Como a filosofia da manufatura de cristais influenciou os vinhos da Norton
Por Arnaldo Grizzo Publicado em 13/09/2015, às 00h00 - Atualizado às 10h44
Ao comentar como surgiu a ideia de sua família adquirir a Bodega Norton, Michael Halstrick brinca dizendo que, durante as férias que passavam na América do Sul, bebiam tantos vinhos da empresa que pensaram ser mais fácil comprar a vinícola. A verdade é que, em 1989, o austríaco Gernot Langes-Swarovski foi um dos primeiros estrangeiros a investir na indústria do vinho da Argentina, pouco antes do boom do Malbec nos Estados Unidos e, posteriormente, no mundo.
Assim como mais de 100 anos antes o engenheiro de trens inglês Edmund James Palmer Norton havia se encantando pela região e seus vinhos e começado a vinícola, os Swarovski também se apaixonaram pelas belezas do local, assim como viram o potencial da indústria. Com muito investimento, transformaram Norton em uma das principais marcas de vinho argentinas, desbravando mercados externos. Hoje é uma das cinco maiores exportadoras do país.
Em 2015, Norton celebra 120 anos de existência e, para isso, vem promovendo eventos comemorativos em alguns de seus principais mercados. O Brasil, obviamente, está entre eles. Assim, as duas figuras mais importantes da empresa, Michael Halstrick, filho de Gernot e CEO da empresa, e Jorge Riccitelli, enólogo responsável pelos vinhos – apontado como um dos melhores do mundo por revistas especializadas –, vieram ao Brasil para conduzir uma degustação. ADEGA aproveitou a passagem deles por aqui e os entrevistou com exclusividade.
"Malbec nunca vai ser um vinho de moda. É de moda, mas vai ser um clássico um dia"
O grupo Swarovski comprou a vinícola Norton em 1989, mas quando e por que você assumiu a empresa?
Michael Halstrick (MH) – Caracterizamo-nos como visionários. Na época, Argentina talvez fosse o último lugar onde se podia fazer grandes vinhos. E hoje, sem dúvida, eles podem competir com os melhores do mundo. Meu pai tem essa visão. Mas, para que essa visão nascesse, também foi importante que um de seus filhos viesse para a Argentina e levasse adiante essa filosofia da família. Decidi me mudar para lá porque gostei do mundo do vinho. Antes, trabalhava em um banco. Apaixonei-me pelo negócio do vinho. Fomos uns dos primeiros estrangeiros que investiram lá. Havia uma forma de fazer vinho antes da década de 1990 e, daí em diante, mudou-se toda a indústria. Fomos uma empresa que tomou parte de uma grande mudança que ocorreu na Argentina, no estilo de vinho. O estilo de vinho de Jorge (Riccitelli) era inovador.
Antes de comprar Norton, seu pai já tinha uma vinícola na Áustria, não?
MH – Ele tem um escritório formal e um informal. No meio, quando vai de um para outro, passa pela vinícola. Ela faz só 2 mil garrafas. Tudo na forma ecológica, não tem rótulo, porque é para os amigos somente. Aí nasceu um pouco a paixão por produzir vinho. Também produzimos vinho em uma ilha em Veneza chamada Santa Cristina, perto de Murano. São 5 hectares de vinha. Também temos uma vinícola na China, chamada Langes. Swarovski é um grupo muito grande e está em todos os cantos do mundo. Alguém pode dizer que o vinho é um pequeno negócio, que não é importante. Mas, para a família, não é um side-business, é um negócio em que colocamos muita paixão. Sabemos que, para produzir bons vinhos, temos que ter paciência. Isso é muito importante.
Essa é a diferença das empresas familiares?
MH – Em alguns negócios de tecnologia, por exemplo, não se pode ter paciência, tem que fazer já. No caso do vinho, você precisa esperar até que as coisas boas cresçam. É também por isso que, em nossos representantes em outros países, sempre tentamos trabalhar com famílias. É uma visão de longo prazo. As famílias trabalham o tempo de forma diferente. Uma multinacional quer resultado amanhã. Uma família sabe que algumas coisas têm seus tempos. O único cuidado que se deve ter na família é que, às vezes, ela cresce mais rápido do que o negócio [risos]. E também, por isso, hoje em dia, outro capital que tem Norton são muitos vinhedos próprios, com vinhas muito velhas, plantas de 90 anos. Estas joias nos instigam muito, pois, o que uma vinícola faz de diferente da outra? Essa é a grande pergunta. A diferença é o terroir onde se tem a fonte de sua uva, é como você cuida de seu tesouro. Depois, o mais importante são as pessoas, a enologia, o trabalho em equipe, que faz com que um diamante cru possa brilhar. Isso faz a diferença.
