h00
O inverno de 1985 será lembrado como um dos mais rigorosos na Toscana. Entre outros prejuízos, o frio dizimou incontáveis oliveiras em diferentes localidades.
Mas, em pelo menos um caso, a tragédia climática resultou no lançamento de um vinho absolutamente original: o Il Caberlot, produzido pela Podere Il Carnasciale, situada a 30 quilômetros tanto de Siena como de Arezzo.
Para entender a relação entre esses dois acontecimentos sem conexão aparente, é preciso recuar alguns anos e contar uma história que parece enredo de novela, com locações na Itália, Alemanha e França.
Tudo começa no início dos anos 1960, perto de Pádua, quando o agrônomo Remigio Bordini identificou, num vinhedo quase abandonado, uma uva até então desconhecida, aparentemente resultado de um cruzamento natural entre a Merlot e, possivelmente, a Cabernet Franc.
Bordini plantou um pequeno vinhedo com mudas da variedade para avaliar sua viabilidade comercial e registrou-a para fins legais. A uva desconhecida tornou-se oficialmente a “L32”. Como nas novelas, o cenário muda para Berlim, na Alemanha. Entram em cena um bem-sucedido diretor de criação de uma agência de publicidade internacional, Wolf Rogosky, e sua esposa, Bettina, ambos alemães.
Quando estudante de arte, Wolf viajou pela Toscana e se apaixonou pela região. Nos anos 1970, o casal soube que, devido à crise econômica, havia muitas propriedades praticamente abandonadas à venda na região. E decidiu conhecer algumas delas in loco. Entre as que visitaram, a Podere Il Carnasciale não parecia, pelo menos à primeira vista, a mais promissora. Além do mau estado de conservação, pesava o fato de que não tinha luz elétrica ou água encanada. Mas a vista, a quase 500 metros de altitude, encantou os Rogosky e selou a compra, em 1972.
No início, em razão do trabalho de Wolf, as visitas eram esporádicas. O casal viveu em Nova York, Paris e Berlim. Wolf, amante de vinhos, sempre quis plantar vinhedos nas encostas rochosas do terreno. Mas não obteve a permissão necessária das autoridades, até que o frio inverno de 1985/1986 se encarregou de matar as centenárias oliveiras da propriedade.
Vencidos os trâmites burocráticos, conseguiu, finalmente, a autorização. Faltava apenas decidir que casta ou castas plantar na área liberada. De imediato, ele descartou a opção mais óbvia, ou seja, a Sangiovese, matriz dos grandes tintos toscanos, a começar pelo Chianti.
Na sua avaliação, outras propriedades da região tinham condições mais favoráveis para cultivá-la do que Il Carnasciale.
Assim, decidiu consultar um especialista. E aqui entra em cena mais um personagem importante nessa história: o enólogo Vittorio Fiore, que fazia alguns dos vinhos de que Wolf e Bettina mais gostavam.
Fiore conhecia Bordini e colocou Rogosky em contato com ele, sugerindo que tentassem a tal variedade desconhecida. Bingo!
O primeiro vinhedo foi plantado em 1986, em alta densidade (11 mil plantas por hectare), com mudas fornecidas por Bordini. O plantio usou o sistema gobelet/alberello (troncos baixos, em forma de arbusto ou “vaso”, e podas curtas, para diminuir o rendimento das videiras).
Inicialmente, foram ocupados apenas 0,3 hectare de terreno próximo à casa principal, o que, obviamente, limitava drasticamente a produção. Não fosse o talento criativo de Wolf, talvez o vinho que começou a produzir ficasse restrito à família e aos amigos, como ocorre muitas vezes nesse tipo de projeto. Mas ele tinha ambições maiores.
Primeiro, como bom publicitário que era (morreu em 1996 e suas cinzas estão enterradas no jardim ao lado da casa principal), decidiu que o nome do vinho seria justamente o acrônimo formado pelas duas uvas que teriam dado origem à que foi plantada. E ainda conseguiu que a L 32 fosse oficialmente rebatizada com o nome que tem hoje, Caberlot, de apelo comercial muito maior.
Segundo, numa iniciativa que poderia parecer suicida do ponto de vista comercial, se considerada a já minúscula produção, decidiu só engarrafar o Caberlot em magnuns, equivalentes a duas garrafas normais, simplesmente porque acreditava que grandes vinhos necessitam de formatos maiores para se desenvolver plenamente.
Note-se que até então não havia nenhum vinho produzido com a variedade descoberta por Bordini. Ou seja, plantar Caberlot era uma aposta no escuro. Mas a fé de Wolf no projeto era tanta que, para dar sorte, enterrou uma garrafa fechada de Sassicaia safra 1985, um dos chamados supertos-canos, no local destinado ao primeiro vinhedo.
Por muitos anos (o segundo vinhedo, com 0,8 hectare, só foi plantado em 1999), a produção do Caberlot não ultrapassou pouco mais de 500 garrafas magnum. Menos ainda (300 garrafas) na primeira safra, 1988, produzida com uvas provenientes do pequeno vinhedo experimental de Bordini.
A veia publicitária de Wolf se fez presente, também, na escolha do rótulo. Uma simples cruz pintada à mão, que muda ligeiramentede formato e de cor a cada ano. Todas as garrafas são numeradas também à mão por Bettina. A decisão de só engarrafar em magnum não foi seguida em 1989 e 1992, porque o casal Rogosky não considerou a qualidade à altura do padrão estabelecido para o vinho. Por isso, decidiram vendê-lo em garrafas de 750 ml. E houve um ano, 1990, em que o Caberlot não foi produzido simplesmente porque as uvas foram comidas porjavalis, antes que os vinhedos fossem cercados.
