A sinceridade e a generosidade de Alejandro Vigil em uma conversa, como sempre, franca sobre o vinho argentino
Christian Burgos Publicado em 28/08/2023, às 16h00
É curioso que alguém ajudou a moldar a vitivinicultura argentina nos últimos anos possa ser tão acessível. Tem momentos em que você acha que Alejandro Vigil está por toda a parte. Você olha para o lado e lá está ele fazendo uma selfie com um “fã” enófilo em um evento de vinho.
Se está na Casa Vigil (sua casa e excelente restaurante em Mendoza), passa pelas mesas cumprimentando a todos. De repente, já está postando fotos de vinhedos que foi visitar no Uco. Com um cicerone, parece estar sempre de bem com a vida, nunca nega atenção a quem pede, mesmo que seja para trocar apenas duas palavrinhas – e geralmente uma delas será uma brincadeira – ou fazer uma foto debochada.
Em visita recente ao Brasil Vigil encontrou tempo para conversar com ADEGA com exclusividade e como sempre, foi uma conversa franca e muito gostosa
Como era a cena do vinho na Argentina há 25 anos comparada com hoje? Foi uma grande mudança. Nos últimos 20 anos, passamos a cultivar 80% dos vinhedos no Uco. Então existe uma mudança geográfica, mas essa mudança traz consequências, porque são áreas menos produtivas, porque passamos de variedades produtivas para outras menos produtivas. Por exemplo, a variedade Criolla é muito produtiva e mudamos para Malbec no Vale do Uco, que é mais frio e temos muito menos rendimento. Outra coisa importante é que, para irrigar em Luján de Cuyo ou Maipú, usamos o rio Mendoza e o rio Tunuyán. E agora, ao plantar o Uco, usamos córregos muito menores. Portanto, há menos disponibilidade de água. Bem, então há uma grande mudança na viticultura argentina. Acho que estamos quase 100% focados na viticultura de alta qualidade. E o problema é que estamos perdendo a base da pirâmide.
Há problemas estruturais? Falta uva boa por um bom preço. É preciso ter vinhas com alta produção. Para isso, tenho de ter vinhas com tecnologia, com castas que deem bons rendimentos e que estejam protegidas do granizo, das geadas. E isso não está acontecendo hoje. Então as produções são muito baixas. Adicionado à situação do dólar, é um problema muito grave que se reflete na perda de consumo de vinhos básicos. Mas, por outro lado, há um aumento no consumo de vinhos de preço alto; isso está segurando o consumo interno da Argentina, que é importante. E nas exportações também estamos vendo que a Argentina conseguiu se posicionar nos segmentos premium e super premium.
A Argentina foi muito rápida na mudança de visão para a qualidade em uma definição de terroir? Ontem à noite tivemos uma boa discussão com amigos e conversamos muito sobre um conceito que achamos que só vemos acontecer na Argentina e quase todos concordam: que é a relação pessoal entre enólogos e vinícolas. Há 20 anos concordamos num conceito que era o espaço, o lugar, a nossa identidade. E aí cada um desenvolveu isso com a sua cor, mas sempre com o mesmo conceito de terroir de qualidade. Encontramos áreas que nos deram a oportunidade de mostrar as paisagens nos vinhos. E esse trabalho tornou-se muito acentuado e foi rápido à medida que o vinho argentino se posicionou nestes segmentos.
É possível encontrar uma maneira de ter novamente uvas suficientes para fazer outros vinhos além de Mendoza, por exemplo? Sem dúvida, o nosso desafio para os próximos anos é encontrar zonas vitivinícolas principalmente com acesso à água. Isso nos permitirá ter produtividade e estrutura para voltar a ter um vinho básico de alta qualidade. Porque uma das coisas que tem sustentado o vinho argentino é o próprio argentino beber vinho em casa. E para isso temos que ter qualidade em todos os segmentos. É essencial que reencontremos esse caminho.
Você fala em buscar novos locais, mas tem uma questão que é onde tem mais recursos hídricos... Onde? Eu olho a Patagônia, Río Negro, a zona de Buenos Aires, Córdoba, o norte, o nordeste argentino, onde há um desenvolvimento vitivinícola, mas não é tão grande e podemos torná-lo grande. Acho que ainda há áreas a explorar e crescer. Você tem que ir procurando essas regiões, mas tudo é questão de tempo.
Muitas pessoas nos perguntam por que El Enemigo? Tem várias versões. Mas na realidade pensamos nisso com Nicolás Catena. Fizemos uma degustação às cegas do vinho Nicolás Catena 2001. E cada enólogo e consultor fazia a sua mistura. Nicolás me pediu para fazer uma, eu relutei, mas fiz. Naquela degustação às cegas, ganhou a amostra que fiz. E bem, a história continuou. Mas quando vou nomear El Enemigo, não sabia que nome colocar. E Nicolás Catena disse: “Como fez aquele vinho?” E eu disse: “Brincando, como um jogo, não tinha nada a perder, nem sabia o que tinha a ganhar, era como uma criança”. E ele me disse então: “Quando você é criança, você não tem medo. Nunca pensa nas consequências. Pensa sempre na diversão instantânea. Você sobe em uma árvore, não pensa que vai cair e que vai se quebrar”. Então ele me diz que o pior inimigo do homem é o medo de mudar, de fazer coisas novas. Porque um é limitador e à medida que você cresce isso vai passando. “Quebre paradigmas com um inimigo para relembrar aquele momento”. Isso foi em 2008.
