Hoje, não há dúvida de que o consumo moderado do vinho contribui para a saúde humana
Arnaldo Grizzo Publicado em 10/06/2019, às 15h00 - Atualizado às 15h05
"Dai a bebida forte àquele que desfalece e o vinho àquele que tem amargura no coração: que ele beba e esquecerá a sua miséria e já não se lembrará de suas mágoas”.
Não é de hoje que o homem reconhece as qualidades físicas e “espirituais” do vinho. A máxima acima foi escrita por ninguém menos que o sábio rei Salomão no livro dos Provérbios e já dá conta de que a bebida não somente é capaz de curar o corpo, mas também a alma. Tanto que, mais adiante, na mesma Bíblia, porém no livro do Eclesiástico, escreve-se: “O vinho, bebido moderadamente, é a alegria da alma e do coração. A sobriedade no beber é a saúde da alma e do corpo”.
Foram necessários mais de 2.000 anos para que a ciência enfim comprovasse o que a sabedoria popular já pregava há séculos, mas, hoje, não há dúvida de que o consumo moderado do vinho contribui para a saúde humana. Graças à combinação de polifenóis presentes na bebida, as mais diversas áreas do organismo são afetadas de forma benéfica, auxiliando coração, fígado, sistema nervoso etc.
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No entanto, antes mesmo das qualidades medicinais, os homens já se valiam das benesses “espirituais” do vinho. O efeito da bebida, que “aquecia os corações”, “soltava a língua”, “tornava o homem mais amável”, é louvado não somente na Bíblia, mas nos mais diversos escritos de todas as civilizações, da antiguidade até os nossos dias. “O sofrimento pode ser aliviado com uma boa noite de sono, um banho e uma taça de bom vinho”, afirmou o filósofo São Tomás de Aquino.
O vinho, aliás, sempre esteve ligado ao processo civilizatório como parte da cultura do homem. Uma das mais antigas bebidas conhecidas, toda a sua produção atravessou os séculos venerada, representando não somente a relação do homem com a natureza, mas também como um instrumento cultural repleto de simbolismo. “O grau de civilização de um povo é sempre proporcional à qualidade e à quantidade dos vinhos que consome”, disse o poeta romano Babrius.
Hoje, portanto, optar pelo vinho e selecionar uma garrafa vai muito além de uma mera escolha entre rótulos. Esse ato encerra, entre outras coisas, uma preocupação com nosso corpo e nossa mente, faz-nos refletir sobre passado, presente e futuro, dá-nos a possibilidade de experimentar novas culturas e adquirir novos conhecimentos, incita-nos a curiosidade e a alegria e, por que não, também a um ato de partilha.
Ainda em meados do século XIX, Louis Pasteur – cientista que revolucionou a produção de vinho no mundo ao introduzir o processo de pasteurização (leve aquecimento da bebida até matar as bactérias) – já afirmava que o vinho era “a mais saudável e higiênica das bebidas”.
Mas a intrínseca ligação do vinho com a saúde humana só seria confirmada mais de um século depois, em 1991, quando o pesquisador da Universidade de Bordeaux, Serge Renaud apresentou ao mundo o seu famoso “Paradoxo francês”. Nele, o vinho foi considerado um dos pilares que explicava a menor incidência de doenças coronárias dos povos do mediterrâneo em relação anos norte-americanos.
Desde então, a relação entre o efeito protetor da bebida para o coração e todo o sistema cardiovascular vem sendo esmiuçada e, a cada nova pesquisa, confirmada. Um dos últimos levantamentos revelou que incluir o consumo moderado na dieta diminui sensivelmente a incidência de doenças vasculares nas mulheres, por exemplo.
