Alguns vinhos são tão especiais que nos ensinam muito sobre tantos outros que tomamos
Arnaldo Grizzo Publicado em 17/03/2022, às 10h00
O que alguns vinhos têm de tão especial? Conheça a visão de figuras conhecidas do mundo de Baco sobre os grandes clássicos da enologia.
No esporte, quando alguém desponta, além da admiração dos fãs, atrai outra coisa: atenção dos adversários que logo procuram saber seus “segredos”. O que ele faz de diferente? Qual sua rotina de treinos? Como ele desenvolveu sua técnica? O que faz com que ele se destaque?
E assim passam a tentar recriar algo que os aproxime desse modelo, que os torne competitivos.
O mundo do vinho não é exatamente uma competição esportiva, mas podemos dizer que, em alguns momentos, temos algumas semelhanças.
Petrus é sem dúvida um dos ícones do mundo do vinho
Você pode até nunca ter provado um Romanée-Conti na vida, no entanto, se um dia tiver uma garrafa dessas em sua frente, certamente não ficará impassível (por mais sangue frio que tenha).
Por que isso ocorre?
Porque esse é um dos grandes expoentes do mundo do vinho. É como dar de cara com o papa. Você pode até não ser católico, mas certamente sabe da importância dessa figura e vai reverenciá-la de alguma forma.
No fundo, você sabe que o papa ou mesmo aquele grande atleta ou artista é uma pessoa comum, uma criança que por algumas circunstâncias da vida acabou se tornando uma referência.
Então, se pararmos para pensar, aquele vinho mítico também.
As provas comparativas são uma forma de entender o porquê de certos vinhos serem referências
Um dia, anos, décadas, talvez séculos atrás, ele era apenas um vinho de um produtor bem-intencionado que, por diversas razões, tornou-se um fenômeno.
É o que muitas vezes chamamos de ícones ou até de benchmarks.
Sim, esses vinhos aclamados, entre eles diversos grandes nomes que você certamente já ouviu falar, com o tempo, transformaram-se em pontos de referência, além, obviamente, de serem cultuados por um séquito de enófilos.
Com o tempo também, esses vinhos clássicos viram objetos de desejo escassos, caros, quase inacessíveis para uma grande parte dos apreciadores de vinho.
Mas, ainda assim, uma coisa podemos afirmar: você deveria provar alguns deles ao menos uma vez na vida. Por quê?
Primeiramente, como dissemos, os clássicos são as referências.
“Para fazer vinhos de culto, verdadeiros ícones, é preciso deixar de olhar para o umbigo e provar outras coisas, outros sabores, outras cepas, outras comidas”, já afirmou Francisco Baettig, enólogo da Errázuriz no Chile.
Tignanello é um dos grandes vinhos do mundo
Ele é o responsável por rótulos que se tornaram ícones mundiais como Viñedo Chadwick e Seña, por exemplo.
Em entrevista à ADEGA, seu “patrão”, Eduardo Chadwick disse uma vez: “Todos os anos fazemos visitas a diferentes regiões do mundo, pois se você não conhece os grandes vinhos, é impossível que faça vinho com essa qualidade”.
Visionário, ele sempre mirou alto ao produzir seus vinhos e acreditou no potencial que eles alcançaram. Tanto que, em 2004, promoveu uma degustação às cegas colocando lado a lado alguns de seus vinhos com rótulos consagrados como os Châteaux Margaux, Lafite e Latour, além dos italianos Sassicaia, Solaia e Tignanello, entre outros.
Para surpresa geral, seu Viñedo Chadwick 2000 e seu Seña 2001 foram os vencedores. Inspirado no Julgamento de Paris de 1976 – quando vinhos norte-americanos venceram clássicos franceses em provas às cegas –, Chadwick buscou reconhecimento para seus rótulos ao compará-los com algumas das principais referências mundiais.
E conseguiu. E esse tipo expediente não é raro.
Outra história (menos conhecida, mas também relevante) é a que trouxe luz aos vinhos austríacos de Kracher.
