Desbravadores do terroir brasileiro

Iniciativas de produtores de Minas Gerais e de Goiás mostram que o potencial vitivinícola brasileiro pode ir além do Sul e do Nordeste

Orestes De Andrade Jr. Publicado em 15/05/2013, às 12h22 - Atualizado em 04/06/2019, às 13h13

Na atual estação do ano, o outono, as videiras do Sul do Brasil estão descansando. Mas, na região Sudeste, em uma experiência inédita, as vinhas estão em plena fase de maturação. Quando chegar o inverno, em junho e julho, elas estarão prontas para ser colhidas, enquanto as plantas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina - os dois principais estados produtores de uvas e vinhos do país - estarão em pleno repouso. "Enganamos a videira", brinca o viticultor Murillo de Albuquerque Regina, com um sotaque mineiro inconfundível.

O pesquisador da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig) foi o primeiro a aplicar a técnica que altera o ciclo natural das videiras, por meio da dupla poda, com o objetivo de produzir uvas Vitis viníferas na região cafeeira de Minas Gerais, entre 800 e 1.000 metros de altitude. Ele já ganhou seguidores na região Centro-Oeste do Brasil, como o médico Marcelo de Souza, em Goiás, e outros produtores de São Paulo e do próprio sul de Minas, totalizando 150 hectares de vinhas implantadas com dupla poda - 40% delas em produção neste outono/inverno. O investimento, só em vinhedos, supera os R$ 8 milhões somados todos os projetos supervisionados pela Epamig em Minas e São Paulo.

Inspirado pelo botânico francês Auguste Saint Hilaire, que em 1819 atravessou as montanhas do sul de Minas Gerais, Murillo acreditou ser possível elaborar vinhos de qualidade na região Sudeste. Há praticamente dois séculos, ao percorrer as nascentes do rio São Francisco, Saint Hilaire registrou em suas anotações "a notável superioridade das uvas colhidas no inverno com relação às do verão".

Técnica de dupla poda faz com que o ciclo da videira se altere, trazendo a maturação para o inverno

Com a cedência de uma área na sua fazenda em Três Corações, na mesma região percorrida por Saint Hilaire, o médico ginecologista Marcos Arruda Vieira permitiu o início das pesquisas da Epamig há mais de uma década, sob a coordenação de Murillo - engenheiro agrônomo e especialista em viticultura com PhD na Universidade de Bordeaux, na França. O projeto científico financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), com apoio de órgãos públicos, já recebeu em torno de R$ 300 mil desde 2003.

Estrada Real

Os testes em Três Corações, iniciados em 2001, contemplaram as uvas Syrah, Cabernet Sauvignon, Chardonnay e Merlot. A Syrah mostrou melhor desenvolvimento e produção e, por isso, a área foi ampliada para 10 hectares. Outra casta bem adaptada é a Sauvignon Blanc, com três hectares. Os vinhedos não são irrigados. Com resultados encorajadores no campo, Murillo convocou seus dois sócios numa empresa de produção de mudas de videiras - os franceses Patrick Arsicaud e Thibaud de Salettes, do Vale do Rhône e Pirineus - e junto com o médico Marcos Arruda Vieira fundaram, em 2007, a Vinícola Estrada Real, situada no polo turístico que envolve as cidades históricas de Tiradentes e Ouro Preto.

Três anos mais tarde, surgiu um vinho pioneiro - o Primeira Estrada Syrah safra 2010 - com passagem de 12 meses por barricas de carvalho francesas (70% do vinho) e americanas (30%) e um ano de garrafa. "Desde o início das pesquisas até o lançamento do primeiro rótulo, 12 anos se passaram", recorda Murillo. A produção total é de 10 mil garrafas, recém-lançadas no mercado, disponíveis em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo (no Mercado Municipal). Para o próximo ano, está previsto o lançamento de um Sauvignon Blanc.

Um novo terroir no Brasil?

Assim se inaugura um novo conceito em elaborar vinho fino no Sudeste brasileiro, conhecido por produzir rótulos de consumo corrente, os populares vinhos de mesa, com uvas americanas ou híbridas. Conhecedor do clima e do solo argilo-arenoso de boa drenagem, profundo, da região do sul de Minas Gerais, Murillo defende que a inclusão desse novo terroir no cenário dos vinhos finos brasileiros é viável diante das possibilidades agronômicas e climatológicas de desviar o ciclo da videira. "Nossas pesquisas mostram que os vinhos obtidos de uvas colhidas no outono-inverno são superiores nessa região àqueles de uvas colhidas no verão e já surpreendem pela sua originalidade", decreta.

