Redação Publicado em 25/03/2020, às 17h50 - Atualizado em 26/03/2020, às 12h42
Terra, mar e ar: as visões e os novos projetos do incansável Aurélio Montes
O Brasil foi um dos primeiros países a importar os vinhos que levam o nome de Aurelio Montes. Em 1991, três anos após o nascimento da Viña Montes, a Mistral começou a vendê-los, numa relação que perdura até hoje. E, sempre que vem ao Brasil, ele traz novidades. “Não consigo ficar quieto”, admite aos 70 anos, completados em dezembro.
Em sua visita mais recente, no final de março, Aurelio mal continha um entusiasmo quase juvenil ao apresentar o novo projeto da Montes: um vinhedo plantado em 2018 numa pequena ilha próxima a Chiloé, na Patagônia chilena, 1200 quilômetros ao sul de Santiago (ver detalhes no quadro). Por que na Patagônia? “Paixão e desafio”, responde. O projeto também é fruto de uma de suas paixões que nada tem a ver com o vinho: “sou fanático por vela e navego muito”, conta. Muitas vezes, foi na região onde está plantando vinhedos que ancorou seu barco, o Folly (loucura), por sinal o mesmo nome do Syrah premium produzido pela Montes.
A paixão pelo mar vem da juventude. E levou-o a fazer o curso de oficial da reserva da marinha chilena em 2012, quando já era um produtor realizado e famoso no mundo inteiro. Antes, entre 2010 e 2011, passara um ano sabático nos Estados Unidos, com um duplo objetivo: estudar História, na Universidade de Berkeley, na Califórnia, e tirar o brevê de piloto por instrumentos. No “visual”, já voava há muitos anos. Hoje, Aurelio pilota seu próprio avião e, mais recentemente, helicóptero, tanto para visitar as propriedades da Montes no Chile como para atravessar os Andes até Mendoza, onde fica sua subsidiária Kaiken.
Embora adore voar, ele não tira os pés do chão quando se trata de produzir e vender vinhos. Outra razão que o trouxe ao Brasil em março foi promover a nova linha da Montes, batizada de “Special Cuvée”, que compreende quatro vinhos: Cabernet Sauvignon, Pinot Noir, Chardonnay e Sauvignon Blanc. Aqui, a chave é o preço. A linha foi pensada para ocupar o espaço entre os vinhos da linha Montes Alpha e os de alta gama, como Alpha “M” (corte bordalês), Folly (100% Syrah) e Purple Angel, à base de Carménère. Esta última, aliás, embora seja uma uva da qual o próprio Aurelio não é grande admirador, conquistou novos espaços para os vinhos chilenos nos mercados internacionais. E, como ele mesmo já admitiu numa entrevista, “você precisa produzir o que o mercado deseja; caso contrário, não conseguirá sobreviver”.
Aurelio não hesita em afirmar que a variedade emblemática do Chile continua a ser a Cabernet Sauvignon, que, na sua visão, é um “rei sem coroa”. Em apoio a sua tese, observa que vinhos à base de Cabernet Sauvignon respondem por 70% do que o Chile exporta, porcentagem apenas ligeiramente menor (entre 60% e 70%), no caso da própria Montes. O “sem coroa” embute uma crítica ao culto de muitos jornalistas e consumidores mais informados tanto a vinhos feitos com variedades que estão sendo recuperadas no Chile (Cinsault, Carignan, Grenache e Mourvèdre são alguns exemplos que cita) como aos chamados vinhos naturais ou orgânicos (ver quadro). Dos primeiros, diz que são vinhos interessantes e bem feitos, mas difíceis de vender, porque o consumidor, em geral, é “pouco aventureiro”. E definitivamente não é grande admirador dos chamados vinhos “naturais”, como deixa claro ao reproduzir, aos risos, o comentário de um amigo. “Ele diz que hoje, numa degustação, se alguém apresentar um Cabernet normal, limpo, de um bom vale chileno, tem que pedir perdão por não levar alguma coisa diferente, com acidez volátil alta, oxidação e aromas a qualquer coisa”.
