Conheça as diferentes facetas do Malbec, a variedade mais conhecida da Argentina
Arnaldo Grizzo Publicado em 17/10/2021, às 10h00 - Atualizado em 01/07/2024, às 10h00
No início do boom da Malbec no mundo, no começo dos anos 2000, a vertente que ficou mais famosa foi a de um vinho generoso, muito frutado e com um floral chamativo, boa estrutura, com taninos presentes e aveludados, e muitas vezes um toque de dulçor final, muito devido ao teor alcoólico.
Esse perfil “genérico” ficou marcado na cabeça das pessoas e questionar se havia algo “além disso” talvez não fosse uma pergunta tão descabida, mas certamente perturbava quem sabia que a variedade não se resumia a isso.
"Todos me perguntavam: 'O que vem depois do Malbec na Argentina?' E eu ficava indignada."
Em entrevista recente à ADEGA, Laura Catena “desabafou” dessa forma, lembrando-se de quando os críticos lhe questionavam se havia algo além da Malbec em seu país, como se a variedade não fosse suficientemente interessante. Sua indignação tinha razão de ser, pois, apesar de ser uma casta muito tradicional na Argentina, ela ainda estava sendo “descoberta”.
Com o tempo, Catena e outros tantos produtores comprovaram que a casta “ia além”. “
O que vem depois da Malbec? Mais Malbec”, definiu Santiago Achaval, da vinícola Matervini, durante a apresentação do Descorchados 2021 no Brasil, em que Patricio Tapia organizou uma palestra com o tema “As mil faces da Malbec”.
Na visão de Achaval, assim como na de Tapia e tantos outros enólogos, a casta é, sim, capaz de traduzir os mais distintos terroirs de Mendoza, dando um amplo leque de possibilidades que fogem de qualquer generalização.
Para se ter ideia, Tapia fez uma seleção de mais de 20 vinhos feitos com Malbec de diferentes regiões da Argentina, mas especialmente Mendoza e suas sub-regiões, para mostrar o quão diferentes eles podem ser dependendo de seu lugar de origem e estilo de vinificação.
Facilmente, a ideia de uma variedade “monotemática” cai por terra e revela que ainda há muito para ser feito com uma casta que se identifica tanto com o terroir argentino. Sendo assim, vamos dar um panorama resumido e “genérico” do tipo de vinhos que se pode encontrar em algumas das principais regiões, assim como uma seleção de rótulos para você descobrir como a Malbec pode ser multifacetada. Confira abaixo as áreas e alguns dos vinhos. Se quiser conhecer mais rótulos, clique aqui e veja os mais bem pontuados das melhores importadoras do Brasil.
O estilo de Malbec voluptuoso, generoso, cálido, que marcou a visão de muitos sobre a cepa veio de onde os argentinos chamam de Primeira Zona de Mendoza, que são as regiões mais próximas da cidade – em Luján de Cuyo e Maipú. Após anos e anos de desenvolvimento, não se pode dizer que o Malbec daí continue tendo o mesmo perfil, apesar de alguns ainda preservarem algumas características “amáveis”, especialmente de dulçor.
Mas mesmo aí há pequenos distritos que revelam diferenças importantes entre si, como Lunlunta, Las Compuertas, Perdriel, Agrelo etc. Vejamos:
Agrelo, em Luján de Cuyo, e Lunlunta, em Maipú, são duas áreas clássicas de onde surgiram os primeiros Malbec exportados. Sua essência são vinhos suculentos, de muita madurez, com taninos doces e muita fruta. Mas, cada vez mais, especialmente nas partes mais altas, o que tem se visto é a produção de Malbec com mais nervo e tensão.
Ainda em Luján, tem-se Las Compuertas e Vistalba, distritos localizados na parte mais alta da bacia do rio Mendoza, ou seja, a mais fria, com seus Malbecs mostrando frutas mais negras do que vermelhas e também toques herbáceos. Um fator importante é a quantidade de vinhas velhas, que dão outra dimensão ao vinho. “Com os vinhedos antigos se consegue um equilíbrio muito bonito entre a maturação e a complexidade, com um pouco de generosidade. Trabalhamos as datas de colheita para combinar concentração de madurez com frescor”, aponta Santiago Mayorga, da Nieto Senetiner, que possui vinhedos plantados desde 1900 na região.