Assim, a primeira safra produzida inteiramente com uvas da própria Podere Il Carnasciale foi 1991.
Mas, a maior exceção à regra de só engarrafar em magnuns não foi fruto do clima ou do acaso. Por muitos anos, foram produzidas 24 garrafas de 750ml exclusivamente para o estrelado restaurante L’Ambroisie, em Paris.
“Meus pais eram clien-tes regulares de Monsieur e Madame Pacaudno L’Ambroisie, antes mesmo de ele se instalar na Place des Vosges”, explica Moritz, filho mais velho do casal. “Por muito tempo, fornecemos nosso azeite de oliva para o restaurante e meus pais decidiram engarrafar um pequeno lote do Il Caberlot exclusivamente para eles”.
O fato de ser o único rótulo não-francês na carta desse templo da alta gastronomia obviamente atraiu muita curiosidade para um vinho praticamente desconhecido. Após a morte de Wolf, Bettina decidiu continuar o projeto, inicialmente com a ajuda do filho Philip, “um ano e um dia” mais moço do que Moritz, como conta o mais velho. Philip trabalhou na propriedade dos pais de 1996 a 2002, quando decidiu dedicar-se exclusivamente à produção cinematográfica em Roma, onde vive.
Curiosamente, Moritz, que até então se dedicaraà carreira de designer de moda masculina, ocupou seu lugar. Educado em Nova York, Oxford e Paris, ele ainda mora em Paris com a família quando não está na Toscana, mas trocou a moda pelo vinho.
As de 2010 e 2013 foram plantadas numa quota mais baixa (250 metros) do que as mais antigas (450 metrosde altitude), com um duplo objetivo, segundo Peter Schilling, que responde pela enologia como italiano Marco Maffei. Primeiro, o de facilitar a maturação da própria Caberlot, que precisa de calor; segundo, o de garantir que, mesmo diante de um desastre climático, como o que dizimou as oliveiras em 1985, haverá uvas para produzir algum vinho.
Todo o trabalho no vinhedo é manual e, em parte, realizado por um grupo de admiradores do vinho vindos de diferentes partes do mundo, que se intitulam “Amigos do Caberlot”.
A produção é totalmente orgânica e o rendimento, como esperado, baixo: 3 toneladas por hectare. Após a colheita, o mosto é fermentado, sem engaços, em pequenos tanques de inox, correspondentes a cada parcela de vinhedo e a cada dia de colheita.
A malolática e o amadurecimento do vinho se dão em barricas de carvalho francês, 60% novas, por 22 meses, com uma única trasfega. Ao final desse período, testa-se o vinho de cada barrica para decidir o que será destina-do ao próprio Il Caberlot e o que dará origem ao Carnasciale, o segundo vinho, lançado em 2000.
Uma vez tomada essa decisão, o Caberlot, do qual serão produzidas em torno de 3 mil garrafas por safra, só será liberado 16 meses depois de engarrafado; o Carnasciale, com produção em torno de 8 mil garrafas, após seis meses. Este último chega ao mercado em garrafas normais de 750 ml.
Ao irmão mais velho são reservadas apenas garrafas magnum e, mais recentemente, double-magnum.
A partir da safra 2016, a Podere Il Carnascia-le passou a produzir um terceiro vinho, 100% Sangiovese. O “Ottantadue” (82) utiliza uvas próprias e de um outro produtor. As primeiras são provenientes de um pequeno vinhedo de 0,8 hectare plantado pelos Rogosky para um vizinho em 2004 e adquirido por eles em 2015. As que são compradas vêm de um vinhedo certificado como orgânico, situado nas proximidades.
Outra novidade recente foi a introdução de uma edição limitada de garrafas de 750 ml, masc om um conceito diferente. Para se manter fiel ao espírito do Il Caberlot, Moritz decidiu criar um rótulo com o nome Sommelleria e chamar as garrafas de “demi-Magnum”. O objetivo por trás desse aparente truque de marketing, que parece inspirado por seu pai, é vender essas garrafas exclusivamente a restaurantes por intermédio do sommeliers.
“Minha ideia”, explica Moritz, “é que um cliente possa descobrir e provar o Il Caberlot Sommelleria no restaurante, onde se tem a melhor apresentação e o melhor serviço para um grande vinho; e depois, por praticamente o mesmo preço, compre a magnum para sua casa e adega”.
Engana-se quem por ventura pensar que o Il Caberlot é apenas uma curiosidade genética turbinada por marketing criativo. Trata-se de um dos grandes tintos toscanos, ainda que não seja muito fácil identificar sua origem quando provado às cegas. Para muitos, ele faz lembrar os vinhos de Saint-Émilion, o que é natural, já que estes têm por base, justamente, Merlot e Cabernet Franc. Há também quem veja semelhançascom os grandes Syrah do Rhône ou identifique notas encontradas em exemplares chilenos de Carménère, uva com a qual partilha uma trajetória até certo ponto parecida. Afinal, a redescoberta da Carménère no Chile se deu em vinhedos supostamente plantados com Merlot.
* História publicada originalmente
na edição 159 da Revista ADEGA