Outra demonstração do pragmatismo com que Aurelio encara o mercado foi seu projeto de produzir vinhos no Napa, no final dos anos 2000. Ele não esconde que o principal motor da iniciativa foi o orgulho profissional. “Queria demonstrar a mim mesmo e ao mundo que somos capazes de produzir vinhos de qualidade em qualquer lugar da terra onde haja condições para plantar uvas”, admite. E completa: “A Califórnia, em especial o vale do Napa, é a Catedral do Novo Mundo”. Mesmo começando de forma prudente, comprando uvas e alugando parte de uma vinícola do grupo Codorniu para a vinificação, os vinhos eram caros. E, embora bem recebidos pela crítica, enfrentavam nomes já consagrados no mercado norte-americano. Por isso, após lançar as primeiras safras, decidiu colocar o projeto “para dormir”. Ele também já fez vinhos em Saint-Émilion, em Bordeaux (é um francófilo assumido), com um primo do ramo anglo-francês de sua família (a mãe é de origem inglesa).
Ao explicar o projeto em Chiloé, Aurelio diz que “sonhos são para ser cumpridos”. E nada sintetiza melhor essa ideia do que o próprio nascimento da Montes. Na época, ele tinha 39 anos, era casado e, como faz questão de lembrar, tinha cinco filhos para criar. Mas, depois de 12 anos como enólogo na Undurraga, uma vinícola familiar, e cinco como gerente de produção na gigante Viña San Pedro (VSP), à época a segunda maior do Chile, se sentia frustrado, por entender que a maioria das vinícolas de seu país se acomodara ao papel de produtor de vinhos “bons e baratos” que parecia reservado ao Chile. O sonho, no caso, era trocar quantidade por qualidade e competir no mercado internacional.
O acaso reuniu na própria Viña San Pedro o embrião do que seria a Montes: o próprio Aurelio, na enologia; um chileno de origem escocesa, Douglas Murray, na área de marketing e vendas; e um gênio das finanças, Alfredo Vidaurre, banqueiro que se tornara presidente da VSP. O quarto fundador, Pedro Grand, viria de fora. Sua família era proprietária de uma vinícola cujas instalações seriam usadas até que o novo projeto deslanchasse. O nome escolhido inicialmente, de certa forma, refletia as ambições dos sócios-fundadores: Discover Wine. Ou seja, mostrar ao mundo um vinho chileno ainda desconhecido.
Passados mais de 30 anos, o sonho tornou-se uma realidade muito maior do que qualquer um deles poderia imaginar. Hoje, a Montes (nome adotado logo depois do nascimento tanto para coincidir com o do enólogo que assinava os vinhos como também porque as montanhas, parte essencial da paisagem chilena, estavam presentes no desenho dos rótulos) produz 9 milhões de garrafas no Chile e mais 3 milhões na Argentina (Kaiken). Em ambos os casos, 95% da produção é exportada para mais de 100 países, que hoje incluem não apenas nomes conhecidos como Japão, maior mercado da Montes, Estados Unidos e Inglaterra, mas também surpreendentes, como Laos e Camboja (a Ásia responde por 40% das vendas).
Dos fundadores, além de Aurelio, apenas Pedro Grand continua vivo (Vidaurre morreu em 2008 e Murray, em 2010), embora tenha-se desligado da empresa no início dos anos 2000. Aurelio é presidente e CEO, mas seu cartão de visitas diz apenas “Guardián del Espíritu”, expressão cunhada por Murray, que decidiu adotar após a morte do sócio e amigo. Nesses 30 anos, a Montes foi a primeira a explorar o vale de Apalta e a plantar videiras em suas encostas, apostando em uvas como a Syrah, sem qualquer tradição no Chile, hoje consagrada em vinhos como o Folly e outros. Aurelio controla apenas 30% do capital da empresa. O restante está em mãos de outros acionistas, como a família Garcés Silva, dona da Amayna. E continua a prestar consultoria a duas vinícolas, pela relação de muitos anos com seus proprietários: Koyle e Viu Manent.
Aurelio tem quatro filhos vivos (Matias, o mais moço, morreu há dois anos). São três mulheres e um homem, que recebeu o nome do pai e do avô (o primeiro Aurelio trabalhava com seguros e só bebia vinho nos almoços familiares de domingo). As filhas mulheres são casadas, não trabalham na empresa e, como diz o pai, “vem aos domingos para almoçar e atacar minha adega”.
