Mergulhamos no 'terroir aquático' para saber como ficam os vinhos envelhecidos no mar e os desafios técnicos e legais da prática
Arnaldo Grizzo Publicado em 27/07/2020, às 15h00 - Atualizado em 31/01/2023, às 14h00
A busca por métodos e processos, sejam eles tradicionais, sejam inovadores, é constante no mundo do vinho. Hoje, os vinhos em ânfora renasceram. Ao mesmo tempo, surgem barricas hiper tecnológicas. Ao longo dos anos, enólogos vêm testando novas técnicas para criar rótulos cada vez mais incomuns. E nessa onda (quase literalmente) aparece uma nova categoria, os vinhos “subaquáticos”.
Essa “moda” é relativamente recente. Ao que parece, ela tomou força há cerca de 10 anos, quando uma equipe de mergulhadores no mar Báltico encontrou 168 garrafas de Champagne em um navio naufragado. Entre elas, havia 48 de Veuve Clicquot datadas de 1839 a 1841. Os vinhos foram analisados e percebeu-se que várias garrafas mantiveram boas condições e estavam aptas para consumo.
Em um primeiro momento, especialistas disseram ter encontrado aromas não muito agradáveis, contudo, surpreenderam-se com o frescor da bebida depois de tantos anos. Logo em seguida, as garrafas foram leiloadas e algumas alcançaram quase US$ 15 mil.
A partir daí, pipocaram produtores que resolveram experimentar o envelhecimento de vinhos debaixo d’água. Acredita-se que, antes desse momento, porém, um dos primeiros produtores a testar o envelhecimento subaquático foi o espanhol Raúl Pérez, em 2003. Na época, ele mergulhou garrafas de Albariño de Rías Baixas no oceano por 60 dias.
Diz-se que outro pioneiro, Piero Lugano, da vinícola Bisson, na Ligúria, tentou o método em 2008 por “necessidade”, quando viu que sua adega simplesmente não tinha espaço suficiente para envelhecer os espumantes produzidos. Assim, mergulhou 6.500 garrafas no mar, retirando-as no ano seguinte.
Mais recente são os projetos empreendidos por nomes como Mira Winery, no Napa Valley, Château Larrivet Haut-Brion, de Bordeaux, Cavas Submarinas, do Chile, o grupo Miolo, do Brasil, e a própria Veuve Clicquot, que decidiu empreender um teste logo após a descoberta das garrafas no Báltico – criando o que eles chamaram de “Cellar in the Sea”.
Especialistas dizem que o envelhecimento do vinho, especialmente dos espumantes, debaixo d’água, beneficia-se de ótimas condições, pois o oceano oferece um ambiente fresco e pressurizado, além da ausência de luz e relativa falta de oxigênio, e temperaturas baixas e quase constantes. Mas não são apenas os espumantes a, teoricamente, se beneficiarem do ambiente subaquático, brancos, tintos e até Jerez já foram enviados para debaixo d’água.
A vinícola norte-americana Mira está entre as líderes da pesquisa dos efeitos do método nos vinhos e o apelidou de “aquaoir” (uma brincadeira com “terroir”). Segundo eles, o vinho mantido debaixo d’água tem um efeito de envelhecimento acelerado.
Seu Cabernet Sauvignon 2009, que ficou submerso por três meses, tinha sabores de uma bebida envelhecida por dois anos se comparada com uma versão que permaneceu em terra firme, segundo a vinícola. Se pensamos nas pesquisas que apontam que, além da variação de temperatura, a trepidação é um dos fatores para que os vinhos tenham envelhecimento acelerado, faz sentido que o balanço do mar tenha efeito semelhante.
Além desse envelhecimento precoce, o que mais o “terroir subaquático” pode proporcionar? Aliás, um vinho envelhecido no mar Báltico seria diferente de um envelhecido no Adriático? Haveria diferença entre os “aquaoir”?