O Grand Vin de Château Latour, um ícone de Pauillac
Nos anos 1980, Alois Kracher, cansado ver seus Trockenbeerenauslese (TBA) serem relegados por distribuidores ingleses, decidiu que ia tentar uma nova forma de promoção. Comprou diversas safras de Château d’Yquem, o mais renomado vinho doce do planeta, e colocou lado a lado com seus TBA. Segundo seu filho, Gerhard (que contou essa história), o pai selecionou muito bem as safras e, dessa forma, seus vinhos impressionaram os convidados, que, então, passaram a dar atenção para os rótulos austríacos.
As provas comparativas são uma forma de entender o porquê de certos vinhos serem referências.
Em entrevista recente à ADEGA, Lamberto Frescobadi – presidente do grupo de vinícolas que leva seu sobrenome, um dos mais tradicionais da Itália, com rótulos como Ornellaia, Masseto, Luce della Vita etc. – lembrou de um episódio de quando era um jovem estudante na UC Davis nos Estados Unidos. “Comecei a trabalhar para um famoso distribuidor de vinhos. Eu tinha 22 anos e ele me disse: ‘Já provou La Tour alguma vez?’ ‘Não’. ‘Lafite?’ ‘Não’. ‘É uma besta?’ ‘Sou jovem’. Então, toda quarta-feira, com seu staff, degustava os vinhos mais importantes”. E o que ele aprendeu com isso? “É aí que se compreende que há tantas coisas boas e se pode fazer melhor”, resume.
Outra história curiosa e engraçada contou Maurizio Zanella, da Ca’ del Bosco, de Franciacorta, também em entrevista à ADEGA.
Ele lembrou de uma passagem, também de quando era jovem, em que, juntamente com outros produtores de sua região, foi fazer visitas técnicas a algumas vinícolas francesas. A primeira, coincidentemente, foi em Romanée-Conti. Ingênuo na época, sem nunca ter ouvido falar desse produtor, ele ficou admirado e diz ter gasto todo o seu dinheiro para comprar algumas poucas garrafas, sendo imediatamente censurado por seus colegas mais velhos, que acharam inadmissível aquele garoto ter adquirido, pelo valor de mais de 300 garrafas que eles costumavam vender, apenas três.
Diferentemente de seus companheiros, Zanella entendeu que ali estava a referência de vinho de qualidade que precisa adotar.
Os vinhedos da Borgonha são berços de grandes vinhos
Não é vergonha alguma para enólogos dizer que estão sempre provando rótulos do mundo todo para poder produzir um melhor vinho em suas “casas”.
Grupos de jovens enólogos chilenos e argentinos, por exemplo, costumam sempre se reunir para degustar tanto nomes consagrados de clássicas regiões do mundo, quanto todo o tipo de novidades que podem encontrar. Anos atrás, em conversa informal com Alejandro Vigil, enólogo da Catena Zapata, ele afirmou que tinha um orçamento exclusivo para adquirir os rótulos que quisesse provar – sempre com o intuito de aprender.
Enólogos como Vigil, Sebastián Zuccardi, os irmãos Michelini, na Argentina, assim como Felipe Müller, Marcelo Retamal, Francisco Baettig, no Chile, entre tantos outros que andam ajudando a dar novas cores aos vinhos sul-americanos “beberam” e ainda “bebem” de diversas fontes de referência para criar alguns dos rótulos mais inovadores.
“Há lugares que me ajudaram a entender o respeito pelo lugar e a profundidade, e também me ajudaram a entender como a interpretação de um lugar é a chave. Em Barolo e Borgonha, que são a ‘meca do lugar’, todos deveríamos comprar vinho pelo lugar, mas termino comprando vinho por produtor. Prefiro tomar um Village de um produtor e não um Grand Cru de outro, então comecei a entender que a interpretação é muito importante”, contou Sebastián Zuccardi, lembrando de suas andanças pelo mundo.
