Uma conversa sobre a Alves de Sousa com Domingos Alves de Sousa, um dos pioneiros dos vinhos Douro DOC, e seu filho Tiago
“Inicialmente, meu pai, como rebelde que era, foge da tradição. Meu avô queria que ele ficasse na agronomia, mas ele foi para Coimbra, cidade boêmia, de estudantes e tudo mais... Mas, mais tarde, acabou por se apaixonar pela terra. Por um lado, sentiu necessidade de ajudar a família e, com isso, reencontrou-se, e fez, digamos, quase que as pazes com esse dilema inicial. E assim perdemos um engenheiro civil, porém ganhamos um grande senhor do vinho. Então, tenho esse grande orgulho, mas também essa grande responsabilidade”, conta Tiago Alves de Sousa, ao resumir a trajetória do pai, Domingos Alves de Sousa.
Hoje, Domingos, Tiago e sua irmã mais velha, Patrícia, compartilham a gestão da Alves de Sousa. Para entender melhor a concepção por trás desses vinhos, a Revista ADEGA teve a oportunidade de conversar com pai e filho, que estiveram no Brasil recentemente. Confira:
- Você foi um dos pioneiros a produzir vinhos tranquilos no Douro. Por que tomou essa decisão?
Domingos – A crise no Vinho do Porto fez com que o nosso rendimento caísse cerca de 50%. O que fazer para inverter a situação? A minha conclusão foi tentar desvalorizar aquilo que não tinha valor nenhum, as uvas excedentes do Vinho do Porto. Tentamos dar esse passo e foi importantíssimo. Depois crescemos degrau a degrau.
- O mundo do vinho passou por mudanças de estilos durante os últimos 20 anos, tempo em que você esteve à frente da enologia da Alves de Sousa, como vem lidando com isso?
Tiago – Gaivosa sempre teve uma abordagem muito diferente desde o início. A maior parte dos nossos colegas da região vinha de uma tradição do Vinho do Porto. Então naturalmente muitas das técnicas que eram usadas no Porto foram transpostas para o vinho do Douro: fermentação em lagar, pisa a pé etc. Por isso, houve momentos de muita extração. Mas Gaivosa nunca fez isso. Desde o início meu pai sabia exatamente o que procurava. Encontrou formas de trabalhar a uva que fossem de encontro ao objetivo final: fazer grandes vinhos, mas fazer sobretudo vinhos elegantes, de equilíbrio. Por isso, ao longo do tempo, felizmente, vimos a região a vir ao nosso encontro. Por isso, não mudamos tanto assim com o tempo. O que mudou foi o conhecimento que temos de cada vinhedo hoje em dia. Começamos a individualizar cada vinhedo e compreender qual a origem de cada elemento.
- O que foi aprimorado em termos de viticultura e enologia para poder mostrar essas diferenças de lugar?
Tiago – Ter um acompanhamento muito próximo durante todo o ano e naturalmente na fase final. A fase da vindima é fundamental. Não existe um calendário. Existe um dia a dia na vinha em que vamos ver as condições de evolução. E isso vai mudar em função das dinâmicas climáticas do ano. Por isso, existe esse trabalho, essa precisão de estarmos no vinhedo e mudar realmente tudo quando é necessário, de estarmos sempre a nos adaptar àquilo que a natureza nos impõe, para onde ela nos direciona. Trabalhar com a natureza não é contrariar a natureza. É ir ao encontro daquilo que é a expressão não apenas do vinhedo, mas do ano também, respeitando ao máximo as características do ano. A grande evolução, creio eu, tem sido cada vez mais o continuar a brincar, literalmente, com a diversidade incrível que o Douro oferece. É uma região muito conhecida pelos tintos e, claro, também pelo Vinho do Porto, mas, cada vez mais, começamos a compreender que o Douro pode fazer praticamente um pouco de tudo. Pode fazer grandes brancos, grandes roses, grandes espumantes, desde que pensemos esses vinhos no próprio vinhedo. No Douro hoje em dia estamos ainda a arranhar a superfície.
- Ter o vinhedo é essencial na sua concepção?
Tiago – Temos seis quintas diferentes (Quinta da Gaivosa, Quinta do Vale da Raposa, Quinta da Estação, Quinta das Caldas, Quinta da Aveleira e Quinta da Oliveirinha). Nosso crescimento foi sempre baseado na vinha e sempre partimos desse princípio para conseguirmos expressar realmente essa vinha, conhecê-la, trabalhar nela e acompanhá-la ano após ano. Isso não se consegue comprando uva. As seis quintas totalizam cerca de 135 hectares de vinhedo. Estamos orgulhosamente no Baixo Corgo, a mais ocidental da região do Douro, mais fresca e mais amena, mas que durante alguns anos foi desconsiderada. Mas, o Baixo Corgo não apenas foi onde a região começou, como também é onde encontramos condições de grande equilíbrio. Chove um pouco mais, tem um pouco mais de água também, mas tem aqueles solos de xisto que são rocha. São condições que levam àquele frescor com equilíbrio. Depois ainda consigo ter uma estrutura, uma longevidade, e elementos que mostram muito do que é o Douro. Cinco das quintas estão lá e depois surgiu a possibilidade em 2007 de adquirir uma quinta – que já estava na família também, mas num ramo diferente – no coração do Vale do Douro, muito próxima a Pinhão, a Quinta da Oliveirinha.
