Pratos típicos da estação mais quente do ano para colocar lado a lado com diferentes estilos de vinho
Carlos Cordeiro - Cwp Publicado em 19/01/2019, às 13h00 - Atualizado às 13h02
Quantas vezes já nos deparamos com uma combinação realmente desagradável entre vinho e comida? Uma, duas, nenhuma? A verdade é que existem bem poucas combinações que fariam os convidados fugirem à francesa do jantar. A grande maioria das harmonizações será aceitável. Contudo, o verdadeiro apreciador de vinhos não está em busca do que é simplesmente aceitável, mas, sim, do que há de melhor. E isso é possível com alguma teoria e muita prática.
É pouco útil e prático, talvez apenas cultural, a informação de que o foie gras de Duperier ou de Eduardo Souza (dois famosos produtores desta iguaria) faz uma combinação estonteante com o Château d'Yquem 1990. Em primeiro lugar, porque poucos de nós teremos esse privilégio, mas, principalmente, porque é necessário compreender os fundamentos que lastreiam essa combinação maravilhosa para que se tenha a possibilidade de reproduzi-la em outras tantas dimensões.
O que se pretende aqui é compartilhar alguns fundamentos teóricos e estratégias vencedoras no processo de harmonização e, ao mesmo tempo, propor e avaliar harmonizações. Como estamos em pleno verão, nada melhor do que começarmos com um foco centrado na acidez.
Acidez é sinônimo de refrescância, ou seja, tem tudo a ver com os dias quentes que enfrentamos nessa época. Quem nunca se deliciou com uma limonada na beira da praia, ou mesmo uma caipirinha? E quando pensamos em acidez nos vinhos, imediatamente nos vêm à mente os brancos, muito embora a acidez esteja presente também em quase todos os tintos, em maior ou menor graduação.
A acidez provoca maior salivação na boca, aumentando a percepção dos sabores. No vinho, ela reduz a intensidade sensorial do corpo e a sensação de acidez da comida, realçando os sabores doces e frutados. Portanto, para acompanhar um prato ácido, o vinho também deve ter acidez elevada. Por outro lado, a acidez do vinho consegue enfrentar a gordura dos alimentos sem alterar os sabores de parte a parte, "limpando" o palato para a próxima garfada.
Queremos aqui propor harmonizações de vinhos acessíveis com pratos que podem ser reproduzidos em casa ou facilmente encontrados em restaurantes, para que possamos, juntos, passar da teoria à prática.
Selecionamos cinco vinhos ligados ao verão e, portanto, com o traço comum de possuírem acidez elevada.
Cave Geisse Brut (R$ 49) - produzido em Pinto Bandeira, uma das regiões mais altas (e, portanto, mais frias) do Vale dos Vinhedos (RS), pelo método tradicional. Utiliza as uvas Chardonnay e Pinot Noir e conserva excelente nível de acidez e refrescância, com perlage fino e persistente, capaz de enfrentar tanto os pratos mais ácidos quanto os ricos em gordura;
Christian Moreau Père & Fils Chablis 2008 (R$ 90) - no olfato oferece um ótimo equilíbrio entre as frutas cítricas, sobretudo limão e grapefruit, maçãs, nectarinas e, até mesmo, melão.
No palato, é extremamente refrescante e persistente, com acidez plena e vibrante, trazendo aquele esperado pó de giz ou calcário típico de Chablis que nos remete imediatamente ao mar;
Casas del Bosque Sauvignon Blanc Grand Reserva 2008 (R$ 105) - em um primeiro momento oferece bela expressão de frutas tropicais (maracujá) e cítricas (grapefruit), a seguir aparecem as notas verdes típicas da Sauvignon Blanc, no caso representadas por aromas de ervas frescas, e finalmente uma mineralidade. Os 20% do vinho que permaneceram em carvalho por três meses não reduziram sua acidez e refrescância, e ainda adicionaram-lhe alguma complexidade;
Muscadet Sèvre et Maine sur Lie Royal Oyster 2006 Marc Brédif (US$ 49) - produzido na região do Vale do Loire mais próxima do Oceano Atlântico com a uva quase neutra Melon de Bourgone, o vinho permanece "sur lie" (sobre a borra), processo que lhe acrescenta complexidade e textura. É um vinho seco, com acidez pronunciada, e a proximidade da costa adiciona certa salinidade aos seus sabores, criando condições perfeitas para harmonização com frutos do mar;
Pazo de Señoráns 2008 Albariño (US$ 59) - trata-se de mais um vinho "costeiro". Produzido nas Rias Baixas (região da Galícia no Noroeste da Espanha) junto ao Oceano Atlântico, o vinho é fermentado em tanques de aço, envelhecido "sur lie" e ainda passa pelo processo de batonnage. O resultado é um suco leve e dourado com sabores cítricos, algum pêssego e damasco no nariz; e bastante mineralidade. Na boca, apresenta uma acidez expressiva e sabores de frutas cítricas e tropicais.