Situação similar se observa em Perdriel, outro distrito histórico numa parte mais alta, cujos vinhos tendem a combinar essa versão mais suculenta da fruta com taninos mais firmes e não tão doces.
Vinhedos antigos e técnicas “tradicionais” também marcam alguns vinhos do distrito de Mayor Drummond, por exemplo.
“Temos um vinhedo plantado em 1910, que, além dessa carga de frutas vermelhas, dá a profundidade de fruta que é tão característica da Primeira Zona. É um tipo de solo muito argiloso com camadas de areia que ajudam a concentrar ainda mais a estrutura”, diz Iduna Weinert, da vinícola Weinert, que preza pelos longos períodos de envelhecimento, criando vinhos bem singulares.
Já faz algum tempo que o Vale de Uco vem se revelando a principal fonte de alguns dos melhores vinhos argentinos e também dos principais “estudos” feitos com a Malbec em diferentes zonas. Os diferentes distritos estão sendo tratados quase como os “Village” da Borgonha, e mostram que essa variedade tem potencial para entregar características diversas.
Por isso, cada vez mais surgem estudos para delimitar indicações geográficas na área, que já tem as já consagradas Paraje Altamira, Tupungato, Tunuyán, San Pablo, Los Chacayes, Pampa El Cepillo, etc., além de Gualtallary em processo de aprovação, por exemplo.
Uma das mais faladas, Paraje Altamira, no distrito de La Consulta, departamento de San Carlos, muitas vezes é ligada a Malbecs delicados, contudo, notas de ervas e flores, e as frutas vermelhas suculentas, em uma textura tensa, tendem a mostrar melhor o perfil da região.
“Aqui temos uma parede tânica devido aos solos que geram essa estrutura potente, e é um vinho com menos instâncias aromáticas, um pouco mais tímido que os vinhos de Gualtallary, por exemplo”, aponta o enólogo Sebastián Zuccardi, que produz grandes vinhos nas mais diversas regiões do Uco.
“O frescor da acidez natural acompanha muito bem os taninos sedosos dos Malbec de Altamira e isso é acompanhado muito bem com o perfil aromático – que é muito diferente do que se vê em Los Chacayes, por exemplo. Altamira é dominado por fruta vermelha e não tanto por fruta negra, e também um perfil floral característico”, diz Juan Pablo Murgia, da vinícola Argento.
Ainda em San Carlos, La Consulta é um dos setores mais quentes do Uco e isso acaba se traduzindo muitas vezes em vinhos mais encorpados, densos e de forte presença tânica, mas também sem deixar de lado os aromas herbáceos e florais de montanha.
E já que se falou da comparação com Gualtallary – em Tupungato –, mais ao norte e mais alto que Altamira, Sebastián Zuccardi afirma que os vinhos da região vão “para um lado mais selvagem”. “Isso tem muito a ver com a vegetação nativa que rodeia os vinhedos, ou seja, sempre aparecem as ervas, esse frescor, e depois na boca, devido a uma camada de carbonato de cálcio, aporta-se textura”, aponta.
Mas tampouco Gualtallary pode ser resumido de forma simples. Noelia Juri, da Zorzal, diz que divide a região em cinco partes, vinificando parcelas únicas, cada uma trazendo aportes diferentes para o vinho. Essa visão é similar à de Catena, que vem estudando seu mítico vinhedo Adriana há muito tempo, separando-os em diversas parcelas. O enólogo Alejandro Vigil seleciona três delas, muito características, para dar origem a três Malbecs distintos. Pode-se dizer que o trabalho nesse vinhedo foi o que abriu as portas para a experimentação que temos hoje no Uco.
Ainda mais ao norte, também em Tupungato, há outro distrito importante que é El Peral, um local com muita história e vinhas antigas, mais fresco, gerando Malbecs também refrescantes. “É uma região de transição no Uco entre as de solos mais férteis e as de viticultura de montanha, um lugar muito frio, com uma maturação mais lenta, o que faz com que os vinhos sejam menos intensos em cor e em frutas para dar lugar à textura e presença de boca com acidez de flores e perfume mais delicado”, afirma Germán Masera, da vinícola Escala Humana.
