Livro “De Re Rustica” é do escritor Lucius Iunius Moderatus Columella
Arnaldo Grizzo Publicado em 20/11/2018, às 20h00
A domesticação da vinha e a produção do vinho são ancestrais. Estão entre as primeiras atividades conhecidas e documentadas do homem. Milênios se passaram desde que descobrimos como produzir vinho, as tecnologias avançaram, mas, cada vez mais, vemos uma retomada da simplicidade das técnicas antigas nessa indústria. O vinho de hoje não é o mesmo produto consumido na antiguidade clássica, porém, suas bases continuam quase as mesmas.
Para quem duvida, uma boa referência é o livro “De Re Rustica” (“Da Agricultura”) de Lucius Iunius Moderatus Columella, considerado uma das principais obras sobre cultivo de plantas e animais da época romana. Mais especificamente, seu livro, dividido em 12 capítulos, traz uma ampla descrição sobre detalhes da vitivinicultura de seu tempo, desde a maneira como a vinha deve ser plantada, passando pela seleção dos frutos maduros, até como o vinho deve ser feito e conservado. Ele enumera princípios e técnicas usadas por seus contemporâneos, e muitos deles perduram até os nossos dias.
Columella nasceu em Cádiz, na Espanha, no século I d.C. Ele teria vivido durante o reinado do famoso imperador Nero. Deduz-se que sua mais famosa obra foi escrita entre os anos 60 e 70 do primeiro século. Acredita-se ainda que ele tinha diversas propriedades ao redor de Roma e, portanto, seus escritos seriam baseados em experiências próprias.
No terceiro livro de “De Re Rustica”, Columella detalha diversos aspectos da viticultura, como a seleção de solos e variedades de uvas, formas de preparar a videira, poda etc. Apesar de os franceses assumirem para si a ideia de terroir, o escritor romano já definia essa concepção falando sobre a interação entre o solo, as variedades, o clima e os métodos de plantio, como no trecho abaixo:
“O sábio fazendeiro terá descoberto, por teste, que o tipo de vinha apropriada para áreas planas é aquele que resiste a névoas e geadas sem ferimentos; para uma encosta, um que resiste à seca e ao vento. Ele atribuirá à terra gorda e fértil uma videira que é delgada e não muito produtiva por natureza; para terra magra, uma videira prolífica; para terra pesada, uma videira vigorosa que gera muita madeira e folhagem; para amplo e rico solo, que tem poucas gemas. Ele saberá que não é apropriado colocar em um lugar úmido uma videira com frutas de casca fina e uvas extraordinariamente grandes, mas uma cujo fruto seja de casca dura, pequena e cheia de sementes”.
Columella reconhece que a seleção da variedade exata para cada tipo de solo é essencial e as mudanças podem “descaracterizar” essas uvas. “Todos os países e quase todos os distritos desses países têm seus tipos peculiares de videiras, que eles designam de acordo com sua própria moda; algumas cepas também mudaram seus nomes de acordo com os lugares onde são cultivadas; e alguns, já dito, afastaram-se tanto de seu caráter peculiar, através de uma mudança de lugar, a ponto de serem irreconhecíveis”. O que seria isso senão a ideia do terroir e de que cada interação entre solo, clima e uva é único?
“O solo deve ser mais quente do que frio, mais seco que úmido, mais macio do que compacto”, afirma Columella, quando indica o tipo de local para o cultivo da vinha. Aqui, ele diz estar seguindo o que Julius Graecinus, um general romano, já havia constatado. Em um ponto diz: “o solo argiloso é considerado útil para a videira: mas, por si só, a argila que os ceramistas usam é a mais hostil; e não menos que o faminto cascalho”.
Logo em seguida, ele também cita outros autores que falam sobre a exposição solar ideal dos vinhedos. Aqui ele diz ser contra o que Virgílio prega: “Não incline seus vinhedos em direção ao sol poente”. Ele conta ainda que Demócrito e Mago favorecem a exposição “setentrional, porque acham que os vinhedos expostos a ele se tornam os mais produtivos”, embora não apresentem a melhor qualidade em seus vinhos. Segundo Columella, “parece melhor orientar, em geral, que as vinhas tenham, em regiões frias, uma exposição meridional (sul), e que, em regiões quentes, elas fiquem face o leste; sob condição, no entanto, de que não sejam assoladas pelos ventos do sul e do sudeste”.
