Santo Hilário, o jardim, o rosé, a fermentação em barricas e a eleição do melhor Champagne do Milênio
Por Arnaldo Grizzo Publicado em 06/07/2016, às 16h00 - Atualizado em 07/07/2016, às 10h47
Hilário de Poitiers, ou Santo Hilário, é um dos Doutores da Igreja (assim como São Tomás de Aquino, Santo Ambrósio e Santo Agostinho, por exemplo), tamanha a importância de seus escritos sobre religião ainda no século IV d.C.. Ele foi um dos que lutaram duramente contra a doutrina do arianismo (que não acreditava na consubstancialidade entre Jesus e Deus) em uma época em que o cristianismo ainda estava tomando forma.
Depois de sua morte, por volta do ano 368, seu culto se propagou no oeste da França, chegando até a região de Champagne. Uma minúscula vila à oeste de Épernay e vizinha de Aÿ, chamada Mareuil-sur-Aÿ, adotou-o como padroeiro e ergueu uma igreja com seu nome, Saint-Hilaire
E foi em homenagem a esse santo que nasceu uma das cuvées mais raras de Champagne. Planejada por mais de 30 anos pela família Billecart, proprietários da Billecart-Salmon, a cuvée Clos de Saint-Hilaire se resume a, no máximo, 7,5 mil garrafas em anos excepcionais. “Nos anos 1950, minha avó dedicava a nosso lazer esse espaço verde, ornado com algumas vinhas, flores e árvores, contíguo à nossa casa em Mareuil-sur-Aÿ. Ao detectar o potencial deste terroir excepcional, de apenas um hectare, a minha família lá plantou as primeiras videiras de Pinot Noir, em 1964. Tentamos a vinificação em branco de Pinot Noir em pequenos barris da Borgonha e um champanhe de exceção estava prestes a nascer. Após vários anos de cuidados meticulosos com as vinhas, a colheita de 1995 foi notável. Foi a primeira vindima dessa cuvée única. Em homenagem ao santo padroeiro da igreja da vila, batizamos o vinho como Clos Saint-Hilaire”, conta François Roland-Billecart, representante da sexta geração da família, que se mantém à frente da propriedade depois de quase 200 anos.
Billecart-Salmon nasceu da união entre Nicolas François Billecart e Elisabeth Salmon em 1818, época dourada para o vinho de Champagne. Eles se instalaram em um vilarejo minúsculo ao lado de Aÿ. Na época, a cidade tinha pouco mais de 600 habitantes. Atualmente, esse número apenas dobrou.
A família Billecart já estava no ramo do vinho antes mesmo da fundação da casa de Champagne. Sabe-se que no século XVII, o rei Luís XIII autorizou o vinhateiro Pierre Billecart a criar seu próprio brasão (uma honraria). Então, quando a Maison foi criada, o brasão azul em uma divisa dourada com três cachos de uva e um galgo (raça canina) em riste serviu de adorno para as barricas que eram usadas para a produção do vinho. O símbolo permaneceu nelas até pouco tempo atrás e a vinificação em barricas, aliás, ainda hoje é um dos diferenciais da casa.
Jardim inglês redesenhado “à la française” por Charles Roland-Billecart, em 1926, é uma das atrações da casa
A cuvée Nicolas François Billecart, da safra 1959, foi eleita a melhor Champagne do Milênio
Com o passar dos anos, a Maison foi crescendo e ganhando fama, principalmente por seus espumantes rosés e por seu perfeccionismo. A dedicação da família às minúcias da elaboração de Champagne se traduz no belíssimo jardim da casa, uma de suas marcas registradas.
No começo, era um típico jardim inglês, mas foi redesenhado “à la française” pela pena de Charles Roland-Billecart, em 1926. O projeto era criar um jardim no coração da vila, murado, cercado de limas, com arbustos, gramados e canteiros de flores. O local foi mantido assim até 1999, quando uma tempestade destruiu as últimas grandes árvores, deixando apenas um castanheiro – que em breve será bicentenário.