De seus 19 netos, um, hoje com 10 anos, tem o mesmo nome do bisavô, do avô famoso e do pai, conhecido como Aurelio “Junior” (os chilenos, seguindo a tradição espanhola, têm sempre os sobrenomes do pai e da mãe, nessa ordem). Atualmente, Aurelio Junior é o enólogo-chefe da Montes, depois de ter comandado a Kaiken, sempre com o pai “olhando por cima do ombro”, como o próprio reconhece. Obviamente, Aurelio “Senior”, cujo sobrenome completo é Montes Baseden, mostra-se orgulhoso com a perpetuação do nome familiar. Mas não deixa de reconhecer, com característico bom humor, que o ainda jovem Aurelio IV enfrentará muita pressão por conta do que carrega. “Imagina se ele resolve ser médico...”.
Segundo Montes, a variedade emblemática do Chile continua a ser a Cabernet Sauvignon, um "rei sem coroa"
A ilha de Chiloé, no sul do Chile, é conhecida pela produção de salmão, exportado para muitos países, inclusive o Brasil. Ela compõe uma espécie de arquipélago, com muitas ilhas menores agrupadas numa grande baia ou laguna, separada e, mais importante, protegida das frias águas do Pacífico por uma estreita margem de terra. Isso faz com que as temperaturas médias no interior dessa laguna sejam bem mais amenas do que na parte exposta ao mar. Foi numa dessas ilhas, Mechuque, que Aurelio Montes decidiu plantar vinhedos, depois de acalentar essa ideia por muitos anos. O projeto-piloto, iniciado em 2018, está sendo implantado em três hectares dos 18 disponíveis. São mudas de Chardonnay, Pinot Noir, Sauvignon Blanc, Albariño, Pinot Grigio, Gewürztraminer e Riesling. O solo é de origem vulcânica, rico em óxido de ferro, com boa drenagem e apenas 15% de matéria orgânica.
Um dos fatores que animou Aurelio a iniciar o projeto foi constatar que as temperaturas médias nessas ilhotas, tanto no inverno como no verão, são mais altas do que as registradas em Valparaiso, no litoral próximo a Santiago. E semelhantes à de regiões do norte da Europa como Mosel, Rheingau e Champagne. A latitude em que se situam (42º) é a mesma, por exemplo, que a da ilha sul da Nova Zelândia, conhecida pela qualidade de seus vinhos. Para favorecer a acumulação térmica, crítica para o crescimento das videiras, o terreno foi coberto por conchas de mariscos brancas e negras, abundantes na região, que absorvem e refletem a luz solar, num processo semelhante ao utilizado, com pedras, em Jerez, Châteauneuf-du-Pape ou no vinhedo do Tignanello, da Antinori. Se tudo continuar correndo bem, os primeiros vinhos serão produzidos em 2021. Só então se saberá se o projeto é comercialmente viável e que variedades serão cultivadas de forma permanente. Mas isso não altera a motivação de Aurelio. “Para conhecer o limite”, explica, “é preciso ir além do limite”.
Um dos mais respeitados enólogos chilenos, Aurelio Montes não é adepto de muitas das práticas atualmente em voga na enologia. Um exemplo é o uso de leveduras selvagens (nativas), quase um dogma para os defensores dos chamados vinhos naturais. Ele diz que gosta de iniciar a fermentação com leveduras nativas, mas, depois, prefere reinocular o mosto com leveduras comerciais por serem mais eficazes para completar a fermentação. E sua apreciação geral dos vinhos naturais, feitos com o mínimo de intervenção no processo, não é das mais elogiosas. “São vinhos que nascem muito débeis, com pouca longevidade, que se oxidam muito rápido”, constata. E acrescenta: “são vinhos de cor alaranjada ou amarelo forte e perdem o caráter varietal que lhes dá origem”. As críticas não param por aí. “É comum encontrar-se vinhos defeituosos, com acidez volátil muito alta e oxidação muito forte, de modo que o aroma oxidado predomina sobre o da variedade”. A conclusão vem com uma dose de ironia: “creio que esse era o vinho romano, bebido há 2000 anos, na época de Cristo”.
