Indígenas ou selecionadas, quais as diferenças e por que usar uma ou outra, ou ambas?
Por Arnaldo Grizzo Publicado em 11/04/2017, às 14h29 - Atualizado em 25/03/2019, às 13h01
Saccharomyces cerevisiae. Esse talvez seja um dos nomes mais importantes do mundo do vinho. Essa espécie de fungo já chegou até a ser conhecida por Saccharomyces vini devido ao substrato em que o pesquisador alemão Franz Julius Ferdinand Meyen a encontrou em 1838 e possui inúmeras cepas espalhadas pelo mundo. Essa levedura – como denominamos esses fungos –, assim como outras espécies (há mais de 1.500 catalogadas), é responsável por transformar um simples mosto de uvas em vinho. A fermentação alcoólica – o processo de conversão do açúcar em álcool e dióxido de carbono – só é possível graças às leveduras. Seu protagonismo no universo do vinho, porém, não se restringe apenas a esse fato, mas ainda a uma vasta gama de influências em sabores e aromas que estão sendo cada vez mais investigadas e detalhadas por enólogos e pesquisadores.
Além de converter açúcar em álcool, as leveduras também produzem o que os cientistas denominam de subprodutos, tais como ésteres (compostos odoríferos que impactam nos aromas), acetaldeídos (precursores do ácido acético – vinagre), monoterpenos (também compostos aromáticos) etc. Isso tratando-se apenas do metabolismo do açúcar. No entanto, as leveduras ainda são capazes de interagir com o nitrogênio, enxofre e outros compostos fenólicos, além de metabolizar compostos relacionados aos sabores e criar outros durante sua autólise (autodestruição das células). Uma pesquisa realizada ao longo de 18 anos pelo Australian Wine Research Institute revelou alguns dos compostos formados pelas leveduras que afetam diretamente o sabor e aroma dos vinhos (muitos deles relacionados a defeitos) como: sulfeto de hidrogênio, mercaptanos, álcool isoamílico e acetado de etila e amila etc.
Tudo isso precisa ser levado em consideração pelo enólogo no momento em que o vinho está sendo produzido. Portanto, a escolha das leveduras a serem utilizadas é um ponto crucial. Daí surgem as diferentes teorias em relação ao uso das ditas leveduras “naturais” ou “indígenas” ou “selvagens” versus as “selecionadas” ou “inoculadas” ou “industriais”. Antes de entrar nesse mérito, porém, é preciso voltar no tempo e também entender como exatamente trabalham as leveduras.
As lendas em relação ao surgimento do vinho são antiquíssimas e remontam às primeiras sociedades organizadas da Mesopotâmia. Não se sabe exatamente quando, nem como, mas sabe-se que, um dia, o homem percebeu que o mosto do fruto da videira fermentava espontaneamente e se transformava em uma bebida agradável. Apesar de ainda não ter conhecimento científico sobre a coisa, foi fácil notar que tudo ocorria sem interferência humana. Ou seja, o que quer que levasse à fermentação, já estava lá – ou então era graças ao poder das divindades... Dessa forma, desde a antiguidade clássica até o século XIX, quando o homem passou a estudar e compreender a microbiologia, os mostos eram fermentados de forma completamente espontânea graças às leveduras presentes no vinhedo, nas castas das uvas, nos equipamentos de vinificação e até mesmo na mão do homem.
Ou seja, até então, não havia a divisão entre “natural” e “industrial”, pois tudo era natural. Com o tempo, contudo, os cientistas foram entendendo melhor os processos e percebendo que algumas leveduras se davam melhor em determinadas situações. Algumas metabolizavam o açúcar mais rápido, outras resistiam mais ao álcool, outras suportavam temperaturas mais extremas etc. No final, notou-se que cepas da Saccharomyces cerevisiae estavam entre as mais indicadas para facilitar o serviço dos enólogos na cantina. Portanto, passaram a cultivá-las separadamente para inocular nos mostos a serem fermentados. Assim nasceram as leveduras “selecionadas”.
No entanto, antes de prosseguir, deve-se dizer que o termo levedura natural é controverso, pois, na realidade, não existem leveduras artificiais ou fabricadas. Todas elas, mesmo as cultivadas, são naturais. A diferença está na forma de fermentação com o uso de leveduras indígenas ou selvagens, ou seja, naturais do vinhedo, ou então inoculadas. E, para colocar mais lenha na fogueira, há quem ainda defenda que as leveduras indígenas talvez sequer venham dos vinhedos, mas estejam presentes no equipamento vitivinícola. Mas isso é outra história...
Segundo estudos do professor Robert Mortimer, da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, apesar de a Saccharomyces cerevisiae ser considerada “a verdadeira levedura do vinho”, ela costuma estar presente em apenas um de cada mil frutos. Ela é assim denominada por sua tolerância ao álcool, permitindo que a bebida atinja um volume alcoólico de cerca de 13%. Além disso, ela é a mais confiável das leveduras, dando resultados sempre consistentes. Todavia, as uvas possuem diversas outras espécies de leveduras, além de bactérias. Estudos realizados pelo Australian Wine Research Institute apontam que o número inicial de células de levedura no mosto fresco varia de mil a 70 mil por mililitro.
