Os vinhos naturais são produzido com mínima intervenção química possível, mas o tema tem gerado uma série de debates no mundo
Graham Holter Publicado em 19/03/2019, às 20h00 - Atualizado em 02/01/2023, às 11h00
A frase "vinho natural" é uma das mais controversas da indústria. Todo mundo gostaria de pensar que seus vinhos são naturais, mas alguns têm mais impressões digitais do que outros. Quase que do dia para noite, parece, isso se tornou um ponto crucial das conversas. Talvez isso seja sinal que a produção de vinho tenha chegado em uma encruzilhada, e a maneira como o mercado pensa a produção de vinho, as vendas e o consumo irá mudar radicalmente.
A controvérsia começa com a definição. Para os fundamentalistas, vinho natural é simplesmente o mosto da uva de vinhas orgânicas que fermentaram com leveduras naturais e sem intervenção de qualquer tipo. Enxofre é quase sempre banido e muitos produtores se opõem ao carvalho.
A Associação Francesa de Vinhos Naturais (AVN) se inspira em Jules Chauvet, um negociante de Beaujolais que morreu em 1989, lembrado por estabelecer uma visão de como fazer vinho o mais naturalmente possível.
Mas a definição de vinho natural do grupo ainda está aberta para interpretações. "Mesmo que a associação possa desencorajar o uso de enxofre, a exclusão dele não resume a vinificação natural", diz. Em vez disso, a associação está mais interessada na "ética global do vitivinicultor".
A maior diferença entre a AVN e outras instituições que regulam plantações orgânicas é que ela escrutina e valida tudo o que o produtor faz no vinhedo, adega, e em seus gerenciamentos de resíduos e energia.
"Estamos preocupados com muito mais do que o cultivo orgânico das vinhas. Todos podem fazer isso com a terra e ainda assim podem ter com um produto químico na garrafa", a definição continua. "Não fornecemos especificações exatas de como vinho natural deve ser feito, pois há muitas formas de criar um produto que é natural, e nossos vitivinicultores permanecem livres para cometer erros e, no processo, talvez, criar algo verdadeiramente natural e espetacular".
Na teoria, muitas pessoas aprovam ter a flexibilidade de dar uma "mãozinha" para a natureza, tanto no vinhedo quanto na vinícola. Mas sem algum tipo de esquadrinhamento do trabalho, qualquer um pode rotular seu vinho como "natural". E se ninguém está policiando o sistema, há sempre o risco que produtores inescrupulosos com um amor secreto por enxofre possam trapacear. Há certamente um incentivo financeiro para fazer isso, julgando pelo preço que alguns consumidores estão dispostos a pagar.
A Master of Wine, Isabelle Legeron, que dirige a RAW, uma das duas feiras de vinhos naturais que ocorreram em Londres em maio, está liderando os pedidos por um forma mais codificada de fazer vinhos naturais. "Se o vinho natural quer se tornar um competidor sério, é preciso haver uma definição", ela argumenta – instando a Comissão Europeia a ajudar a formular e endossar algo.
Nicolas Joly, o guru biodinâmico que gerencia o Château de la Roche aux Moines, no Loire, compartilha das preocupações de Isabelle. Vinho natural "não tem definição legal" e não é, portanto, um termo que ele escolhe usar, diz. Joly prefere restringir seu vocabulário a "orgânico" ou "biodinâmico", práticas que precisam ir ao encontro de padrões acordados e que de uma certa garantia ao consumidor. "Com vinhos naturais, não há garantias e você pode encontrar todos os tipos de situações com esses vinhos, incluindo o uso, aqui e ali, de químicos ou herbicidas. Acho que a situação deveria ser clara na base legal - do contrário o consumidor está perdido".
Paradoxalmente para um vinho que tem pouca intervenção, preços tendem a ser maiores. Quão maiores é difícil de quantificar, pois vinhos naturais existem em suas próprias esferas: há exemplos de vinhos que subitamente mudaram para a produção natural e tiveram um aumento de, digamos, 40%. Apesar disso, em um mercado como o Reino Unido, seria pouco usual encontrar um vinho natural abaixo de 12 libras - cerca de 2,5 vezes o preço médio de uma garrafa.
Por que um vinho que supostamente envolve menos intervenção custa mais? Presume-se atos mais custosos como seguros do produtor contra safras nas quais a colheita é dizimada por doença ou a fermentação dá errado, mas os produtores negam.
Em vez disso, eles argumentam, os preços refletem a pequena escala de produção e o fato de que tudo deve ser feito à mão. A economia de escala por meio da cadeia produtiva é muito menos vantajosa do que seria para vinhos feitos em maior quantidade, além disso, virtualmente, não há orçamento para marketing e certamente nenhum para descontos.
Se a produção natural pode ser comercialmente viável depende da parte da definição que você usa. "Se usa uma definição extrema, por exemplo, sem enxofre, sem levedura, orgânico ou biodinâmico no vinhedo, evidências mostram que há mercado para esses vinhos no presente momento", diz o Master of Wine Sam Harrop, o coautor, com o Dr. Jamie Goode, de "Authentic Wine". "Muitos desses vinhos parecem estar indo muito bem, atraindo preços mais altos do que produtos mais convencionais".