Outra comparação feita a Altamira foi com Los Chacayes, este um distrito de Tunuyán, mais ao centro do vale. Os solos pedregosos geralmente dão vinhos tensos e vibrantes. “Dentro do vale de Uco, Los Chacayes é uma região relativamente nova e diria que entre as características dos Malbec não está a cremosidade, mas sim a rugosidade”, diz Silvio Alberto, da Bodegas Bianchi, em consonância ao que pensa Pablo Gomez, da Mosquita Muerta: “Há um perfil aromático muito complexo, que vai pelas notas especiadas e frutas como framboesa, ameixas, de um clima frio que permite conseguir esse tipo de madurez”.
Para Gustavo Hörmann, da vinícola Kaiken, é difícil generalizar Los Chacayes devido à sua área bastante ampla, sendo que geralmente se divide, pelo menos, em três trechos com geologia bastante distinta. “Ainda assim, segue sendo um vinho de perfil mais selvagem”, diz.
Apesar de distante da cidade de Mendoza, San Rafael fica bem no coração da província mendocina e sempre foi caracterizado por vinhos com sabores maduros e doces, suculentos e frutados, mas cada vez mais tem apresentado versões que se distanciam disso e mostram um caráter local mais interessante.
“San Rafael está localizado ao redor de 800 metros acima do nível do mar, é uma região grande e pouco difundida. Seus solos são heterogêneos e temos estudado muito cada parcela. Geralmente vemos um Malbec tipicamente frutado, com frutas negras, notas de figo, e frutas vermelhas, tipo ameixa, e também notas especiadas delicadas, que distinguem o terroir, com taninos naturalmente equilibrados. Como os taninos são doces, para nós é importante o frescor, o equilíbrio entre a madurez e a acidez, para obter um vinho suculento, mas fresco, equilibrado com sua carga tânica amável”, conta Sergio Pomar, da Bodegas Bianchi.
Locais mais afastados de Mendoza, tanto ao sul quanto ao norte, também têm mostrado capacidade de gerar Malbecs de diferentes estilos.
Ao norte, áreas como Cafayate também têm chamado a atenção graças a projetos específicos que visam entender os aportes dos diferentes tipos de solos locais. Até então, os vinhos sempre foram caracterizados por serem muito generosos, concentrados e com muito álcool, devido ao sol intenso do lugar. Mas o projeto Matervini, de Santiago Achaval, por exemplo, tem buscado o que ele chama de solos antigos, que não tenham sofrido processos aluviais – o que, na visão do enólogo, acaba por misturar diversos tipos de materiais geológicos.
Assim, procura locais mais altos, em que ele, com o tempo, compreendeu que bastava baixar os rendimentos para poder alcançar a maturação ideal que lhe fornecia a complexidade necessária sem que houvesse tons verdes indesejáveis na fruta. “Salta, Cafayate, têm ainda muito para dar, com material para décadas e décadas de estudo”, aponta Achaval.
“Quando comecei, queria dar outra visão para esta zona”, garante Francisco Lavaque, da Valisto.
Seus vinhos interpretam as alturas extremas e o deserto de Cafayate de outra forma que não com vinhos generosos. O jovem enólogo garante que “depois do Malbec, o que temos são os Malbec de lugares, com a interpretação dos locais”.
Ou seja, o que estamos vendo agora é apenas uma pequena parte do que os argentinos estão elaborando com as descobertas e estudos que vêm sendo feitos em cada uma das regiões. Aos poucos, a Malbec comprova seu potencial para expressar os diferentes terroirs, refutando a ideia de ser monotemática.
Por sua vez, quando se pensa nos Malbec da Patagônia, os melhores exemplares costumam vir de Río Negro, uma província localizada no limite norte da Patagônia, e principalmente de vinhas velhas, que dão tintos suculentos, com taninos aveludados e de grãos finos, com perfil polido e de maior sensação de madurez e de dulçor, quando comparados aos exemplares mais frescos de Uco.