A fermentação, contudo, só é percebida quando esses valores alcançam de 7 a 8 milhões por ml. O pico fermentativo, por sua vez, teria entre 50 e 100 milhões por ml. Mas, enfim, costumeiramente, em uma população “indígena”, a Saccharomyces é a espécie menos prevalente. Dessa forma, em uma fermentação espontânea, durante os três primeiros dias, as leveduras “selvagens” predominam. Quando o teor alcoólico chega a cerca de 3% ou 4%, porém, elas passam a dar lugar às cepas de Saccharomyces, mais tolerantes ao álcool. No final, apenas essas cepas estão presentes. Esse processo também é chamado de “fermentação sequencial”. Segundo Mortimer, há cerca de 16 variações de S. cerevisiae nas fermentações espontâneas. Nas inoculadas, obviamente, a Saccharomyces predomina do começo ao fim.
Você pode estar se perguntando: se a fermentação ocorre espontaneamente e isso sempre norteou a vitivinicultura tradicional, por que alguns enólogos inoculam? Uma resposta pode estar no que os enólogos chamam de fase de latência da fermentação. Além das leveduras, as uvas carregam outros organismos, como bactérias e até mesmo mofo, nem sempre benéficos para o vinho. Nessa fase, esses organismos podem se proliferar e arruinar a bebida. É por essa razão que, muitas vezes, antes de serem esmagadas, as uvas são tratadas com dióxido de enxofre, o que inibe o crescimento desses organismos, mas, ao mesmo tempo, destrói as leveduras indígenas. Uvas com alto pH e pouca acidez costumam estar mais predispostas a deteriorarem durante a fase de latência de uma fermentação espontânea, com o mosto ficando vulnerável ao crescimento bacteriano e acidez volátil, criando aromas desagradáveis ou então avinagrando a bebida. Isso sem contar paradas completas de fermentação, o que arruína o vinho definitivamente. Outro fator é a chuva durante a colheita.
A água da chuva pode literalmente lavar as uvas, reduzindo drasticamente a população de leveduras, o que pode impossibilitar ou complicar enormemente uma fermentação espontânea. Não é à toa que produtores do mundo todo – desde a antiguidade – ficam de olho nos céus durante a época da vindima. Outra característica da fermentação natural costuma ser a suspensão das leveduras selvagens, o que torna a clarificação desses vinhos mais trabalhosa. Além disso, vale lembrar que não são muitas as espécies de levedura capazes de produzir mais de 14,5% a 15% de álcool numa fermentação espontânea.
Sabe-se ainda que certas leveduras também são capazes de influenciar a quantidade de ácido málico metabolizado durante a fermentação e, dessa forma, a quantidade de acidez do líquido. Daí o interesse em selecionar cepas específicas. Enfim, um enólogo precisa estar atento a muitas variáveis para que a fermentação ocorra sem maiores problemas, pois as leveduras podem sofrer interferências de diversos fatores como: temperatura, concentração de açúcar e álcool, hidratação, disponibilidade de nutrientes e oxigênio no mosto, pH, acidez volátil, dióxido de enxofre etc, isso sem contar a própria natureza da cepa e a “competição” com outras cepas de levedura em um mesmo mosto. Tudo isso provoca mudanças na atuação das leveduras, algumas para o bem, outras para o mal. Além disso, diante de tantas variáveis, pode-se afirmar que, mesmo com uvas de um único vinhedo, dois tonéis fermentados espontaneamente nunca terão os mesmos sabores e aromas.
“O uso de leveduras selvagens é uma ferramenta para criar complexidade”, garante o enólogo norte-americano Alan Tenscher. Segundo ele, contudo, as indígenas não são necessárias para se criar um grande vinho, mas são capazes de criar vinhos interessantes. “Não acho que seja parte integral de um grande vinho, mas há vantagens de marketing em dizer que aquele vinho foi feito com métodos tradicionais”, afirma e complementa: “Há um alto risco em fazer vinhos dessa forma, pois você vai falhar de tempos em tempos”. “Recomendar essa técnica (fermentação natural) é o equivalente a endossar a roleta russa, as consequências econômicas de sua sorte se esvair são mortais e inaceitáveis”, afirma a professora Linda Bisson, da Universidade da Califórnia, em Davis. Para ela, a maioria das vinícolas não pode se dar ao luxo de perder de 10 a 20% de sua produção caso algo dê errado. “Depois, as características positivas das leveduras naturais têm vida relativamente curta e não são detectáveis depois de seis ou mais meses de envelhecimento. Por outro lado, as características negativas persistem muito mais do que isso”, atesta.