As Cavas Submarinas, no Chile, dizem que o mar da costa chileno, com a influência da corrente de Humbolt, traz benefícios inegáveis aos seus vinhos. Eles produzem uvas em Itata e submergem os vinhos em um local secreto em Caleta Chome, perto de Hualpén, que estagiam lá por três meses.
Já a vinícola Edivo, da Croácia, desde 2014 mantém suas garrafas a cerca de 18 metros de profundidade no mar Adriático, nas proximidades da vila de Drace, península de Pelješac, por 700 dias. Eles fizeram a concessão de um antigo barco de pesca afundado que estava no fundo do mar por mais de 30 anos e nele colocaram vinho engarrafado e ânforas numa linha chamada de Navis Mysterium (“O Mistério do Mar”).
Apesar de os produtores atestarem as diferenças, o método de envelhecimento subaquático ainda está sendo avaliado. A Veuve Clicquot, por exemplo, está realizando experimentos subaquáticos regulares em alguns de seus Champagne. O projeto “Cellar in the Sea” é um experimento de 50 anos para ver como as garrafas envelhecem. Elas foram submersas em 2014 e serão analisadas periodicamente.
Para suas experiências, a maioria dos produtores escolhe usar garrafas mantidas em uma gaiola segura debaixo d’água, mas alguns decidiram não filtrar o vinho antes de envelhecer (pois acreditam que o vinho não filtrado pode interagir melhor com o ambiente) ou então selar com tampa de rosca em vez de cortiça.
A escolha do local também parece ser um ponto de cuidado, com a temperatura da água e a profundidade sendo estudadas. De acordo com o FDA (Food and Drug Administration, agência do Departamento de Saúde dos Estados Unidos), “a cada 10 metros de profundidade em que um vinho é envelhecido, os selos de garrafas de vinho são submetidos a uma atmosfera de pressão”, afetando a maneira como o vinho interage com a água do mar ao seu redor.
Além das garrafas, faz-se experiências com barricas e ânforas, por exemplo. A já citada Edivo mergulha ânforas dentro das quais há uma garrafa de vinho. Já o Château Larrivet Haut-Brion, de Bordeaux, experimentou envelhecer uma barrica de seu vinho de 2009 no mar. Ela foi afundada entre os parques de ostras de Joel Dupuch, em Cap Ferret, na costa do Atlântico.
Para o experimento, dois barris de tamanho idêntico foram preenchidos com vinho de 2009 e receberam seis meses extras de envelhecimento em comparação com o restante da safra, que foi engarrafada em junho de 2011. Um dos barris extras foi deixado para envelhecer no Château, e o outro coberto com uma caixa de cimento e amarrado aos canteiros de ostras de Cap Ferret.
Após degustações, o crítico de vinhos francês Bernard Burtschy afirmou: “A barrica do mar estava melhor do que deveria. Estava mais suave, com maior complexidade do que seu primo em terra”. A análise laboratorial revelou que o vinho envelhecido no mar tinha taninos mais macios e álcool um pouco mais baixo. Os níveis salinos também aumentaram ligeiramente. Depois disso, Bruno Lemoine, diretor e enólogo de Larrivet Haut-Brion, afirmou que tentaria a experiência novamente.
Em 2017, a vinícola Miolo decidiu envelhecer um lote de espumantes na costa da França durante um ano. Na época, Adriano Miolo chegou a dizer: “Em uma análise de espectometria de massa, por exemplo, um espumante submerso apresentou 10 vezes mais compostos moleculares do que os envelhecidos pelo método tradicional. Esses compostos são responsáveis pela formação dos aromas e da complexidade do vinho”. Os vinhos, contudo, não foram lançados ainda.
O Domaine Julie Benau, do Languedoc- -Roussillon, experimentou usar o movimento do oceano como uma maneira de mexer as borras do seu Libéro Picpoul, uma espécie de “bâtonnage marinha”. Outros como Ben Portet, da Austrália, e Craig Hawkins, da África do Sul, estão experimentando submergir barris em tanques de água doce. Curiosamente, em ambientes subaquáticos “artificiais”, eles disseram que as bebidas ficaram mais frescas, com mais taninos, diferentemente dos envelhecido no mar.