"Uma multinacional quer resultado amanhã. Uma família sabe que algumas coisas têm seus tempos. O único cuidado que se deve ter na família é que, às vezes, ela cresce mais rápido do que o negócio [risos]"
O que sabia do mundo do vinho quando chegou?
MH – Não tinha muito conhecimento. Há uma passagem muito engraçada. Encontrei com um jornalista em um restaurante de Mendoza e ele começou a perguntar sobre Malbec. Eu sabia que havia vinho tinto e branco. O garçom então serviu um Malbec de 1982, muito premiado da Norton. Comecei a inventar. “É tinto. Tem muita força”. O garçom tirou a rolha e quando o vinho caiu na taça, começou a tremer. Houve um terremoto. Todo mundo saiu correndo do restaurante e nós dois permanecemos sentados, pois não estávamos acostumados. Aí falei: “Não disse que o vinho era muito forte” [risos].
Vocês têm uma base forte em Malbec, mas apostam em outras variedades assim como também em diferentes tipos de Malbec.
MH – A indústria de vinho cresceu muito. Com diferentes regiões. Produzimos nossas uvas nos melhores lugares junto com produtores a quem damos todo o know-how técnico, que também são fazendas antigas com contratos de longo prazo. Temos então a possibilidade de fazer vinhos das diferentes regiões. O Malbec é muito importante, estamos ganhando muitos prêmios em todo o mundo. Mas ultimamente alcançamos grandes níveis de qualidade no Cabernet Sauvignon, e não tenho dúvida de que hoje em dia podemos fazer grandes vinhos sejam Cabernet, Merlot... Mas tenho um pensamento especial sobre Malbec. Sabemos que o Cabernet vai ficar no mundo e também acho que o Malbec é outra variedade vai ficar no mundo. Ela não vai ser uma variedade de moda. É um vinho tão agradável de tomar e tem todos os atributos necessários para um grande vinho: dulçor, uma linda acidez, não é um vinho cansativo, tem a possibilidade de criar diferentes estilos. Então, nunca vai ser um vinho de moda. É de moda, mas vai ser um clássico um dia.
Mas estão investindo em outras variedades?
MH – O Cabernet, por exemplo, é muito importante. Mas não queremos um Cabernet americano, queremos um argentino. Queremos manter a autenticidade e não copiar um país com um preço diferente. Todos os nossos vinhos são autênticos argentinos e não uma cópia de outros terroirs.
“Queremos manter a autenticidade e não copiar um país com um preço diferente. Todos os nossos vinhos são autênticos argentinos e não uma cópia de outros terroirs”, afirma Michael Halstrick
"A nossa base é o Malbec, queremos potencializá-lo, não anulá-lo"
Como vê a associação de imagem do Malbec e da Argentina?
Jorge Riccitelli (JR) – A Argentina, há 15, 20 anos, sempre foi Malbec. O Malbec foi um acerto comercial nos Estados Unidos. Mas por que hoje pensamos que não somos somente Malbec? Porque todo mundo quer colocar um teto no Malbec, e ele, contudo, não tem teto. Então é preciso procurar nos terroirs. A Argentina tem muito bom clima, bom sol, as uvas maduram, não precisamos de açúcar para ter grau alcoólico. Temos um extenso território onde podemos ter coisas diferentes, mas não necessariamente precisamos ir contra o Malbec, vamos apenas aumentar a paleta para apresentar ao consumidor de vinho. A nossa base é o Malbec, queremos potencializá-lo, não anulá-lo. Mas temos os blends e todas as outras variedades.
MH – É bom que o consumidor saiba que a Argentina tem esse mundo de outros vinhos, mas tem a coluna vertebral que é o Malbec.
Como lidam com o mercado em constante evolução? As mudanças de perfil de consumidores?