Como seu projeto El Enemigo se desenvolveu tão rápido? Foi uma experiência extraordinária para mim. As pessoas veem e acham que foi muito rápido. Mas eu sempre digo que esse projeto está na minha cabeça há 50 anos. Claro que foi mudando para coisas diferentes, mas sempre com o conceito de El Enemigo. Cada vinho que você bebe vem de um lugar. Tanto que atingimos, diria, o máximo de cada uma de nossas garrafas. Para continuar a crescer é preciso produzir novos vinhos. E é um problema comercial, porque já se tem uma variedade enorme... Também fica um pouco confuso para mim.
Viria um conceito borgonhês agora? Sim, acho que agora vem essa fase. Até porque minha sócia, Adrianna Catena, tem um conceito de natural e orgânico. De fato, as nossas vinhas são praticamente todas biológicas, certificadas, mas decidimos não tornar público ainda. É importante para nós como um conceito, mas não achamos necessário para vender. E nos deparamos com todo um novo projeto de vinhos sem sulfitos. E este ano temos dois vinhos chamados El Amiguito. E também desenvolvemos uma nova linha sobre Gran Enemigo chamada As Bravas. É um novo conceito de elaboração; um novo conceito do antigo, porque são vinhos que estão em foudres entre seis e sete anos e só chegam ao mercado depois de oito anos, dependendo da safra. Esse ano já lançamos As Bravas 2016 Malbec. E temos um Garnacha.
Existe uma identificação muito grande de El Enemigo com Cabernet Franc. Por que escolheu essa variedade quase como carro-chefe? Isso surgiu em uma viagem à França. Fui a Pomerol e experimentei o Cabernet Franc, pois há muitos e muito bons. O que eu chamava de muito bom naquela época eram vinhos super concentrados, com potência. E depois provei Cabernet Franc do Loire, geralmente misturado com Malbec. Ninguém sabe que tem muito Malbec (Cot) misturado com Cabernet Franc, especialmente nos vinhos de Chinon. E eles eram vinhos mais próximos de um Borgonha Village, mais leves, com mais intensidade de acidez e estrutura. Eram tintos com aspecto de brancos. Dependendo do local onde era cultivado o Cabernet Franc, dava um vinho totalmente diferente, assim como Malbec. São variedades que não são de plástico, são transparentes ao local. O plástico é quando a variedade é exibida em qualquer lugar. Um Cabernet Sauvignon na Austrália e na Argentina são muito parecidos, mas não o Cabernet Franc. E é por isso que existem quatro Gran Enemigo de diferentes áreas (Agrelo, Chacayes, El Cepillo e Guatallary, todos Cabernet Franc), mas feitos do mesmo jeito com a mesma genética.
Por que selecionou essas áreas? Há áreas que faço vinhos há 22 anos. Gualtallary comecei a fazer em 2001. E vi como o vinho mudou. Por que mudou? Sempre me disseram que as plantas mais velhas produzem vinhos melhores. E eu não entendia o porquê. Diz-se: “há equilíbrio”. “Não sei o que significa equilíbrio”. Quando comecei a fazer no vinhedo Adrianna, as raízes estavam nos primeiros 30 centímetros, que é areia. Então os vinhos deram um verdor cozido. Depois de dez anos, as raízes estavam no calcário. Os vinhos se afinaram, deram mais acidez. Agora estão na areia, calcário e granito. E os vinhos são totalmente diferentes, com outro ângulo. Então também tive de me adaptar às mudanças da vinha, que antes me dava uma coisa e agora dá-me outra. E os vinhos têm mudado com base nisso. Mas eu já sei que o que esperar se minha raiz já está no granito, na terra vulcânica, calcário com pedra aluvial, areia...
Faço vinhos. Não faço marcas, faço vinhos. Alejandro Vigil
São locais ainda novos? É uma área que não havia nada há 25, 30 anos. Gualtallary passou de 100 hectares para 2800 hectares em 20 anos. Chacayes passou de 300 hectares para 3000 hectares. É tudo novo. Estamos aprendendo. Só agora estamos entendendo. Foi bom entender que conforme eu fui envelhecendo, as plantas também, e foram me dando coisas diferentes.
E quais variedades você escolheria agora? Garnacha? Acho que tem possibilidade, mas tem poucos hectares cultivados. A mesma coisa ocorreu com Cabernet Franc. Há o Chardonnay nos dá algo diferente. Estamos em um processo com Sémillon também.
Você falou sobre essa “troca” entre os enólogos argentinos. Você foi um incentivador disso, não? Viajamos, experimentamos e também temos uma grande diversidade de opiniões. Acho que é o que nos diferencia ainda mais, porque temos muitas pessoas pensando diferente, o que enriquece o conceito geral e é visto como algo importante. O fato de alguém pensar diferente não é visto como algo ruim. Acho que isso tem sido uma vantagem muito forte. Sempre que podemos, nos reunimos.
