Produtor fala em entrevista para ADEGA sobre a onipresença de sua família na vitivinicultura da Toscana
Arnaldo Grizzo Publicado em 01/09/2021, às 17h00
Lamberto Frescobaldi deu entrevista exclusiva para ADEGA
Nei secoli fedele é o lema dos carabineiros italianos, a famosa Arma dei Carabinieri, uma organização do exército daquele país, de certa forma similar à nossa polícia militar. O mote significa “fiel ao longo dos séculos”.
É curioso, mas Lamberto Frescobaldi, atual presidente do grupo familiar que leva seu sobrenome e tem mais de 700 anos de história na Toscana, entre outras tantas coisas que já fez na vida, também já pertenceu ao corpo de carabineiros da Itália.
Ele acredita que essa formação lhe foi muito útil e fez questão de mostrar (em entrevista online exclusiva para ADEGA, feita de sua residência em Firenze dois dias após completar 57 anos em junho de 2020) que, em sua carteira, até hoje, juntamente com cartões de crédito e identidade, guarda, orgulhosamente, seus documentos e patentes “dell’Arma”.
E o lema de fidelidade dos carabineiros parece servir de motivo também para o grupo Frescobaldi do qual é presidente, tendo sucedido seu pai, Vittorio, hoje com 91 anos. Foi Vittorio, por sinal, que começou a pontuar o nome da família no mundo do vinho, especialmente após a joint-venture que iniciou com Robert Mondavi em 1995, criando Luce della Vite, em Montalcino.
Os Frescobaldi, que possuem títulos nobiliárquicos (Lamberto é um Marquês) e cujas primeiras atividades na Idade Média foram bancárias, são donos de diversas propriedades vitivinícolas na Toscana. Além das sete diretamente sob o “guarda-chuva” Frescobaldi (Castello Nipozzano, Castello Pomino, Tenuta Castiglioni, Tenuta Perano, Tenuta Castelgiocondo, Tenuta Ammiraglia e Rèmole), eles ainda são donos de Ornellaia, Masseto, Danzante e da já citada Luce della Vita, isso só em território toscano, sem falar da Attems, no Friuli.
Lamberto Frescobaldi já pertenceu ao corpo de carabineiros da Itália
Quantos hectares ao todo? “Gostaria de ter mais...”, brinca Lamberto. Confira sua trajetória e suas ideias sobre o vinho nessa conversa que traduz muito da essência do vinho toscano com uma visão da história e das perspectivas para o futuro.
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Na Itália, até 1996, era obrigatório o serviço militar. Só não fazia se você tinha um trabalho fora, ou algo que não lhe permitisse fazer. Fiz meus estudos, depois retornei para a Itália e tinha vários amigos que fizeram o curso de oficiais de Carabinieri. É um corpo de segurança muito estimado. Tive a possibilidade de entrar, fiz um ano em meio na Arma dei Carabinieri e me tornei oficial. Depois, prestei meu serviço no aeroporto em Roma. Era um técnico, mas algumas vezes peguei a minha pistola, pois é “melhor um processo ruim que um bom funeral”. Ao menos era isso o que diziam quando se estava em serviço. Eu era jovem, tinha 24 anos, tinha terminado de estudar. Foi uma belíssima experiência, que carrego por toda a minha vida. Foi útil, pois creio que se cresce com ordem. Mesmo hoje, como presidente da Frescobaldi, não posso fazer tudo o que quiser. É preciso ordem na vida e, às vezes, deve-se fazer coisas que não lhe agradam, porque foi estabelecido. Creio que aprender logo isso e assumir sua responsabilidade é importante.
Nos anos 1970, eu era ainda muito jovem, não me lembro muito, mas me agradava muito a parte do vinhedo, conhecer a vinha, e depois tudo o que interagia com o mundo da ciência, para tentar melhorar o que fazíamos.
A Itália era um país muito pobre nos anos 1900. Era muito populoso e não havia trabalho para todos. Era um país de poucas possibilidades. Muitos tiveram força e coragem para emigrar. Os italianos querem ter uma vida boa, mas são grandes trabalhadores. E quando foram embora, foram pobres. Eles apreciavam os produtos italianos mais simples, o vinho que custava pouco, o queijo que custava pouco, muitas vezes a cozinha italiana é simples (depois as coisas mudaram, mas a nossa tradição é simples). Nos anos 70, a Itália foi indicada como um país onde se poderia plantar vinha. A comunidade europeia disse: a Alemanha faz leite, a Espanha faz laranja, a França, grãos... A Itália o que faz? Óleo, vinho e algumas coisas pequenas. Mas nos anos 70 era ainda um país difícil. Estávamos em pleno período de terrorismo, havia os Brigate Rosse (Brigadas Vermelhas – organização de guerrilha comunista), com tantos problemas nesse sentido, depois a grande crise, com tanto vinho que precisava se transformar em álcool, e que foi incluído na gasolina. Depois, começaram a dar menos ajuda a agricultores e muitas vinhas foram arrancadas. Os agricultores pararam de cultivar, pois as fazendas eram pequenas, as pessoas ficaram velhas e os filhos foram estudar, tornaram-se engenheiros, advogados, médicos, mas não camponeses.