Outro ponto crucial a ser lembrado é que, quando hoje se fala de alguns padrões para determinadas variedades de uvas, a verdade é muitos deles foram estabelecidos por vinhos clássicos de determinadas regiões.
Quando citamos a potência da Cabernet Sauvignon, lembramos dos grandes Bordeaux. Quando falamos da delicadeza da Pinot Noir, certamente temos como ponto de partida vinhos célebres da Borgonha.
Os clássicos são as referências para muitos produtores
Como dissemos no início, fazendo analogia ao esporte, quando algo se destaca, torna-se a principal referência para todos. Dessa forma, mesmo quem não tem ambições de competir em patamares de preços similares aos clássicos, ainda assim busca se inspirar em aromas e sabores dessas referências.
Há alguns anos, ADEGA conversou com Philippe Sereys de Rothschild, do Château Mouton Rothschild.
Questionado sobre as comparações que sempre todos fazem com os clássicos, especialmente os bordaleses, ele discorreu: “Deve-se diferenciar vinhos que evoluem à medida que envelhecem e vinhos que são melhores quando bebidos rapidamente. Quando se compara alguns vinhos com Bordeaux jovens, digo para degustá-los novamente em 15 anos e ver o que acontece. E você deve ter uma coisa em mente quando fala em Bordeaux e Borgonha: capacidade de envelhecimento. Quando eles envelhecem, melhoram. Se você me diz: ‘Esse vinho 2005 é similar ao Mouton 2005’. Eu respondo: ‘Sim, mas vamos esperar 20, 30, 50 anos!’. Vamos ver como eles evoluem. Você deve fazer uma distinção entre boa qualidade e capacidade de envelhecimento”.
Ou seja, um vinho clássico tende a balizar os outros em sabores e aromas, mas, mais que isso, serve como benchmark para o que todos almejam alcançar não somente no presente, porém também no futuro, em termos de evolução.
Esses clássicos, como bem apontou Rothschild, são referências em todos os sentidos, da forma de produção, do estilo, da representatividade do terroir, etc., até a maturação em plenitude.
Outra história curiosa foi contada por Paul Hobbs em uma de suas últimas passagens pelo Brasil.
Ele lembrou que, um dia, em 1969, o pai apareceu com uma bebida desconhecida durante o jantar. Paul tinha apenas 16 anos. O pai serviu um pouco para que provassem. Todos adoraram, inclusive a mãe, que ficou furiosa ao saber que aquela bebida deliciosa tinha álcool.
Era um Yquem 1962. Ou seja, um clássico que o marcou eternamente.
Alguns dirão: “mas citaram degustações às cegas que jogaram por terra esse mito de que os grandes nomes são tão melhores assim”.
Sim, aromas e sabores, em determinado momento, podem até não atestar “superioridade” entre rótulos, mas uma coisa se deduz: um clássico dificilmente vai desapontar. Muitas vezes, esperamos deles muito mais do que um vinho pode entregar daí talvez a decepção de alguns que procuram, às vezes, por “sabores mágicos”.
Esquecem-se que a epifania, ou talvez a catarse, não se dá apenas pelo simples prazer gustativo. Aqui o que conta é toda a experiência envolvida, a história do produtor, a safra, o tempo de guarda da garrafa, o momento em que ela foi aberta, etc.
Sim, um clássico tem o poder de inspirar.
Como todo enófilo, você certamente quase sempre compra suas garrafas pensando em que momento e com quem poderia abri-la. Diante de marcas tradicionais e nomes consagrados, você pode até relutar em comprar (às vezes questionando valores), mas, no fundo, sabe que esses rótulos vão representar algo especial no momento em que forem abertos com as companhias que você elegeu para ele. Aquele vinho famoso pode até não valer “o quanto pesa”, mas ele vai deixar uma marca.
Portanto, se puder, invista e desfrute. No mínimo, será um aprendizado. Você não irá se arrepender.
» Receba as notícias da ADEGA diretamente no Telegram clicando aqui