A teoria e a prática mostram que bons vinhos, especialmente tintos, são elaborados a partir da colheita de uva em regiões com dias ensolarados, noites frescas e solo seco, sem umidade. Condições existentes em Mendoza (Argentina), no Piemonte (Itália), Maipo e Aconcágua (no Chile), entre outras famosas regiões. Aqui no Brasil, na Serra Gaúcha, as condições ideais para produção de uvas são afetadas pela ocorrência de chuva na época da colheita. Ao contrário do que se vê no Vale do São Francisco, especificamente em Petrolina, onde quase não chove, porém há pouca amplitude térmica entre o dia e a noite.

A experiência empírica de inversão do ciclo da uva já rendeu uma tese de mestrado, duas de doutorado e artigos em publicações especializadas, como na alemã "Vitis", uma das principais revistas científicas de viticultura. Anteriormente, a dupla poda era realizada somente com a intenção de adaptar a colheita de uvas de mesa à demanda do mercado.

Novas regiões

Vários outros projetos têm sido implantados pela iniciativa privada em praticamente todas as macrorregiões geográficas mineiras e em escala variável, de 1 a 50 hectares. Há novos plantios de Vitis viníferas em Alfenas, Andradas, Araxá, Andrelândia, Baependi, Cordislândia, Delfim Moreira, Diamantina, Santana dos Montes, Santo Antônio do Amparo, Varginha, Santa Luzia, São João Batista do Glória, Três Pontas.

Além de Minas Gerais, a Epamig tem apoiado diretamente outra iniciativa de produção de vinhos finos em andamento na cidade de Espírito Santo do Pinhal, interior de São Paulo. Esse projeto já possui área cultivada de 50 hectares de videiras europeias e orienta-se à elaboração de vinhos tintos, brancos e espumantes de alto prestígio e com alta tecnologia tanto no manejo do vinhedo quanto na vinícola, que já se encontra instalada. Espírito Santo do Pinhal, Divinolândia, Itobi, Indaiatuba e Louveira são outras cidades paulistas com cultivos experimentais de uvas pelo ciclo invertido.

Goiás

Outro local improvável para se elaborar vinhos finos de qualidade - o estado de Goiás - também tem se beneficiado da descoberta da Epamig. O médico otorrinolaringologista Marcelo de Souza, proprietário da Pireneus Vinhos e Vinhedos, acaba de lançar a segunda safra de seus vinhos de inverno. Os primeiros dois rótulos de produção própria - o Intrépido (Syrah 2010) e o Bandeiras (Barbera 2010) - foram apresentados no ano passado e, agora, na Expovinis 2013, foram lançadas as novas safras, de 2011, dos mesmos rótulos.

Minas Gerais e Goiás podem passar a fazer parte do mapa vitivinícola brasileiro

Souza diz que sempre foi um amante dos vinhos. Em 2003, resolveu tornar seu sonho em realidade. Natural de Goiânia, percorreu durante dois anos o estado de Goiás em busca de um terroir adequado para produção de uvas que pudessem gerar vinhos de qualidade. Em 2005, encontrou uma área metida em um vale, na Serra dos Pireneus, uma cadeia de montanhas situada entre os municípios de Pirenópolis, Corumbá de Goiás e Cocalzinho. A altitude no local é de 930 metros. Os vinhedos estão em um vale, cerca de 200 metros abaixo das montanhas o que guarnecem. O solo é muito semelhante ao sul de Minas: argilo-arenoso típico de cerrado, ou seja, pobre, ácido, profundo.


"Nosso clima é tropical e, portanto, assim como no Vale do São Francisco, podemos iniciar o ciclo da videira no momento que acharmos mais adequado à produção, e também podemos, se desejarmos, ter mais de uma safra por ano", afirma Marcelo Souza

Quatro variedades são cultivadas em quatro hectares de vinhedos: Barbera, Syrah, Tempranillo e Sangiovese. "Faço vinhos que respeitam esse terroir e essas uvas são as que melhor se adaptam no cerrado brasileiro", destaca o produtor. O plantio das primeiras mudas foi realizado em 2005. Em 2008, foram elaboradas as primeiras garrafas experimentais. Mas a safra inaugural foi a de 2010. O enólogo responsável é Marcos Vian, ex-Salton, que também trabalha para Basso (Monte Paschoal) e Sanjo, entre outras empresas.