François Roland-Billecart, então, decidiu expandir o jardim de seu avô anexando uma parte que permaneceu intocada até então. Ele confiou o projeto à sua irmã, Veronica Roland-Billecart, paisagista, e o local repaginado permanece o xodó da família.
Uma das primeiras casas a produzir Champagne rosé, em 1830, a Billecart-Salmon deve parte de sua fama a esse estilo de vinho. Seu Brut Rosé (uma mistura de Chardonnay e Pinot Meunier com um toque de Pinot Noir vinificado em tinto) sempre foi um dos carros-chefes da casa. Segundo o chef-de-cave François Domi, “no começo, sequer queríamos que as pessoas fossem capazes de distinguir os brancos dos rosés se os provassem em taças negras”, tantas as notas de frutas cítricas presentes em seu rosé. O sucesso dos rosés foi tanto que, em 1988, a casa lançou uma cuvée prestige rosada em homenagem à Elisabeth Salmon.
Mais de 20 anos antes, porém, em 1964, a Billecart-Salmon já havia lançado seu top de linha, a cuvée Nicolas François Billecart, fruto de algumas das melhores uvas dos vinhedos Grand Cru da Côte de Blancs (Chardonnay) e Montagne de Reims (Pinot Noir), e que se tornaria uma lenda em 1999. Naquele ano, Richard Juhlin, um dos maiores experts em Champagne do mundo, promoveu uma degustação às cegas, em Estocolmo, para eleger o “Champagne do Milênio”. Por fim, em meio a outras 150 cuvées participantes (entre elas, grandes nomes), a Cuvée Nicolas François Billecart, da safra 1959, foi considerada a melhor e, pasmem, a safra 1961 terminou em segundo lugar, comprovando a boa reputação da Billecart-Salmon.
Clos de Saint-Hilaire, batizado em homenagem ao padroeiro da vila de Mareuil-sur-Aÿ, tem apenas um hectare plantado com Pinot Noir
Hoje, a casa trabalha com 220 hectares de vinhas (sendo 100 de vinhedos próprios), que compreendem 40 Crus de Champagne ao redor de Épernay. A principal joia da Billecart-Salmon, no entanto, é cultivada distante dos olhares dos curiosos, no Clos Saint-Hilaire. Fruto de meio século de uma cultura minuciosa, esse único hectare de Pinot Noir, cuidadosamente protegido por um muro de pedra, dá vida a um Champagne excepcional, de rara complexidade e frescor estonteante. O Clos é cultivado em uma só parcela contínua e com uma planta de vinificação no local dedicada apenas para o seu vinho. O solo é trabalhado somente com cavalos e as uvas são vinificadas em barricas.
Aliás, a Billecart-Salmon possui mais de 450 barricas nas quais são vinificados seus Millésimes, um de seus diferenciais. Os barris (com idade média de 10 anos) são usados para a fermentação, pois, segundo François Domi, eles fazem com que esse processo seja mais lento do que nos tanques de inox, “dando-lhes mais sutileza”, e as borras também dão mais corpo ao vinho. Para o chef-de-cave, envelhecer o vinho nas barricas não é o ideal, pois isso pode resultar em aromas de madeira e taninos indesejáveis.
O trabalho de Domi com a fermentação em madeira gerou uma cuvée específica completamente vinificada em barricas, a Brut sous Bois – uma homenagem às técnicas ancestrais de produção de Champagne. Mas vale lembrar que a empresa, apesar de cultivar tradições, também foi uma das primeiras na região a usar a técnica de débourbage à froid (decantação a frio) e utilizar tanques de inox para fermentar em baixa temperatura por longo tempo, isso ainda nos anos 1950, com o intuito de conservar o frescor dos vinhos.
Prestes a completar 200 anos, a empresa continua completamente familiar, uma das poucas exceções em Champagne, com os irmãos François e Antoine Roland-Billecart à frente, sempre supervisionados por seu pai, Jean Roland-Billecart.