MH – Com o vinho, nunca se deixa de aprender. É um desafio constante. Norton sempre está em melhora continua. A forma de crescer é sempre criticar e ver o que podemos melhorar. Hoje temos que dividir o mercado em dois: os grandes vinhos e os vinhos de consumo. Nos grandes vinhos, não vai ter muitas mudanças, pois neles se fala de terroir, da uva etc; e há outros que vão se adaptar ao mercado e ao segmento onde competem. Mas, em geral, o vinho Norton é alegre, para desfrutar em todos os segmentos. Buscamos essa alegria.
JR – Os vinhos da linha Lote são uma mudança de estilo, de elaboração, de buscar a terra, não tanto da enologia. Estamos tentando identificar os melhores terroirs que temos. Estamos trabalhando unicamente com Malbec e procedimentos, e isso trouxe coisas diferentes que só podem ser atribuídas ao terroir, ao lugar.
MH – Um dia, meu pai, no meio de uma conversa, perguntou para Jorge: “Qual a importância do vinhedo na qualidade do vinho?” Jorge respondeu: “É o mais importante, é 100%”. Meu pai replicou: “Então, para que preciso de você?” E Jorge: “Sou o único que sei. Os outros estão pesquisando” [ risos].
"O enólogo tem que ter personalidade e saber assumir riscos. Tem que apostar em algo novo. Muitos enólogos podem fazer bons vinhos, mas, para fazer algo mais, têm que apostar"
Os tintos argentinos costumam encantar pela textura de taninos. A acidez seria o desafio?
JR – Totalmente. Por isso os enólogos parecem cabras na época da colheita, pois vamos comer muitos frutos. O importante na maduração da uva não é o açúcar, mas os taninos maduros, e é preciso ter muita sensibilidade na boca e na cabeça para provar o grão que vai ser esmagado e saber que vinho vai sair na garrafa em três ou quatro anos. Estou colhendo hoje, mas estou imaginando o vinho na garrafa em quatro anos. O ponto da colheita não pode falhar.
MH – É incrível. Quando fazemos degustações, esse ponto que ele diz – quando coloco um vinho dentro da garrafa – é bastante complicado. Imaginar como vai evoluir esse vinho é impressionante. É um momento em que o enólogo está nervoso, pois, para colocar na garrafa no momento ótimo, é preciso saber.
JR – Aí entra a enologia. A arte do enólogo.
Mas como controla a acidez?
JR – É uma questão da concentração da uva. Nos grandes vinhos, não se mexe na acidez. Como consegue a acidez? Concentrando a uva. Baixando a produção.
Jorge trabalhou com Michel Rolland na Argentina. Qual a influência dele no seu trabalho?
JR – Toda. Não posso negar [risos].
MH – Ele foi o primeiro que trabalhou com Rolland na Argentina, por oito anos e de uma maneira muito próxima.
JR – A boa enologia, uva madura, sã, tratamento suave da safra, não influenciar demais enologicamente, deixar que seja só cuidar da uva. Isso é um pouco a enologia de Rolland.
MH – Há muitos enólogos no mundo, mas há diferenças entre enólogos e enólogos. Jorge tem isso. Não faz marketing de si. O enólogo tem que ter personalidade e saber assumir riscos. Tem que apostar em algo novo. Muitos enólogos podem fazer bons vinhos, mas, para fazer algo mais, têm que apostar. E Jorge tem essa adrenalina de fazer algo mais. Que é onde obviamente há um risco. Mas essa é uma forma de a empresa crescer. As diferenças estão nos detalhes. Ele é um homem de personalidade, faz tudo muito bem, e sempre busca se superar. Quando se é número 1, é preciso ficar no topo. É mais fácil ser número 2.
Há muitas discussões entre vocês?
JR – Ele é o maior crítico que temos. Degusta muito bem. A única forma de aprender é provar vinhos. Não há outra.
MH – Provar vinhos de diferentes regiões do mundo é como aprender um idioma. Para entender o que é bom e ruim, também é preciso provar o ruim.
JR – Um dia estávamos, Gernot e eu em uma moto andando em sua propriedade. Tudo era impecável, uma estrada bem arrumada, jardins, galinheiro com galinhas lindas [risos]. Resolvi fazer uma brincadeira: “Chefe, você deve viver estressado aqui, com tudo muito bonito...” Ele respondeu: “Jorge, se quer fazer coisas de qualidade, rodeie-se de qualidade”. Isso tomamos como exemplo na vinícola.