"A localização geográfica foi determinante para a escolha da área", conta. Segundo ele, a amplitude térmica nos vinhedos é um dos trunfos do lugar. Em junho e julho, faz uma média de 29ºC ao dia e 10ºC à noite. Em agosto, a temperatura vai de 32ºC (dia) para 12ºC (noite). E, em setembro, a diferença é de 35ºC (dia) e 15ºC (noite). "Sem chuva alguma", reforça. Por isso a necessidade de irrigação, ao contrário do que ocorre em Minas. A vitivinicultura é trabalhada em um clima tropical de altitude, com o ciclo da videira invertido. A safra de 2012 foi retirada dos vinhedos em agosto.

Mas Marcelo Souza discorda do uso da técnica do ciclo invertido como diferencial competitivo, considerando apenas uma ferramenta de marketing. "Pessoalmente não concordo com a designação. Acho uma tentativa marqueteira de definir os vinhos do cerrado. Nosso clima é tropical e, portanto, assim como no Vale do São Francisco, podemos iniciar o ciclo da videira no momento que acharmos mais adequado à produção, e também podemos, se desejarmos, ter mais de uma safra por ano", afirma.

Para ele, os vinhos de cerrado de altitude são especiais e diferentes porque há pelo menos quatro meses de clima seco com dias quentes e noites frias, assim como o verão do clima mediterrâneo de onde suscitaram as uvas Vitis viníferas na Europa. "Não há inversão de ciclo, apenas conduzimos a videira no sentido de aproveitar todo o potencial fenotípico que elas podem manifestar nesse período seco, típico do cerrado de altitude", defende. Polêmica à parte, os vinhos de inverno do Sudeste brasileiro estão chegando e, quem sabe, vão esquentar as noites dos consumidores mais exigentes.

VINHOS AVALIADOS

 

AD 87 pontos
ALMA SAUVIGNON BLANC 2012

Casa Geraldo, Minas Gerais, Brasil (R$ 19). Branco elaborado exclusivamente a partir de uvas Sauvignon Blanc colhidas no inverno, sem passagem por madeira. Apresenta cor amarelocitrino de reflexos esverdeados e aromas de frutas brancas e cítricas mais frescas envoltos por típicas notas vegetais e herbáceas, além de toques florais, minerais e defumados. No palato, é frutado, estruturado, tem bom volume de boca, acidez refrescante e final médio/longo agradável. Bem feito e gostoso de beber. Álcool 13,5%. EM

AD 88 pontos
BANDEIRAS BARBERA 2010

Pirineus Vinhos e Vinhedos, Goiás, Brasil (R$ 75). Este vinho é uma homenagem aos bandeirantes, descobridores da Serra dos Pirineus em 1727. Tinto composto de 85% Barbera, 10% Tempranillo e 5% Sangiovese, com estágio de seis meses em barricas de carvalho francês e americano. Apresenta cor vermelho-rubi de reflexos violáceos e aromas de frutas vermelhas maduras, bem como notas florais e de especiarias doces, além de toques minerais e tostados. No palato, é frutado, estruturado, equilibrado, tem acidez refrescante, boa tipicidade, taninos macios e final médio e suculento. Álcool 15%. EM

 

AD 87 pontos
INTRÉPIDO SYRAH 2010

Pirineus Vinhos e Vinhedos, Goiás, Brasil (R$ 65). Primeira vinícola do centrooeste do Brasil a produzir vinhos de uvas Vitis vinífera. Tinto composto de 87% Syrah e 13% Tempranillo, com estágio de 11 meses em barricas novas francesas. Tem cor vermelho-rubi intensa e aromas de frutas vermelhas e negras mais maduras, bem como notas florais, tostadas e de especiarias picantes, além de toques herbáceos. Em boca, confirma essa fruta mais madura, é estruturado, tem acidez na medida, taninos marcantes, mas de boa qualidade e final persistente e suculento. Ainda está jovem. EM

 

AD 86 pontos
PRIMEIRA ESTRADA SYRAH 2010

Vinícola Estrada Real, Minas Gerais, Brasil (R$ 65). Produzido exclusivamente a partir de uvas Syrah maturadas e colhidas no período de outono/ inverno, ou seja, através de podas a videira é levada a produzir uvas fora do período usual da primavera/verão, o que possibilita um ciclo mais longo, permitindo o amadurecimento mais homogêneo da fruta. Apresenta cor vermelho-rubi de reflexos violáceos e aromas de frutas vermelhas envoltos por notas especiadas e minerais. No palato, é frutado, estruturado, tem boa acidez, taninos bem resolvidos e final médio. Vale ser provado. Álcool 13,5%. EM

 
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