A Tenuta Rèmole, uma das propriedades de Frescobaldi na Toscana
Ocorreram duas safras extraordinárias, uma em 1985, que foi incrível. Algumas zonas da Toscana e do Piemonte fizeram vinhos fenomenais. Os primeiros críticos vieram e disseram: “Mamma mia, a Itália não é só produto do dia a dia, mas de qualidade”. Depois, em 1990, outra safra excepcional. Aí já era um momento em que a Itália eliminou o terrorismo, o vinho era bom e os empreendedores do norte da Europa disseram: “Bem, podemos voltar a andar por lá”. E pessoas da Suíça, Áustria, Alemanha, começaram a comprar terrenos em Chianti, e também da Inglaterra. Em Chianti, houve uma época com tantos ingleses que chegou a se falar em “Chiantishire”, pois eram muitos. Para nós, italianos, abriu-se uma porta importante para o mundo, pois muitos investidores vieram. Com eles, pessoas que eram verdadeiros técnicos, que haviam estudado, que sabiam cultivar e fazer bons vinhos começaram a assumir as empresas. Mas aí eram estes estrangeiros ricos contra nós, produtores locais, mas pobres. Eles faziam vinho bom e nós fazíamos vinho ruim... porca miséria, que história ruim, precisamos começar a abrir a cabeça.
Na época, eu estudava agricultura e meu pai me propôs: “Por que não vai estudar na América?” “Por que não? Vou, tchau, até mais”. Depois ainda me disseram que havia as “californian girls”. Mas em vez disso fui para Davis, onde as californian girls eram muito feinhas, não tinha praia, ondas, nada, só vinhedo, animais, fruta, chuva, sol... tristíssimo... [risos]. Na Califórnia, comecei a trabalhar para um famoso distribuidor de vinhos. Eu tinha 22 anos e ele me disse: “Já provou La Tour alguma vez?” “Não”. “Lafite?” “Não”. “Vinho da Argentina?” “Não”. “É uma besta?” “Sou jovem”. Então, toda quarta-feira, com seu staff, degustava os vinhos mais importantes. É aí que se compreende que há tantas coisas boas e se pode fazer melhor.
Quando voltei, primeiro fiz o Carabinieri. Depois, queria ficar nos Carabinieri, mas minha namorada (que mais tarde se tornou minha esposa) disse-me para parar com isso e ir trabalhar em Firenze. Assim, comecei com a vinha e, da vinha, passei ao vinho, que foi muito importante, pois o vinho é a transformação. Para uva se tornar vinho, não é assim banal.
Foi muito importante, pois quando um produtor encontra outro na vinícola, ele vai dizer sempre um pouquinho, mas não tudo. Em vez disso, poder fazer uma joint-venture, como fizemos como Mondavi, foi como abrir um livro e dizer tudo, contar todas as coisas do vinho, o que poderíamos fazer melhor, o que poderíamos fazer diferente, o que poderíamos provar. Mondavi tinha muito sucesso naqueles anos e nos ajudou muito, como a comprar as barricas, por exemplo. Era difícil comprar as barricas boas e, com Mondavi ,tínhamos uma via preferencial com os fornecedores. Foi um projeto belíssimo, pois, como os ingleses dizem “raise the bar”, elevamos o nível, a cada mês sempre acima. Senti muito que tenha terminado (Mondavi vendeu sua empresa para a Constelation Brands e, em 2005, Frescobaldi comprou 100% da Luce), mas o que aprendemos tentamos sempre colocar em uso e ter sempre a mente aberta. Na Itália, quando se viaja, diz-se que se pega a bagagem e deixa um espaço vazio para trazer as experiências para casa, então é preciso sempre viajar com uma bagagem meio vazia para trazer as ideias de volta.