Se um estilo de vinificação leva o nome de "natural", isso implica que todos os outros estão fazendo vinhos "não naturais"?
Ele sente, contudo, que o público para o vinho natural é limitado. "Quantos desses vinhos caros e únicos o mercado pode suportar?", ele pergunta. "A outra questão a perguntar é: quanto tempo o mercado continuará a aceitar preços mais altos para esses vinhos, alguns dos quais, na minha opinião, são defeituosos?"
Joly acredita que "apenas combatendo doenças com produtos perigosos é a melhor maneira de ter mais doença" e meramente cria a necessidade de mais interferência manual na vinícola. Ele argumenta que trabalhar biodinamicamente pode ser viável, se o vinhateiro está preparado a se dedicar e ter grande interesse em "forças da vida". Ele diz que, "em 30 anos de viticultura biodinâmica, uma vez perdi 40% da minha colheita - e foi culpa minha".
A maioria dos observadores, incluindo apoiadores do movimento dos vinhos naturais, duvidam que vinhos de massa possam ser produzidos com métodos totalmente naturais. Porém, isso não significa que grandes produtores não estejam explorando essas possibilidades para seguir esse caminho pelo menos com alguns de seus produtos.
O enólogo do Gruppo Italiano Vini (GIV), Christian Scrinzi, vê a produção natural, em todas as suas interpretações, como uma "grande oportunidade". Desde 2004, a companhia, uma das maiores da Itália, tem experimentado com esses vinhos, que são feitos com redução drástica de intervenção no vinhedo e com mínima na vinícola. "Viticultura de precisão" está tornando GIV menos confiante nos químicos, diz Scrinzi.
Alguns vinhos, desde 2009, têm sido produzidos em pequenos lotes sem a adição de enxofre, apesar de esse detalhe até então não ter feito parte do marketing desses vinhos. Scrinzi admite que pode ser arriscado tentar ser totalmente orgânico e não intervencionista em uma safra difícil, mas ele diz que ter os protocolos certos protegerá produtores de todos os piores efeitos das doenças ou do mau tempo. E como os consumidores estão se acostumando à ideia de vinhos mais naturais, ele sugere que mais eles tolerarão e esperarão variações de ano para ano.
Isabelle Legeron admite que muitos produtores naturais "apenas pincelam, pois não necessariamente vendem seus vinhos por dinheiro suficiente ou não produzem o suficiente em suas terras". Ela diz que alguns sacrificarão suas colheitas se uma safra for ruim, enquanto outros serão menos "nobres" e recorrerão a processos químicos. "Obviamente há pessoas que se dizem naturais e estou certa de que usam produtos ocasionais", diz ela.
"Mas, em geral, isso é parte do seu modo de vida. Não é apenas uma forma de fazer vinho". Ela diz que produtores perguntaram se podiam exibir na RAW mesmo se eles admitissem que "'em 2011 tivemos que usar esse e aquele produto - ainda podemos trazê-los para a RAW?' Um produtor coloca apenas um aditivo - células mortas de leveduras -, pois não tem nitrogênio suficiente em seu solo, do contrário teria uma fermentação travada. Ele foi muito aberto e sereno sobre isso".
O mercado deve abraçar práticas sustentáveis e um mínimo de intervenção, desde que isso ajude a produzir vinhos melhores
A indústria como um todo vai se mover na direção de uma vinicultura mais natural? No momento, há reticência de partes do mercado para se engajar na conversão - não só porque eles não aderem aos princípios, mas porque isso representa um problema de marketing. Se uma percentagem de vinhos feitos e vendidos são rotulados como "naturais", onde estão os restantes?
"Em 10 anos, no meu futuro ideal, vamos olhar para o vinho natural como uma dádiva: isso é como o vinho é e qualquer coisa que seja muito mais manipulada é outra coisa", diz Isabelle. Consumidores estão, talvez pela primeira vez, começando a seriamente questionar o que vai dentro do vinho que bebem, assim como milhões já fazem com a comida. "Rotulagem de ingredientes estará a caminho se já não aconteceu", ela prevê.
Sam Harrop acredita que o mercado deve abraçar práticas sustentáveis e um mínimo de intervenção, desde que isso ajude a produzir vinhos melhores e não sirva apenas em sua própria causa.
"Há produtores nessa categoria hoje que podem ter um desempenho melhor se eles considerarem intervir um pouco mais de vez em quando", ele sugere, apesar de apontar que "não estou dizendo que esses produtores todos precisam abraçar a inoculação, uso de enxofre, filtração etc como padrões". Aqueles que seguem os extremos da agenda natural podem ajudar a melhorar a qualidade da vitivinicultura em geral, mas eles não devem estar acima do aprendizado com aqueles que são menos dogmáticos, ele diz.
Fruta madura apresenta problemas com alto potencial alcoólico e pH. Defeitos de vinificação como Brettanomyces, mercaptano e ácidos voláteis também precisam ser dirigidos, naturalmente ou por outros meios. "O movimento do vinho natural derrubou os portões da festa", diz Harrop. "Agora é hora deles começarem a fazer um esforço para se unir e se divertir. Acredito que eles ganharão mais amigos se tiverem um apelo menos evangelista. Ouço suas histórias e gosto, mas não todas as amostras me animam a confiar que essa é a única maneira de trabalhar".