Redação Publicado em 14/04/2020, às 09h32 - Atualizado às 09h55
A família Steinbruch comprou a estância La Poderosa para criar cavalos, mas passou a produzir vinhos “para a família”. Só começaram a vender quando o estoque cou muito grande
No alto de uma gentil colina, sentimos a brisa constante do oceano a 30 quilômetros de distância. Estamos próximos da represa de Aguas Blancas, em Solís de Mataojo, no Uruguai, construída na década de 1940 sobre as águas do Arroyo Mataojo. Era um dos três projetos de represas do governo uruguaio para o desenvolvimento da fruticultura. E a região se tornou a maior produtora e exportadora de maçãs do país.
Convertida em parque nacional e com acesso fácil tanto de Montevidéu (pela Ruta Nacional 8), como de Punta del Este (pela RN 60), a represa é um ponto turístico frequentado pelos amantes da pesca, dos barcos e do camping. Nos anos 2000, monges budistas decidiram construir um enorme templo no local. Com doações de todo o mundo, compraram 600 hectares sobre a serra mais alta da região (400 metros de altitude) e construíram o templo Sengue Dzong (Fortaleza do Leão). Ao estilo tibetano, o templo tem seis andares e predomínio das cores laranja, verde, azul e amarelo.
Em 2004, o brasileiro Benjamin Steinbruch, empresário e criador de cavalos de corrida, também sentiu que o local era especial. O turfe é um dos esportes mais populares do Uruguai, reunindo público de quase 20 mil pessoas para assistir as corridas, que são até televisionadas. Esse ambiente levou Benjamin a visitar o país algumas vezes, em busca do local ideal para estabelecer um haras. Numa das viagens, entrou na estância La Poderosa. A propriedade estava em completo abandono, mas ele andou um pouco pelo local e decidiu “é aqui!”.
A propriedade se tornou um dos mais reputados centros de criação de cavalos de corrida do Uruguai, mas, acima de tudo, converteu-se no paraíso pessoal da família Steinbruch. Felipe Steinbruch, filho de Benjamin, conta que passava as férias em La Poderosa e que é impossível dissociar a estância de sua infância e convívio familiar. O vinho veio depois, de um desafio... Com muitos amigos portugueses, Benjamin brincou que faria um Touriga Nacional melhor que o deles...
Foi assim que, em 2008, nasceu o vinhedo com a variedade portuguesa acompanhada de Tannat, Merlot, Cabernet Sauvignon, Marselan, Alvarinho, e de uma fileira de uva de mesa, em resposta à crítica de Mendel, um dos quatro filhos de Benjamin e Carolina: “mas só tem uva de vinho, não pode ter uva de chupar?”.
Hoje os vinhos são elaborados pelo enólogo Jorge Pehar e os vinhedos manejados pelo agrônomo Dario Gonzales, com consultoria agrícola de nosso amigo Eduardo Félix, diretor agrícola da Bodega Garzon.
La Poderosa tem toda infraestrutura de um hotel de campo: quartos com decoração primorosa, sala de degustação, cozinha externa conduzida pela cozinheira Maria Inés Quintero, que combina pratos típicos uruguaios e brasileiros, além de uma patisserie de dar inveja a muitos restaurantes. Mas tudo está dedicado exclusivamente à família e a seus convidados.
O principal resultado de La Poderosa foi unir a família, e poucas coisas unem tanto quanto o vinho. Os caminhos do projeto são conduzidos a 12 mãos, por Benjamin, sua esposa Carolina e pelos filhos Victoria, Felipe, Alessandra e Mendel. Victoria trabalha na divisão de energia renovável da holding familiar e ainda se dedica ao estudo do vinho na ABS. Felipe trabalha nos investimentos em inovação do grupo e administra a criação de cavalos e a produção de vinhos e azeites de La Poderosa. Alessandra, especializada em design, atua nos rótulos e embalagens. Mendel hoje trabalha e mora em Nova York. Mas a escolha do blend a cada ano é feita democraticamente por toda a família.
Em princípio, os vinhos eram elaborados pela família e para a família. Mas, quando o número de garrafas estocadas chegou a 75 mil, foram colocadas no mercado. Jorge Pehar define bem o que acontece: “Vendemos vinho para fazer vinho”. É o reflexo de um projeto que não nasceu com objetivo comercial. O mesmo acontece ainda com os azeites, que são muito bons, mas também não são comercializados. Aliás até nos cavalos é assim, Benjamin é contra vender os potros, para não perder um vencedor, e Felipe está convencendo o pai a vender alguns cavalos, que hoje ultrapassam 130 animais, para que a estância seja autofinanciável.
A família Steinbruch comprou a estância La Poderosa para criar cavalos, mas passou a produzir vinhos “para a família”. Só começaram a vender quando o estoque ficou muito grande
A pequena vinícola conduzida por Pehar é quase um laboratório, com tanques pequenos de aço inoxidável e uma coleção de barricas de carvalho francês, esloveno e americano com passagens e tostas variadas. As experiências acontecem nos blends e também nos produtos como o varietal Touriga Nacional e o espumante de Alvarinho (surpreendente!).
Pehar tem uma paixão impressionante pelo projeto. Havia preparado com esmero a sala de degustação, que decorou com ervas e flores locais e belos pratos de queijos, também locais. Ali degustaríamos os vinhos prontos, mas, ao perceber nosso interesse, degustamos todas as barricas que quisemos. Nosso objetivo era compreender a fruta local e o efeito de cada barrica sobre cada variedade. A curiosidade de Pehar não se limita aos experimentos, ele queria genuinamente saber o que pensamos dos vinhos, mesmo quando nossas visões podiam divergir, e realmente se emociona com o seu trabalho e com o que ainda vai fazer.
Nesta visita a La Poderosa nosso anfitrião foi Felipe, que além de nos mostrar tudo, estava sempre atento a observações. Aliás, em nenhum momento recebemos um discurso promocional dos vinhos. Foi como degustar entre amigos e conversar abertamente. Não posso dizer que isso não aconteça com frequência, mas nunca experimentei isso com produtores que encontrava pela primeira vez. Ficou mais fácil compreender quando Felipe falou que um dos mantras do pai é descobrir como fazer as coisas cada vez melhor. Tanto que antes de irmos embora ele perguntou o que eu queria degustar enquanto me “entrevistaria” para tomar notas e compartilhar suas impressões com a família e com o pai, que acompanhava a visita à distância e queria saber como estavam as coisas e o que estávamos achando.
Optamos por uma (re)degustação de vinhos prontos e amostras de barricas. Assim poderíamos fazer algumas comparações e conversar não apenas sobre os vinhos, mas sobre vinho. A sala de degustação não podia ser mais bonita: um deck sobre a represa dentro da fazenda, onde, numa corrida matutina, eu havia parado para admirar uma família de lontras e muitas aves.
Já tivemos a oportunidade de degustar diversas safras de Mataojo e ano passado seu Mataojo Reserva Tannat 2013 apareceu pela primeira vez no Top 100 de ADEGA. Os vinhos estão melhores a cada safra. A compreensão dos vinhedos e do potencial de cada casta se sente na elaboração e também nos vinhedos. Algumas videiras de Cabernet Sauvignon, por exemplo, estão sendo enxertadas novamente com outras variedades. Os vinhos apontam rumo à valorização da fruta e ao uso cada vez mais parcimonioso da madeira. Exatamente como o caminho deve ser: fazer experiências, adquirir conhecimento e caminhar para a maturidade, sem nunca perder a curiosidade.