“O vinho lava nossas inquietações, as desaloja das profundezas da mente e age como um remédio contra as tristezas, assim como faz com algumas doenças”, disse o filósofo Sêneca
Mais recentemente, os estudos se concentraram em outra área. Os cientistas perceberam que os antioxidantes naturais presentes no vinho não somente preveniam problemas coronários, como também atuavam como “rejuvenescedores”, especialmente por sua atuação no cérebro e sistema nervoso central. Notou-se que havia menor incidência de doenças neurológicas, incluindo Alzheimer, naqueles que consumiam vinho regular e moderadamente.
Ultimamente, porém, as pesquisas vêm expandindo as possibilidades de atuação do vinho em nosso benefício. Há pouco tempo, por exemplo, cientistas perceberam que a bebida pode ajudar a proteger o fígado, evitando o acúmulo de gorduras e doenças hepáticas. Um estudo similar também mostrou que a combinação entre consumo moderado de vinho e prática regular de exercícios físicos é a melhor fórmula para manter os níveis de colesterol, glicemia, triglicérides etc dentro dos padrões de saúde.
Mas se sua atuação sobre os órgãos humanos ainda vem sendo estudada para ser melhor compreendida, poucos duvidam de seus efeitos sobre a mente. “A penicilina cura os homens, mas é o vinho que os torna felizes”, disse certa vez o biólogo Alexander Fleming. Antes dele, porém, outros já admitiam o efeito benéfico da bebida para aliviar as tensões cotidianas. “O vinho torna a vida diária mais fácil, menos preocupada, com menos tensões e mais tolerância”, afirmou Benjamin Franklin, um dos pais da Revolução Americana. No mesmo tom disse Napoleão: “O vinho é inspirador e acrescenta muito para a alegria de viver”. Assim como o poeta alemão Johann Wolfgang Goethe: “O vinho alegra o coração do homem; e a alegria é a mãe de todas as virtudes”.
“O vinho lava nossas inquietações, as desaloja das profundezas da mente e age como um remédio contra as tristezas, assim como faz com algumas doenças”, atestou o filósofo romano Sêneca. As propriedades do vinho para o corpo e a mente sempre foram tão decantadas que os médicos e conselheiros de Luís XV, o Rei Sol, recomendavam-lhe não somente beber vinho diariamente para manter a saúde, mas também banhar-se com ele. Certa vez, o Marechal Richelieu (sobrinho-neto do famoso Cardeal Richelieu), teria dito ao rei: “Vossa Majestade ainda não sabe que encontrei a fonte da juventude? Descobri que os vinhos do Château Lafite são licores revigorantes: eles são tão deliciosos quanto a ambrosia dos deuses do Olimpo”.
O vinho sempre foi um elemento civilizatório. “A próspera cultura que se desenvolveu dentro das cidades-estados na Grécia antiga no primeiro milênio a.C. gerou avanços em filosofia, política, ciência e literatura que ainda servem de base para o pensamento ocidental moderno. O vinho foi a fonte essencial dessa civilização mediterrânea e a base de um vasto comércio marítimo que ajudou a espalhar as ideias dos gregos por toda parte. A política, a poesia e a filosofia eram discutidas em festas formais com bebidas – os simpósios (symposia) –, nas quais os participantes partilhavam uma grande taça de vinho diluído. O costume de beber vinho prosseguiu com os romanos, cuja sociedade hierarquizada tinha uma estrutura que se refletia numa ordenação social de vinhos e estilos de vinhos detalhadamente regulada”, afirma o jornalista Tom Standage.As maravilhas do vinho não se resumem aos seus efeitos sobre a saúde e a alma. Ele sempre teve prestígio acima de outra bebidas desde os mais remotos anos da Antiguidade. Voltando ao tema da saúde, foi um dos antissépticos mais usados durante mais de 2 mil anos. As feridas eram banhadas em vinho e, com ele, a água se tornava potável. Quando os efeitos do álcool no corpo ainda não eram compreendidos, o estado de torpor causado pelo vinho gerava experiências sensoriais facilmente confundidas com momentos de união entre deuses e homens. A bebida dava ao homem a sensação de divindade. Mais do que isso, era a bebida dos deuses e, por vezes, considerada a transubstanciação do deus. Quando bebido, acreditava-se estar bebendo o próprio deus – como ocorre até hoje no cristianismo. Martinho Lutero, o mentor da Reforma Protestante, chegou a afirmar: “A cerveja é feita pelo homem; o vinho, por Deus”.