Quem corrobora esse “medo” é o enólogo grego Yiannis Paraskevopoulos: “Tenho feito fermentação com leveduras naturais em um dos meus vinhos, mas é nervoso, é uma tortura, porque elas simplesmente não fazem o que você quer que façam”. Já John Williams, dono e enólogo da Frog’s Leap, nos Estados Unidos, contesta: “Não creio que os riscos aumentem substancialmente (com as leveduras indígenas)”. Trabalhando com fermentação natural há mais de 20 anos em sua propriedade, ele, contudo, também não acha que isso seja a fórmula mágica: “Os benefícios não ultrapassam largamente os riscos. Acho que os riscos são superenfatizados, mas o benefícios provavelmente também”.
Já Paul Draper, enólogo da vinícola Ridge e adepto da fermentação natural, acredita que o problema hoje é filosófico. “Originalmente, fizemos isso pois, filosoficamente, permite-nos dar um passo atrás e guiar o desenvolvimento do vinho em vez de pensarmos em nós mesmos como criadores. Você está permitindo ao vinho, de certa forma, fazer a si mesmo”, pondera. Segundo ele, é preciso ter “pH baixo, madurez sadia, bons taninos e alta acidez, pois somente isso lhe dá a proteção natural necessária para garantir ter sucesso mais vezes”. No entanto, assim como Bisson, ele avalia que “uma vez que os vinhos envelhecem além de seis ou 12 meses, torna-se mais difícil ver o caráter exato que as leveduras deram à bebida”.
Diante das discussões sobre o tema, há quem proclame que produtores consagrados da Europa, especialmente da Borgonha, vêm fermentando seus vinhos com leveduras indígenas há séculos sem problema. Todavia, a resposta para esse “enigma” talvez esteja no próprio fato de eles estarem fazendo a mesma coisa há séculos. Ao cultivar e fermentar por muitos anos a mesma variedade de uva, e jogar o bagaço e as borras de volta no vinhedo, um acúmulo de cepas específicas tende a dominar o local. Elas são espalhadas pelo vento, aderem-se aos equipamentos da vinícola, barricas, roupas dos trabalhadores etc. Assim, as uvas são cobertas pela mesma microflora dominante safra após safra. O resultado, portanto, é que cada colheita espontaneamente fermenta com a mesma cepa “nMtiva” de levedura. Não é preciso inocular, pois todo o local tem sido “inoculado” geração após geração.
A microflora se tornou tão estabelecida que cepas adequadas de Saccharomyces existem naturalmente. Ainda assim, produtores adeptos desse método conhecem os riscos e, para garantir o êxito da fermentação, apelam para uma técnica conhecida como “pied de cuve”. Ou seja, eles colhem uma porção de uvas antes da safra, momento em que elas geralmente estão mais ácidas. Assim, o mosto é agitado e aerado para estimular as leveduras indígenas e começar a fermentação. Após alguns dias, elas estarão fermentando vigorosamente. Essa cultura então é usada para ser inoculada nas uvas que serão colhidas posteriormente.
Atualmente, muitos produtores estão optando por um meio termo entre a fermentação natural e a inoculada, que pretende garantir ao vinho o melhor desses dois mundos. A ideia, portanto, é deixar o mosto livre para começar a fermentação espontaneamente, somente com as leveduras indígenas presentes. Assim que se atinge cerca de 3% ou 4% de volume de álcool (momento em que a maioria das indígenas morre), inocula-se com uma cepa de Saccharomyces para garantir a completa fermentação. Dessa forma, o enólogo ganha com o contato maior com as cascas (pois a fermentação natural demora mais para começar), o que lhe dá um corpo maior, mais cor e profundidade, assim como sabores e aromas que somente as leveduras indígenas são capazes de oferecer – a tal complexidade –, e, por fim, um vinho são e encorpado.
Outros enólogos, para evitar certos riscos, têm preferido separar o mosto em partes, deixando que uma delas fermente espontaneamente e outra seja inoculada. Depois, caso ambas as fermentações tenham sucesso, misturam-se os dois vinhos. Diante de tudo isso, há quem sustente que, no fundo, são os micro-organismos (entre eles as leveduras), os verdadeiros responsáveis pelo “gosto do terroir”. No entanto, as interações entre clima, solo, uva, leveduras etc. ainda não estão totalmente explicadas. Os estudos sobre o impacto das leveduras no vinho estão só começando, dando apenas pistas do que o mundo do vinho pode nos proporcionar no futuro.
Um estudo do Australian Wine Research Institute afirma que certas leveduras do gênero Saccharomyces podem ser identificadas em testes cegos devido aos aromas e sabores que produzem. Analisando 72 espécies do gênero Saccharomyces, eles apontaram que cerca de 10% a 20% delas produziram características aromáticas e de sabor reconhecíveis – muitas delas, porém, relacionadas a defeitos, como o sulfeto de hidrogênio em conjunto com o etil mercaptano, que resulta em um aroma de ovo podre.