Ele admite que há um nicho para esses vinhos, mas ainda limitado aos veganos e às pessoas muito radicais em seus hábitos. “Talvez daqui a 50 anos seja o vinho que todo mundo vai beber”, acrescenta. “Mas, hoje, com o desenvolvimento tecnológico que permite produzir vinhos muito bem feitos, com cores limpas, aromas perfeitos e caráter varietal muito puro, esses naturais são uma raridade. De alguma forma refresca a indústria, mas não creio que seja o futuro”.
Quanto aos princípios da biodinâmica, ele diz que “tem muito respeito por ela”, mas observa que não basta ser orgânico ou biodinâmico e, no final do mês, pagar mal as pessoas. O futuro do mundo, na sua visão, é a sustentabilidade, que incorpora em parte o orgânico. Mas ser sustentável, para ele, é mais do que “não usar pesticidas e recorrer à energia cósmica. Tem que pensar nas pessoas e pagar os salários no fim do mês”. Mesmo reconhecendo que é um pouco duro dizer isso, conclui: “a empresa tem que ser rentável”.
Montes, Colchagua, Chile (Mistral US$ 185). Tinto composto de 80% Cabernet Sauvignon, 10% Cabernet Franc, 5% Merlot e 5% Petit Verdot, com estágio de 18 meses em barricas novas de carvalho francês. Um excelente exemplo do estilo mais maduro e opulento da casa, mostrado de modo elegante e preciso. Estruturado, tem taninos firmes e de ótima textura, que trazem sustentação ao conjunto, tudo num contexto de muita fruta negra seguida de notas florais, de ervas e de especiarias, com final persistente e sedutor, mostrando cassis, grafite e alcaçuz. Álcool 15%.
Montes, Colchagua, Chile (Mistral US$ 62). Tinto composto de 85% Cabernet Sauvignon, 10% Carménère e 5% Syrah, com estágio de 65% do vinho durante 16 meses em barricas novas e usadas de carvalho francês. Chama atenção pela qualidade de fruta negra fresca, acompanhada de notas florais, especiadas e de ervas, que se confirmam na boca. Frutado, refinado e gostoso de beber, tem taninos de ótima textura, acidez na medida e final persistente, com toques salinos e de grafite. Consegue aliar madurez e delicadeza com profundidade e força. Álcool 14,5%.
Montes, Casablanca, Chile (Mistral US$ 62). Branco elaborado exclusivamente a partir de uvas Chardonnay cultivadas na zona de Zapallar, no vale de Casablanca, sendo que 40% do vinho fermenta e estagia 12 meses em barricas de carvalho francês. Bem feito em seu estilo mais opulento e mais maduro, com as notas florais, de especiarias doces e de manteiga envolvendo as frutas tropicais, como abacaxi. A acidez pulsante e o final cheio e untuoso, com toques cítricos, trazem tensão e equilíbrio ao conjunto. Álcool 13,5%.
Montes, Casablanca, Chile (Mistral US$ 67). Tinto elaborado exclusivamente a partir de uvas Pinot Noir cultivadas na zona de Zapallar, no vale de Casablanca, com estágio de 35% do vinho durante 12 meses em barricas de carvalho francês, sendo 16% novas. Mostra perfil de fruta vermelha mais madura, com bons taninos, acidez vibrante e final suculento, com notas terrosas e de especiarias doces, que aportam complexidade ao conjunto. Álcool 14%.
Montes, Casablanca, Chile (Mistral US$ 52). Branco elaborado exclusivamente a partir de uvas Sauvignon Blanc cultivadas na zona de Zapallar, no vale de Casablanca, sem passagem por madeira, mas mantido em contato com as lias entre seis e oito meses antes de ser engarrafado. Exuberante tanto nos aromas quanto nos sabores, com as frutas brancas, tropicais e cítricas aparecendo envoltas por notas salinas, vegetais e herbáceas. Impressiona pela profundidade e pelo volume de boca, tem final longo, com toques de laranja e de lima. Álcool 13,5%.
Montes, Colchagua, Chile (Mistral US$ 175). Tinto composto de 92% Carménère e 8% Petit Verdot, com estágio de 18 meses em barricas novas de carvalho francês. Encorpado e carnudo, esbanja frutas negras como amoras e cassis acompanhadas de notas especiadas, de ervas e de cacau, que se confirmam no palato. Preciso e equilibrado, tem taninos de excelente textura, boa acidez e final cheio e persistente, com toques de alcaçuz, de pimenta negra e de grafite. Álcool 15,1%.