“A penicilina cura os homens, mas é o vinho que os torna felizes”, afirmou o biólogo Alexander Fleming
Na Idade Média, outro importante monarca também ocupou-se do vinho. Carlos Magno teve grande influência na produção da bebida na França e na Alemanha. Foi durante o período carolíngio que se produziram os primeiros vinhos “hand-made”, que atendiam aos interesses e gostos do mercado consumidor. O rei legislou sobre a produção e a comercialização do vinho com pulso firme. Seu nome ainda ficaria gravado em um dos principais vinhos brancos do mundo, o vinhedo de Corton-Charlemagne, na Borgonha.Para muitos historiadores, um dos motivos da expansão do Império Romano, especialmente na época de Júlio César, está relacionado ao vinho. O exército do general garantia rotas de comércio seguras e, com isso, era possível expandir a circulação de vinhos da Itália, promovendo o desenvolvimento econômico necessário para manter Roma. Na época, a bebida era tão valorizada que era possível trocar uma jarra por um escravo. Foi graças a César que surgiram os vinhedos chamados de Romanée, na França.
Elemento cultural e civilizatório, o vinho também é um lubrificante social. “Existe mais filosofia em uma garrafa de vinho que em todos os livros”, afirmou Pasteur que, assim como historiador Plínio, o Velho, autor a famosa frase “no vinho, a verdade”, e o dramaturgo Aristófanes, que cunhou o mote “traga-me uma taça de vinho para que eu possa molhar minha mente e dizer algo inteligente”, percebeu como a bebida era capaz de trazer à tona (ou à boca) os pensamentos. E para os que apreciam ironias finas, o escritor George Saintsbury apontou: “Quando o vinho é bom, ele dá prazer aos sentidos, melhora a moral e o intelecto, além de fazer com que eu consiga enxergar esses benefícios em outras pessoas”.
Da mesma forma, o vinho também congrega. Nas celebrações e rituais antigos, os convivas compartilhavam a bebida, às vezes, da mesma taça, um gesto de confiança e comunhão. Não à toa, acredita-se que o ato de brindar, usado pelos reis para selar alianças, representava isso – tanto que eles chocavam suas taças com força para que os líquidos se misturassem, demonstrando que não estavam envenenados.
Quem talvez melhor defina esse poder de congregação do vinho é o poeta alemão Friedrich Schiller, que escreveu: “Meia dúzia de bons amigos, quando muito, ao redor de uma pequena mesa redonda, uma taça do genuíno Tokaji, corações abertos, e uma conversa racional – esse é o meu agrado”, em sua peça “The Piccolomini”. Visão semelhante à do famoso enólogo Emile Peynaud: “Beber não deveria ser um prazer solitário, mas mútuo... Há poucos prazeres que se prestam tão bem à discussão como aqueles compartilhados ao beber um bom vinho, com a taça na mão”. Vale lembrar ainda que as refeições definitivamente ficam melhores quando acompanhadas de uma bela garrafa.
“Beber não deveria ser um prazer solitário, mas mútuo... Há poucos prazeres que se prestam tão bem à discussão como aqueles compartilhados ao beber um bom vinho, com a taça na mão”, disse o enólogo Emile Peynaud
Dos benefícios à saúde ao intelecto. Um enófilo pode se apoderar de tudo isso. Abrir uma garrafa de vinho significa dar vazão não somente a um líquido saudável, mas com um forte viés histórico-cultural e também social. O vinho é capaz de nos transportar, seja para lugares incríveis (como as belas regiões vitivinícolas do mundo), seja para o passado (ao lembrarmos como e quando foi produzido), seja para o futuro (ao imaginarmos como ele evoluirá), mas sempre deleitando-nos no presente.