Apesar de os produtores atestarem efeitos positivos nos vinhos, eles talvez ainda sejam incomensuráveis para a maioria dos consumidores caso o rótulo não especifique que a bebida foi envelhecida debaixo d’água. Apesar de muitos estarem testando o método e outros ainda terem criado vinícolas especializadas em vinhos subaquáticos, alguns dos pioneiros estão reavaliando a técnica.
Raúl Pérez, por exemplo, tem estudado apenas uma pequena porcentagem do seu Sketch Albariño debaixo d’água para fins de pesquisa após notar uma grande quantidade de deterioração em uma safra.
Há ainda barreiras legais que podem impedir os avanços de pesquisa nessa área. Em 2014, o FDA considerou a prática ilegal citando o risco de substâncias perigosas entrarem nas garrafas e proibiu a comercialização de produtos que tenham contato direto com o mar, liberando apenas alguns cujos métodos simulam a ação marinha, mas em terra e sem contato com água do mar.
Com os custos de manutenção das garrafas no mar, esses vinhos tendem a ter preços bem mais “salgados” do que seus pares feitos em terra. Se as vantagens desse envelhecimento submerso “compensam” essa diferença de valor, quem provou pode dizer. Diante de tantas iniciativas nessa área, quem sabe futuramente tenhamos uma nova categoria de vinhos e venhamos a analisar os efeitos dos diferentes mares do mundo no sabor dos vinhos. Será?
Os Champagnes encontrados no fundo do mar Báltico em 2010 foram analisados por uma equipe de cientistas liderada por Philippe Jeandet, professor de bioquímica de alimentos da Universidade de Reims. Ele comparou o “vinho do Báltico” com o Veuve Clicquot moderno.
O resultado mostrou que os vinhos antigos (também Veuve Clicquot mas datados de 1840 aproximadamente) continham menor teor alcoólico e níveis mais altos de açúcar – cerca de 140 gramas de açúcar por litro, em comparação com cerca de 6 a 8 gramas por litro de hoje.
Os pesquisadores acreditam que os níveis mais baixos de álcool são consequência de um clima mais frio e do uso de levedura menos eficiente. Além disso, os produtores de vinho do século XIX adicionavam uma quantidade considerável de açúcar para adoçar artificialmente a bebida. Essa adição teria diluído o vinho, possivelmente impactando também em menor teor alcoólico.
O vinho envelhecido no mar também apresentou níveis maiores de ferro, cobre, sódio e cloro. Isso sugere o uso de recipientes contendo metal e madeira durante o processo de fabricação. Além disso, no século XIX, o sulfato de cobre era frequentemente usado para o controle de doenças nas vinhas. Os níveis elevados de sódio e cloro podem ser atribuídos ao sal, que foi adicionado para ajudar a estabilizar o vinho durante o processo de fabricação do século XIX.
O teor de açúcar fornece uma pista importante sobre o destino do barco naufragado. A localização dos destroços sugere que o navio iria ao mercado russo. No entanto, os russos exigiram níveis extremamente elevados de açúcar, em torno de 300 gramas por litro. “Era comum ter açúcar em todas as mesas perto da taça de vinho – porque eles adicionavam açúcar não apenas ao vinho tinto, mas também ao Champanhe”, diz Jeandet.
Isso fez com que se criasse um tipo de espumante chamado de “Champagne à la Russe” na época. Já alemães e franceses exigiam níveis de açúcar mais moderados de aproximadamente 150 gramas por litro, e britânicos e americanos preferiam níveis ainda mais baixos, de 20 a 60 gramas por litro. Com base no teor de açúcar medido, os autores acreditam que o carregamento provavelmente era destinado à Confederação Alemã.
* Texto originalmente publicado em julho de 2020 e republicado após atualização.