Soube que Catena lhe dava um orçamento para comprar e experimentar vinhos de todo o mundo. E você partilhava esta experiência com outros enólogos. Como isso foi importante? Foi fundamental para mim. Eu acho que é como quando você educa alguém quando criança. Então, todos têm a mesma generosidade e compreensão. Teve muita gente – o próprio Patricio [Tapia] – que não provava esses vinhos; e eu convidava para um churrasco na minha casa para que pudessem provar os vinhos. A gente abria garrafas do mundo todo. Acho que foi educativo. E isso deixou um impacto muito forte. Porque hoje não estou mais em todos os grupos de enólogos, porque são muitos, mas sei que eles fazem isso, trazem garrafas, provam; e isso me parece enriquecedor.
Houve muitas brigas durante essa mudança de estilo dos vinhos argentinos recentemente? Não teve briga. Acho que tem gente que tem sustentado um estilo e isso me parece bom. Acho que dentro da nossa necessidade de mostrar o Malbec em diferentes posições, é fundamental que eles existam. E acho que isso tem sido bom. Há muitas pessoas convictas do que fazem e isso é importante. No meu caso, o problema era mais interno: se tínhamos certeza das mudanças de estilo que estávamos fazendo, porque Catena já era uma marca de sucesso. Então, por que mudar a fórmula? Mas o bom de Nicolás e de Laura Catena foi entender que quando você está no topo tem que mudar. Hoje como proprietário, como empresário, não só como viticultor, acho que seria muito mais difícil para mim aceitar uma mudança de quem me traz uma ideia do que foi para Laura e Nicolás. Acho que isso é uma lição.
Essas mudanças vieram da mudança de visão dos enólogos? As viagens e trocas ajudaram-nos a focar no que é nosso, a concentrar-nos no nosso presente, a perceber o que é o mundo, não a copiar, mas a compreender e a focar e a entrar realmente no que é nosso. E sentir orgulho do que estamos fazendo. Então acho que agora vem uma segunda etapa onde a gente aprofunda muito mais o nosso conceito de viticultura. Eu diria mais intelectual. Apesar de achar que os vinhos não têm nada de intelectual. Eu gosto, não gosto e tchau.
Mesmo quando se quer aprofundar nele? Você pode ficar no “eu gosto ou não gosto”. Mas se quiser entender um pouco mais porque não gosta ou gosta, é outro passo. E à medida que você progride, é um problema, porque se torna parte do seu modo de vida. Então acho que cada um escolhe onde fica, né? E isso é bom. No meu caso é tudo. Vinho é tão infinito, nunca acaba. Portanto, é uma jornada extraordinária sem fim.
Agora você tem um projeto em Madrid. Por que buscar algo fora? Se eu acho que as variedades mediterrâneas são importantes para a Argentina, tenho que ir até a origem delas para entendê-las. Acredito que a única forma de conseguir o que quero na Argentina é entender o que está acontecendo. Então, onde está a Garnacha? Assim, com Adrianna montamos um projeto em Madrid, que já está no segundo ano. No primeiro, fizemos apenas um vinho, e este ano vamos fazer sete ou oito. As coisas levam tempo. A cerveja se faz em um dia, dá errado, joga fora; já o vinho é uma vez no ano, não tem mais. Então eu preciso entender bem o que acontece lá para poder fazer na Argentina.
Trouxe os clones de lá para plantar na Argentina? Sim, o que trouxe é de um vinhedo consolidado em Madrid chamado Rumbo al Norte, de uma vinícola chamada Comando G. Hoje em Catena já temos nove hectares de Garnacha.
Houve algum momento em que pensou que poderia sair de Catena? Já pensei que ia sair de Catena em 2010, 2011. Mas Nicolás, devo dizer, tem sido uma grande referência para vinhos para mim. eu não tinha grandes referências. Já tinha trabalhado em pesquisa e com o meu avô que fazia vinho, mas não tinha trabalhado de verdade. E com ele tem sido uma inspiração pessoal e profissional. E acho que o bom foi que, com Laura, crescemos juntos. Então, enfim, é uma consequência eu continuar na empresa. Aprendemos a viver juntos.
Sua vida mudou muito depois de se tornar empresário e não só enólogo? Nada. Zero. Outro dia alguém me perguntou qual é a diferença entre El Enemigo e Catena nos vinhos? Eu te digo: os lugares. “Você venderia a marca?” Sim, mas por quê? Porque eu não me importo com a marca. Não estou mais ou menos interessado. Não me importa o nome. Faço vinhos, é o que faço. Não faço marcas, faço vinhos.
Mas como consegue gerir tudo? Acredito muito em trabalho de equipe. E é isso que a família Catena me ensinou. Um por si só não faz nada. Você precisa construir equipes. E eu formo equipes. Além de ter a María (Sance, sua esposa).
Utilizamos cookies essenciais e tecnologias semelhantes de acordo com a nossa Política de Privacidade e, ao continuar navegando, você concorda com estas condições.