Sobre a época do plantio, Columella aponta que “está devidamente estabelecido na primavera ou no outono; preferencialmente na primavera, se o tempo estiver chuvoso ou frio, ou se o terreno for gordo ou liso e molhado; no outono, por outro lado, se o clima é seco ou quente, se é uma planície pobre e seca ou uma colina íngreme”. Para ele, o plantio deve ser “feito preferencialmente em terra preparada, bem limpa, gradeada e nivelada, deixando 1,5 metro entre as fileiras em terreno seco e 1,8 metro solo médio. Mas em terra firme intervalos de 2 metros devem ser permitidos, de modo a deixar um maior espaço de terreno aberto sobre o qual os numerosos e longos ramos possam se espalhar”.
Uma das principais preocupações de Columella era com a separação entre as variedades de uva. Ele acreditava que um vinhedo em que várias castas diferentes estavam plantadas dava mais trabalho ao agricultor e resultados piores no vinho. “Não tenho dúvidas de que as vinhas devem ser separadas de acordo com suas espécies e colocadas em seus lotes adequados, e marcadas por caminhos e linhas divisórias”, diz, mas logo em seguida aponta: “Não que eu mesmo tenha conseguido obter isso em minha casa, ou que qualquer um daqueles antes de mim tenha conseguido isso. Pois esta é a tarefa mais difícil do agricultor, porque requer o máximo cuidado na seleção de plantas e, ao separá-las, há necessidade de sorte combinada com a sabedoria”.
Mas ele especifica o porquê de sua preferência pela separação das variedades. “Quando vinhas de diferentes tipos amadurecem ao mesmo tempo, o sabor do melhor tipo é estragado pelo pior, e o sabor de muitos, quando misturado em um, torna-se intolerante com a idade. E assim a necessidade obriga o agricultor a comercializar seu vinho quando ele é novo, embora teria um preço melhor se a venda pudesse ser adiada por um ano, ou pelo menos até o verão”. Aqui já se nota um entendimento que os sabores do vinho se tornam melhores com um tempo mínimo de guarda na adega antes de ir para o mercado.
Columella continua suas observações sobre a mistura de variedades com um conselho: “A distribuição ordenada das variedades é uma grande vantagem; e, se você não puder efetuar tal arranjo, o segundo melhor método é não plantar videiras de diferentes tipos, exceto aquelas que têm um sabor similar e produzem frutos que atingem a maturidade ao mesmo tempo”.
No quarto capítulo, Columella detalha as formas como e quando as vinhas devem ser conduzidas, podadas (chega a falar sobre o formato das facas usadas na poda da vinha), enxertadas e colhidas. Ele cita até mesmo questões de rendimento por planta e idade dos vinhedos, o que determinaria a qualidade dos vinhos. Comenta ainda a altura das treliças como fator importante no sabor do vinho: “A altura adequada para uma videira é de 1,5 metro; e não há dúvida de que a videira produz vinho de melhor sabor em relação à altura”.
Sobre a colheita, Columella revela que muitos viticultores avaliam a maturidade das uvas provando-as, mas ele tende a recomendar que o ponto de maturação seja verificado pela cor das sementes, método que até hoje é usado por enólogos. O autor romano confirma ainda a importância da higiene das adegas para receber as uvas, incentivando a fumigação. Ele ainda fala sobre ferver o mosto para ajudar a preservar o vinho (antecipando a pasteurização?). No entanto, ele aponta que os melhores vinhos não deveriam levar conservantes: “Os vinhos de maior excelência dão mais prazer por sua qualidade natural”.
Diversas referências à vinha e ao vinho no trabalho do Columella ainda se mostram atuais e isso definitivamente revela o quanto a vitivinicultura se baseia em tradições ancestrais e o quanto o vinho depende delas, mesmo tendo se transformado ao longo do tempo. E, por fim, uma máxima do autor romano também continua atual: “Acredite na minha experiência, Silvinus [seu discípulo], que um vinhedo bem plantado, de boa espécie, e sob os cuidados de um bom viticultor, nunca deixou de recompensá-lo com grande interesse”.