Os pratos elaborados também evocam a estação mais quente do ano e foram selecionados de forma a colocar à prova as características dos vinhos, já que alguns possuem acidez elevada, como o ceviche, as ostras e o queijo de cabra, e outros são mais ricos, como a lagosta, o risoto e os mexilhões, e, por fim, ainda há alguma doçura na romã e na própria lagosta.
As receitas utilizadas foram:
- Lagosta grelhada com manteiga de limão
- Ostras cruas
- Salada de rúcula e agrião com queijo de cabra temperado com ervas e vinagrete de romã
- Risoto de camarão com queijo de cabra
- Mariscos provençais
- Ceviche de garoupa
O espumante escolhido foi muito bem com as ostras, mostrando que não precisamos esperar uma ocasião especial para tomarmos um espumante. Ele pode ser levado para a beira da praia ou da piscina e acompanhar muito bem um prato simples e refrescante como ostras cruas.
Por outro lado, a acidez do vinho enfrentou de cabeça erguida a gordura do risoto, ainda que o trabalho tenha sido facilitado pela substituição do parmesão pelo queijo de cabra na finalização do prato. Mas o grande desemdesempenho foi diante da lagosta. Apesar do ingrediente sofisticado, sua preparação simples fez dele um prato perfeito para o verão, quando não queremos ficar horas na frente do fogão. A manteiga de limão destacou a leve doçura da carne da lagosta, grelhada por pouco tempo para evitar que ficasse dura ou borrachuda. Juntos se tornaram um, indivisíveis.
O grande momento do Chablis foi diante das ostras. A ampla acidez e a mineralidade calcária do vinho praticamente reproduziram os sabores da ostra, temperada apenas com gotas de limão. Não abaixou a cabeça diante dos mariscos, do ceviche, do queijo de cabra e da lagosta.
O Muscadet foi o vinho menos ácido da amostra (isso não significa que a acidez era baixa), mas isso não impediu que tivesse bela performance diante do ceviche, da salada e até mesmo do risoto. Por ser cultivado em uma região muito próxima do Atlântico, não foi surpresa que se desse muito bem também com as ostras. Porém, diante dos mexilhões, brilhou. A simplicidade foi a base do sucesso. Os mexilhões foram cozidos em vinho branco, com um pouco de cebola, alho, manteiga e salsinha.
O Albariño foi o vinho mais versátil dos cinco. Cresceu e fez crescer em todas as combinações. Com traços tanto tropicais como cítricos e elevada acidez, o vinho, perfeitamente equilibrado, domou a acidez das ostras e do ceviche, o amargor da rúcula e a gordura do risoto e da lagosta. Em combinação com a lagosta, foi perfeito sem reproduzir as mesmas características da harmonização lagosta/espumante, em uma clara demonstração de que um prato pode ser perfeito com mais de um vinho e vice-versa.
O Sauvignon Blanc foi muito bem com a lagosta e com o risoto, mas deixou sua marca diante da salada e também do ceviche. Apesar de bastante diferentes, os dois pratos possuíam algumas características comuns: elevada acidez - pelo limão da marinada do ceviche e o queijo de cabra da salada - e presença de ervas - salsinha e coentro no ceviche, e tomilho, orégano fresco e salsinha no tempero do queijo de cabra.
As combinações foram perfeitas, pois o vinho ecoava as seguintes características: mineral, herbáceo e cítrico no nariz e com acidez pronunciada no palato. O vinagrete de romã da salada trouxe um toque diferente ao prato, que foi destacado pela acidez do vinho, trazendo à tona um leve adocicado. A acidez do queijo de cabra balanceou o amargor da rúcula e do agrião e foi atenuada pelo azeite de ervas que o temperou. Quanto ao ceviche, a acidez e as ervas foram realçadas, enquanto a garoupa proporcionou a estrutura física para o prato. Um Sauvignon Blanc sem madeira e com mineralidade ainda mais pronunciada teria obtido melhor resultado frente às ostras e mexilhões.
Não é comum se alcançar tantas combinações perfeitas assim. No caso, a escolha dos pratos e vinhos foi direcionada e tomou-se por base algumas combinações clássicas como o Chablis com as ostras e o Muscadet com os mexilhões, por exemplo. O tempo quente ainda nos oferece uma série de outras opções com peixes e frutos do mar, e o mercado dispõe não apenas de outros rótulos das uvas utilizadas aqui, como também de uma ampla diversidade de vinhos com as mesmas características de acidez. Agora é sua vez de lavar as taças e fazer as experiências, boa sorte!