Bordeaux do poeta, a história do Château Ausone

Vinícola leva o nome de um célebre poeta romano

Arnaldo Grizzo Publicado em 07/03/2021, às 10h21 - Atualizado em 06/04/2021, às 17h43

 

Os vinhedos do Château Ausone

Polvilhe minhas cinzas com vinho puro e perfumado 
óleo de nardo; traga bálsamo também... Ó estrangeiro, com 
rosas carmesim. Primavera sem fim permeia minha urna sem lágrimas: 
Eu mudei de estado e não morri. 
Não perdi uma única alegria da vida antiga, embora 
Você ache que eu me lembre de tudo ou nada. 
 

Os versos acima seriam para um epitáfio na “tumba de um homem feliz”, escritos por Decimius Magnus Ausonius, ou Ausônio, um poeta e político romano, que viveu no século IV. Nascido por volta do ano 310 na região de Bordeaux, Ausônio teve educação requintada para a época e acabou se tornando tutor do futuro imperador Graciano, de quem receberia o título de cônsul de Roma, a mais alta honraria da época. 

Diz-se que Ausônio era um exímio orador e retórico e foi assim que passou do cargo de professor para a política, tornando-se uma das figuras mais influentes na Gália naquele momento da história. Em sua poesia, ele celebrou a região de Bordeaux e seus vinhos, como no trecho abaixo: 

“Ó, minha pátria ilustre pelos teus vinhos, teus rios e teus homens, pelos costumes e espírito de teus habitantes, pela nobreza de teu senado; eu não a nomeei dentre as maiores, como se, cidadão consciente de uma cidade humilde, hesitava por fazê-la gozar de louvores imerecidos […] Bordeaux é a minha terra natal, ali o céu é doce e clemente, o solo, graça às chuvas, bom e fértil, a primavera longa, o inverno resfriado até o retorno do sol; os rios têm uma corrente borbulhante que, ao longo das colinas plantadas de videiras, imita os fluxos do mar […] Meu amor à Bordeaux; a Roma, o meu respeito”. BurdigalaAusone. Em: “Classificação das cidades célebres”. 

O Château 

Ausônio também era proprietário de terras sendo que uma de suas propriedades, a Lucaniacum, produzia vinho, que foi citado por ele em suas obras. “Que a vista das videiras apareça a nós como um outro espetáculo, e que os presentes de Baco convidem nossos olhares errantes, ali onde um cume elevado, acima da cadeia de penhascos, de rochedos, de cantos ensolarados de montanhas, ondulações e depressões, a proteger as videiras e a formar um teatro natural”. Acredita-se que esse local, hoje, é onde fica o Château Ausone. 

A história de um dos mais famosos vinhos de Bordeaux é longa e tortuosa como alguns dos poemas de Ausônio. O nome da propriedade acredita-se que evoluiu de Casteau Dauzone, para Château Dosone, até chegar a Château AusoneRestos de peças agrícolas, mosaicos de videiras, fragmentos de estátua dão a entender que Lucaniacum era mesmo no platô onde está a propriedade atual, uma encosta chamada “Roc Blancan” (rocha branca, ou seja calcário). 

Na Idade Média, o espesso banco de pedra calcária com vista para a propriedade abrigava um ossuário e depois uma pequena capela românica. O edifício ainda hoje surge no meio das parcelas de vinhas. Sob o prédio, um tesouro da arte cristã: uma rotunda subterrânea decorada com um afresco do Juízo Final. 

De mão em mão 

Acredita-se que, no século XVI, o local pertenceu à família Lescours, que, dois séculos depois, a passou para os Chatonnets, que se ligaram por casamento à família Cantenat. Em 1891, o nome da propriedade mudou para Dubois-Challon, sobrenome do casal de proprietários, e, em 1916, eles compraram Bélair. Uma de suas filha casou com um Vauthier, de quem o atual proprietário Alain Vauthier, é descendente. 

Pode até parecer que uma sequência de acontecimentos normais levou o Château Ausone a estar hoje sob supervisão de Alain e sua filha Pauline, contudo, a história não é bem assim. De 1974 até 1995, houve uma grande disputa para saber que parte da família era dona da propriedade. Nessa época, até mesmo a direção de enologia acabava em disputas na justiça, incluindo datas de colheita. Na época, Alain disputava a posição com Pascal Delbeck, favorito de sua tia Heylette. 

Apenas em 1995 encerrou-se essa disputa quando Alain assumiu definitivamente Ausone, mas não sem antes alguns entreveros na justiça. Sua tia quis vender a propriedade para François Pinault, dono do Château Latour, mas Alain e sua irmã a processaram e venceram. A tia, contudo, pôde viver no Château, até morrer em 2003. 

Gestão 

O Château Ausone fica às margens da cidade de Saint-Émilion. Durante sete séculos, as extrações de pedras calcárias geraram enormes galerias sob a propriedade com labirintos de gesso esquecidos pelos pedreiros. Apedreiras subterrâneas foram transformadas em adegas desde o século XVIII. São apenas sete hectares de vinhedos. Cercadas por murosas parcelas são protegidas dos ventos e desfrutam de exposição leste-sudeste.  

Parte da vinha fica sobre um platô de calcário marítimo. Na encosta, encontra-se calcário argilosoE, por fim, também há argila, o que gera um pequeno mosaico nesse terroir. O vinhedo é majoritariamente plantado com Cabernet Franc (55%) e Merlot (45%), com vinhas compreendendo de 50 a mais de um século de idade (algumas são tão antigas que foram plantadas na mesma fileira então há tags de identificação para separar Cabernet de Merlot). O cultivo segue alguns a preceitos orgânicos e biodinâmicos, mas Vauthier diz que não quer ficar amarrado a dogmas. 

Os Vauthier gerenciam cerca de 100 hectares na região, sendo donos também do Château Moulin-St-Georges e do Château Fonbel. Na pequena propriedade de Ausone, a seleção das uvas é feita quase diretamente no vinhedo, na hora da colheita. “Minha meta é ter o menor trabalho possível ao ter materiais de vinhedo e vinícola exemplares”, afirmou Vauthier. O mosto é fermentado com leveduras naturais em cubas de madeira abertas. A fermentação malolática é feita em barricas novas. O segundo vinho, Chapelle d’Ausone, foi criado em 1997, e, além de costumeiramente ter um pouco mais de Merlot na mescla, é feito com uvas de videiras mais jovens. 

Para finalizar, um trecho célebre de Ausônio: “Leia isso somente com um toque de vinho e alegria, porque não é certo que um poeta pouco sóbrio tenha por juiz um leitor em jejum”. 

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