- Vocês têm uma gama ampla, cada vinho com sua personalidade, mas também com uma identidade da Alves de Sousa. Como gerem isso?
Tiago – Aprendi com meu pai e com Anselmo que o enólogo deve ser silencioso. O enólogo tem que respeitar o vinhedo. A assinatura tem que ser a do vinhedo. Na nossa enologia não há nunca regras definidas, não há receita, não há fórmula, existe um acompanhamento e uma adaptação ao vinhedo em cada safra. Ou seja, os tempos de maturação, de estágio, de colheita etc., todas as decisões são feitas sempre baseadas no vinhedo, baseadas na prova, baseadas no impacto que cada uma das nossas ações teve anteriormente para podermos adaptar posteriormente.
- Como pensa as técnicas enológicas?
Tiago – Tentamos sempre encontrar a técnica ou a ferramenta mais adequada para cada a expressão do vinhedo em cada ano. Mas todas elas, em geral, vão sempre muito no sentido de ser uma extração mais suave. No Douro, temos o nível de maturação fenólico natural nas uvas bastante avançado. Por isso, não é preciso fazer muito para extrair. Muitas vezes, é quase mais um exercício de contenção do que propriamente de potenciar a extração. Em termos de estágio, isso também é pensado vinhedo a vinhedo, ou seja, vamos encontrar o melhor meio, quer seja barrica, cimento, outro material qualquer. Não existe qualquer preconceito. E se vamos, por exemplo, à barrica, vamos tentar jogar com as dez variáveis diferentes que a barrica tem para oferecer: capacidade, idade, tipo de madeira, por exemplo. Trabalhamos com carvalho francês, mas também temos um trabalho especial com carvalho português. Vamos tentar encontrar, entre todas essas variáveis, a conjugação que melhor vai potenciar a expressão.
- Foi preciso se adaptar às mudanças climáticas?
Tiago – A viticultura do Douro passou por várias etapas, por isso começou-se a procurar formas de mecanizar, e fomos então para os patamares, depois para as vinhas ao alto. Contudo, os desafios hoje são completamente diferentes. Sabemos que estamos perante um impasse climático, por isso, começamos a fazer um trabalho de experimentação com os diferentes tipos de viticultura para encontrar qual seria o modelo mais adaptado ao futuro. E nesse momento tivemos então que admitir que, na verdade, nosso bisavô já tinha acertado 100 anos atrás: o modelo da vinha tradicional do Douro era aquele que estava melhor adaptado ao momento atual.
- Qual?
Tiago – Os socalcos, não só, mas sobretudo os socalcos pós-filoxera, num formato que acaba por ser respeitar a encosta, a topografia natural, construindo pequenos muros de xisto apenas para suster melhor o solo e muitas vezes decrescer um bocadinho o declive, respeitando o que é natural, e com uma densidade muito elevada, que chega às 8000 videiras por hectare. Isso estava tão bem adaptado às nossas condições naturais e também era o que estava melhor preparado para fazer face a todas as alterações climáticas. Por isso, de 2014 em diante, 95% dos vinhedos que plantamos são vinhas tradicionais. Chamamos isso de ‘novas vinhas velhas’, ou seja, estamos a tentar recriar aquilo que o vinhedo velho é e, por isso, essa densidade de plantação, sobretudo com a diversidade que encontramos na vinha velha, na mistura de uvas. Hoje temos o privilégio de trabalhar com vinhedos em que você tem tanta identidade e segredos. Tenho a responsabilidade de garantir que as próximas gerações vão ter essa mesma identidade.
- Foi preciso adiantar a colheita com o passar do tempo?
Tiago – Mais do que propriamente uma tendência, isso é cada vez mais uma aleatoriedade. Pode-se pensar que, na verdade, é tudo sempre mais cedo, mas não é. Varia muito. Em 2020 houve um período final estival, bem extremo, e começamos a vindimar muito cedo, mais ou menos em 20 de agosto. Em 2021, o mesmo vinhedo foi vindimado um mês mais tarde, assim como tinha sido em 2019. Ou seja, cada vez mais essa precisão, esse acompanhamento do vinhedo é fundamental. Acabou o calendário da colheita como acontecia muito no passado. Isso não existe, sem dúvida, porque a mudança climática passa muito por aí, por essa aleatoriedade. Temos que saber nos adaptar, porque é bem exigente.
- Os ciclos de colheita são mais curtos?
Tiago – Efetivamente, em termos de ciclos, há um período mais curto e se calhar existe uma maior quantidade de anos assim. Mas no Douro somos privilegiados porque podemos jogar com essa diversidade incrível de paisagem e também a diversidade de uvas. Com isso, vamos encontrar muitas das soluções para todas essas diferentes dinâmicas que cada ano nos vai trazer.