Vinhedos da Tenuta Perano, uma das prorpriedades de Frescobaldi na Toscana
O vinho é a expressão do lugar, do território. O homem deve estar muito atento para não influenciar demasiadamente o território com seu trabalho. Há muitas coisas que o homem deve fazer atentamente para fazer um grande vinho. Mas deve fazer um trabalho pontual sempre de respeito ao território. Se fizermos um vinho que seja só bom... [pausa] Quando há uma mulher bonita, se ela só é bonita, dá um pouco de tédio. O mesmo com um homem, se ele for só belo, só forte, não é interessante, dá tédio. Você não se torna amigo de uma pessoa que é só musculo. Deve ter também um caráter, uma cabeça com quem conversar. É o mesmo com os grandes vinhos, devemos proteger a sua alma, ter uma forte identidade, por isso cada lugar onde se produz vinho é diferente. Isso é o que sempre respeitamos, pois há locais no mundo que fazem vinhos bons, mas tem alguns, poucos, que podem fazer vinhos excepcionais. E esses poucos locais custam muito, os terrenos custam caro, e ali o que é a coisa mais importante? É como fazer o vinho ou o território, que se pagou caro. Se pagou tão caro, precisa fazer com que esse território possa também ter a sua identidade no produto.
É um projeto belíssimo da minha prima, Tiziana, em que se seleciona os artistas jovens, que ainda não se tornaram tão importantes. Como sabemos, eles, quando jovens, lutam muito para crescer, e, muitas vezes, os artistas ficam ricos depois de morrer. E aqui queremos que estejam bem também quando vivos, para ajudar a se tornarem importantes. É um belo desafio. Minha prima, com um curador, escolhe três artistas para interpretar Montalcino, a Tenuta Castelgiocondo. Não colocamos muitos limites, mas pedidos para interpretar o ambiente.
Curiosamente há também uma outra ilha na América do Sul, chamada Gorgona, que também era uma prisão, que fechou nos anos 1960. Gorgona, na Toscana, é uma prisão desde 1863. Ela abriga pessoas que cometeram crimes muito graves e ficam na prisão por muitos anos. Mas um dia sairão. Isso, para algumas pessoas, é uma coisa difícil de compreender, pois, nós todos, quando vemos um criminoso, queremos, ou bater, ou colocar na prisão e jogar a chave fora. A lei não permite. Essas pessoas um dia sairão, querendo você ou não, e então lhes damos um trabalho. Quando saírem do cárcere, terão 20, 25, 40 mil euros na conta corrente e, tendo dinheiro, é muito difícil voltarem a cometer um crime. Muitas pessoas se tornam criminosas porque são pobres. E eles aprendem a trabalhar, e trabalhar é belíssimo. É a coisa mais bonita, pois ao final do mês recebe uma remuneração que diz: “Você fez bem seu trabalho, aqui está o que merece”. Lembro que, quando era garoto, ficava de babá. E quando me pagavam, não caminhava, voava de alegria com o dinheiro. Dá uma satisfação enorme comprar uma camiseta com seu dinheiro. Então, tivemos a oportunidade começar esse trabalho em agosto de 2012. Fizemos oito safras e faremos a nona este ano. O projeto é muito interessante e vinho também é bom.
Tenuta Perano, linha Chianti da vinícola Frescobaldi
Estamos vivendo um período particular e parece que o futuro mudou. Quando as coisas retornarem, esperamos que tenhamos mais consciência do ambiente, do território, de fazer coisas éticas, tudo isso... Imagino que muitos produtores, em um futuro próximo, não poderão resistir à competição do mundo. Não é mais uma competição italiana com Toscana, Piemonte, Vêneto, hoje todo o mundo produz vinhos bons, é uma competição geral. As vinícolas precisarão ser mais estruturadas para poder estar prontas para dar respostas, para mandar os vinhos para todos os lugares. O nosso trabalho será sempre mais complexo e difícil, e será importante a dimensão, ter massa crítica, ter bons colaboradores... Falamos da terra, mas a pessoa também é um componente muito importante na nossa vinícola, é como uma cadeia em que cada anel deve se encaixar para poder fazer com que um grande vinho possa chegar a uma bela mesa em qualquer lugar do mundo e dê satisfação para quem abrir a garrafa.
O mundo do vinho me agrada muito sempre e a coisa mais bonita do mundo é poder abrir uma garrafa com os amigos. E todo o ano faço um belo jantar com um pequeno grupo de amigos, sete ou oito pessoas apenas, e abrimos vinhos de todo o mundo. E fazemos uma viagem ao redor do mundo belíssima, pois o vinho traz consigo as histórias dos terroirs, de pessoas interessantes, de um mundo que não paramos nunca de descobrir, muito divertido.
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