Conheça a inusitada lenda de um poderoso vinho "Sangue de Boi" húngaro de força sobre-humana na terra do Tokaji
Arnaldo Grizzo Publicado em 16/02/2023, às 12h00
“Quando a lenda se torna fato, publica-se a lenda”. A famosa frase do desenlace do filme “O homem que matou o facínora”, clássico western do diretor John Ford com ninguém menos que John Wayne e James Stewart nos papéis principais, talvez possa ser novamente usada quando se retoma a história de um célebre vinho tinto húngaro. Pois é, estamos acostumados a falar de Tokaji com seus inesquecíveis doces botritizados quando se trata de Hungria, no entanto, há outro rótulo lendário produzido não muito distante.
Há cerca de 100 quilômetros do centro da região de Tokaji fica a vila de Eger, onde teria nascido o vinho Egri Bikavér, o “Sangue de Boi” original, o tinto húngaro mais conhecido mundo afora. Acredita-se que o surgimento da lenda em torno do “Sangue de Boi” tenha ocorrido durante o cerco otomano à cidade em 1552.
Na época, o castelo local, uma de suas principais atrações até hoje, teria resistido bravamente ao cerco inimigo, repelindo os ataques e, por fim, forçando os turcos a recuarem. Diz-se que as batalhas e o cerco foram exaustivos e que István Dobó, então senhor do castelo, mandou trazer vinho tinto de suas caves para encorajar os soldados desanimados com as lutas.
Segundo a lenda, os soldados recuperaram o vigor e continuaram a lutar após sorver o vinho, protegendo as muralhas a todo custo. Os turcos, impressionados com a resistência, não entendiam o que ocorria, e teriam notado um líquido vermelho escorrendo pela barba dos soldados húngaros. Espalhou-se então o boato de que os combatentes em Eger bebiam vinho com sangue de touro e assim ganhavam a força do animal – cujo sangue passava então a correr em suas veias.
Acredita-se que, graças a esse “tônico milagroso", cerca de dois mil homens resistiram a um exército invasor 40 vezes maior por mais de um mês. Com isso, a fortaleza de Eger não foi tomada (só seria conquistada pelos turcos em 1596) e nasceu, assim, Egri Bikavér.
Apesar da lenda heróica, a história do “Sangue de Boi” húngaro certamente não surgiu aí. Não há relatos de plantações de uvas tintas na Hungria até a ocupação turca. Há quem sustente que o nome Bikavér pode estar ligado a János Garay, famoso poeta húngaro nascido em Szegzárd, que teria cunhado o termo em um poema de 1846: “Despeje-o em seu copo e você verá um milagre! Sua cor é como o sangue do touro, mas a pérola que dela brilha é como a neve, branca. E a videira que a produziu é verde como um prado. Onde mais você pode encontrar uma tricolor (bandeira) mais bonita de nossa bela pátria?”
Lendas à parte, o vinho “sobrevive” ainda hoje. Os cerca de 5.400 hectares de vinhedos da área vinícola de Eger estão localizados na encosta sul das montanhas Bükk, no nordeste da Hungria. A região está dividida em dois distritos de denominações protegidas: Eger e Debrő, abrangendo assim a cidade de Eger e outras 19 vilas: Andornaktálya, Demjén, Egerbakta, Egerszalók, Egerszólát, Felsőtárkány, Kerecsend, Maklár, Nagytálya, Novaj, Ostoros e Szomolya no distrito de Eger, e Aldebrő, Feldebrő, Tófalu, Verpelét, Kompolt e Tarnaszentmária no distrito de Debrő. A área mais visitada em Eger é chamada de Szépasszonyvölgy (“O Vale das Mulheres Bonitas”), um vale ao sul da cidade, que acolhe inúmeras vinícolas.
O vinho Egri Bikavér é geralmente feito com uma mistura das variedades Kadarka e Kekfrankos, com outras cepas. Das 13 uvas autorizadas (Bíbor kadarka, Blauburger, Cabernet Franc, Cabernet Sauvignon, Kadarka, Kékfrankos, Kékoportó, Menoire, Merlot, Pinot Noir, Syrah, Turán e Zweigelt), pelo menos três precisam estar no blend segundo as regras locais. Kékfrankos e Pinot Noir são as tintas mais plantadas na região, mas o Syrah também é muito popular em Eger.
Desde 2004 foi introduzido o Egri Bikavér Superior, uma tentativa de garantir um pouco mais de qualidade aos vinhos que costumam variar muito em estilo. Neste caso, deve-se utilizar pelo menos cinco das 13 variedades recomendadas em um rendimento menor (máximo 60 hl/ ha) e envelhecer no mínimo 12 meses em barrica de madeira e seis meses em garrafa antes de ser lançado no mercado.
A fama de Egri Bikavér é tão O vinho Egri Bikavér é feito com uma mistura de variedades, geralmente com Kadarka e Kekfrankos grande que, na região, ofusca a produção de uvas brancas, cujas origens são anteriores e teriam sido plantadas por monges cistercienses, alguns dos primeiros a promover a viticultura no local ainda no século XIII.
Mas como competir com um vinho com poderes sobre-humanos? Se um tiver a oportunidade de provar, beba uma taça e veja se ele lhe inspira a bravura.
* Texto originalmente publicado na revista ADEGA 185, de março de 2021,
com o título "O poderoso Sangue de Boi'húngaro" e republicado após atualização.