- Por que começou apostando em brancos?
Tiago – Gaivosa sempre teve uma grande tradição de brancos. Ainda existe ali uma área de vinhedo do Porto Branco. Mas em certo momento começamos a pensar que não fazia sentido tentar fazer um branco clássico. Porque não fazer um vinho que mostrasse essa tradição do Porto Branco reinterpretada como um vinho do Douro? Isso foi o ponto de partida para um dos vinhos mais originais, mais irreverentes, mas também que mais prazer pessoal nos dá. Daí chamar-se ‘Pessoal’. Grande parte desses vinhedos tem cerca de dez uvas diferentes combinadas. Se fosse para Vinho do Porto, eu teria aquele trabalho mais oxidativo na pipa, mas aqui fazemos ao contrário. Em vez de oxidar o vinho, oxida o mosto, quase que desconstruindo esse conceito, mas aproximando daquilo que era a vocação original do vinhedo, e com uma interpretação muito pessoal, que precisa de tempo. Por isso, a safra atual é 2016.
- Interessante essa associação com o Vinho do Porto, há muitas possibilidades no Douro, não?
Tiago – A natureza no Douro é tão generosa que, no final, o limite é quase mais a nossa própria imaginação do que propriamente a imposição da natureza, pois podemos interpretá-la de imensas maneiras diferentes, e esse vinho é efetivamente uma das interpretações mais queridas pela família.
- Gostaria que falasse também do rosé. Quão importante é para vocês?
Tiago – É um privilégio fazer parte desta nova abordagem dos rosés. Eles sempre foram considerados vinhos mais simples e não levados tão a sério. Mas, a partir do momento em que começamos a pensar o rosé no vinhedo, o grande rosé começou a surgir. Esse foi o ponto de partida para o Rosa Celeste, em homenagem à minha avó, mãe do meu pai. A família Alves de Sousa chega à Quinta da Gaivosa pelo casamento do avô, Edmundo Alves de Sousa, com a avó Celeste. Gaivosa era da família da avó Celeste. Ao recordá-la, era preciso recordar essa elegância, a delicadeza que ela tinha. Pensamos que o rosé seria a melhor forma. Mas tinha que ser um grande vinho. O vinhedo foi plantado com esse objetivo, escolhendo uma uva típica, Tinto Cão. No conjunto das uvas Douro, se calhar, essa uva sempre pareceu estar um pouquinho fora do tom. Geralmente no Douro temos uvas com muita estrutura, muita concentração, muita cor. Tinto Cão é exatamente o oposto, pouca cor, pouca estrutura, pouco tanino, super delicada, super elegante. Sempre foi uma uva de equilíbrio, de balanceamento. Era a uva perfeita para gerar algo assim e por isso foi a escolha mais natural. E depois todo o trabalho na adega foi muito cuidadoso. Criamos um programa de prensagem sob medida para essa uva, pois a prensa quase não gira para evitar que haja uma maceração excessiva. Depois separa-se em diferentes tipos de barrica, diferentes capacidades e mesmo diferentes tipos, algumas mais velhas, outras com um tipo de tosta diferente. Por isso é um rosé safra 2020, mas pensado para desfrutar até 2040.
- Qual a diferença entre Gaivosa, Abandonado, Lordelo?
Tiago – Gaivosa é o farol. A linha de orientação da família que representa a quinta como um todo, com três quartos dos vinhedos mais velhos, com média de cerca de 80 anos, mais de 20 uvas diferentes. Por isso, mostra muito bem a identidade daquele local na fronteira noroeste do Douro. Depois, dentro da Quinta da Gaivosa, existem diferentes vinhedos. Ao longo do tempo e também muito em função do estudo feito a partir de 2003, eles mostraram algo diferente. Não era melhor ou pior, mas era tão diferente que fazia sentido mostrar. No início, a primeira foi a Vinha de Lordelo, que surgiu em 2003, o vinhedo mais antigo da Quinta da Gaivosa. Atualmente está com cerca de 120 anos, um anfiteatro natural onde existe todo tipo de condições, diferentes altitudes, diferentes posições, 30 uvas plantadas em conjunto. Há enorme complexidade, mas também uma enorme harmonia e equilíbrio. Este é o vinhedo irmão do Abandonado, cujo nome já mostra a adversidade e a dificuldade. Não foi possível nunca replantar esse vinhedo, o que existe lá são as videiras originais. Os nossos antepassados plantaram há 90 anos e, na verdade, metade das vinhas morreu logo. Era um solo tão rochoso que as vinhas não conseguiram vingar. ‘Vai ter que abandonar isso’. Muito mais tarde tentamos plantar e também não conseguimos. Ou dinamitávamos tudo ou aceitávamos aquilo que lá estava. E em uma última chance, já com a dinamite quase preparada, tivemos então uma ótima experiência. É apaixonante porque mostra algo tão diferente, com uma identidade tão especial.
- Conheça abaixo os melhores vinhos da Alves de Sousa recém-degustados pela Revista ADEGA
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