Puente Alto, um pequeno gigante

Puente Alto nos arredores de Santiago no Chile, é de onde sai ícones chilenos como Don Melchor, Almaviva, Viñedo Chadwick e o recém-lançado Marques de Casa Concha Heritage

Arnaldo Grizzo Publicado em 12/11/2022, às 15h00

Puente Alto recebeu suas primeirs videiras na década de 1880, hoje é um ícone do Novo Mundo -

Durante o período colonial, o território onde hoje se localiza Puente Alto, pouco ao sul da capital chilena, Santiago, era um canal de comunicação entre a Cordilheira dos Andes e o vale do Maipo.

As terras abastecidas com irrigação após a canalização do rio Maipo no século XIX permitiram que o território tivesse um importante desenvolvimento agrícola, especialmente ligado à indústria do vinho. Essas terras foram posteriormente divididas em lotes, dando origem às primeiras ruas da cidade.

Sim, em 1892, foi criado o município de Puente Alto. A origem do nome vem de diversas lendas, mas a mais popular o atribui a uma ponte alta de tijolos que cruzava o canal Eyzaguirre. Na década de 1880, Manuel Antonio Tocornal plantou as primeiras variedades francesas em Puente Alto, dando início à história vinícola local.

A Viña San José de Tocornal posteriormente passou para propriedade de Alfonso Chadwick e foi replantada em 1942 com Cabernet Sauvignon e outras variedades bordalesas, num total de 400 hectares aproximadamente.

Mais tarde, essa grande propriedade de Don Afonso foi divida. A família Chadwick manteve a casa e 25 hectares, incluindo o famoso campo de polo. Em 1968, a vinícola Concha y Toro comprou o vinhedo Tocornal da família Chadwick, com o qual lançou, em 1972, Marques de Casa Concha Cabernet Sauvignon. Anos depois, em 1987, com uvas desse mesmo lugar, criou seu ícone Don Melchor.

Quando o Barão Philippe de Rothschild e a família Guilisasti, donos de Concha y Toro, decidiram estabelecer uma joint-venture em 1995, Puente Alto foi escolhido como terroir de origem e 60 hectares de vinhedos foram separados. Em 1998, a Concha y Toro adquiriu a propriedade El Mariscal, três quilômetros a oeste de Tocornal, onde plantou uma seleção massal de Cabernet Sauvignon. Um ano depois, a Viña Errázuriz, de Eduardo Chadwick (filho de Don Afonso), lançou Viñedo Chadwick com vinhas onde eram o campo de polo.

Hoje, Don Melchor, Almaviva, Viñedo Chadwick e o recém-lançado Marques de Casa Concha Heritage contribuem para a lenda dessa denominação de origem singular incrustada numa parte periférica de Santiago, já cercada por ruas e casas.

O lugar da Cabernet no Chile

Segundo Isabel Guilisasti, presidente de imagem corporativa da Concha y Toro, Marques de Casa Concha Heritage, vindo das vinhas de El Mariscal, é o primeiro vinho criado como assemblagem na história da empresa. Em visita recente ao Brasil ao lado de Enrique Tirado, CEO de Don Melchor, e Marcelo Papa, diretor técnico da Concha y Toro, responsável pelos vinhos Marques de Casa Concha, eles ajudaram a explicar as nuances desse terroir vizinho à Santiago, que fica em um dos cinco terraços identificados nas margens do rio Maipo.

Puente Alto está localizado no terceiro terraço, 650 metros acima do nível do mar, no sopé da Cordilheira dos Andes, em uma das áreas com mais oscilação térmica e mais frias do vale. “É um solo de origem aluvial com muitos cascalhos, há pobreza, há restrição, mas, ao mesmo tempo, há complexidade, não são só pedras e areia, porque, quando se tem pedras e areia dá-se bons vinhos. Quando você vê de onde vêm os grandes Cabernet Sauvignon no mundo, existem essas restrições, porque isso se encaixa nas necessidades da variedade durante a segunda fase de maturação, ou seja, é preciso uma certa restrição para concentrar aromas e sabores. Ela é dada pelo cascalho e pela pobreza do solo, mas, ao mesmo tempo, aqui há complexidade, então há uma boa combinação de elementos que permite fazer vinhos concentrados, expressivos, mas também complexos, com diferentes camadas de aromas e sabores, vinhos de outro de outro nível de expressão, de diversidade, de camadas, de texturas”, aponta Enrique Tirado, revelando que a Cabernet é uma chave para o lugar.

Puente Alto tem um clima mediterrâneo semiárido com forte influência da Cordilheira. Ali é a parte mais fria do vale e com oscilação térmica diária em torno dos 18°C, o que prolonga a maturação da uva, especialmente da Cabernet, uma variedade um pouco mais tardia. Vale apontar que, entre 2018 e 2020, o Centro de Pesquisa e Inovação (CII) da Concha y Toro realizou um estudo exaustivo sobre a Cabernet Sauvignon chilena e descobriu que este terroir é mesmo único para a cepa.

Eles colheram amostras de Cabernet Sauvignon de 79 vinhedos de 23 áreas vitivinícolas de sete vales diferentes no Chile e as vinificaram de maneira padronizada por três anos. Das 237 amostras de vinho, 18 delas eram de Puente Alto. Ao analisá-las quimicamente, foi possível concluir que as amostras de Puente Alto apresentaram maior concentração de marcadores indicativos de qualidade (cor, sabor e antioxidantes) e maior pontuação na avaliação sensorial.

A essência do terroir

Em outro estudo realizado pelo CII entre 2013 e 2015, uma seleção massal e três seleções clonais de Cabernet Sauvignon foram comparadas na área de Cauquenes durante cinco safras consecutivas. Os resultados mostraram que a seleção massal foi predominantemente associada a atributos positivos de qualidade do vinho e maior preferência sensorial. E os vinhedos de Puento Alto são, em sua maioria, seleções massais pré-filoxera em vinhas não enxertadas.

Puente Alto está localizado no terceiro terraço, 650 metros acima do nível do mar, no sopé da Cordilheira dos Andes

“Ter um grande terroir é a primeira coisa e, a partir daí, você pode fazer um grande vinho”, resume Tirado. O vinhedo Don Melchor, por exemplo, está localizado a 650 metros acima do nível do mar e é composto por 127 hectares, dos quais 90% correspondem a Cabernet Sauvignon, divididos em sete parcelas, mais 7,1% de Cabernet Franc, 1,9% de Merlot e 1% de Petit Verdot. Todo o vinhedo está subdividido em 151 pequenos lotes. A parte mais antiga do vinhedo (80%) foi plantada entre 1979 e 1992, com uma densidade de 2.000 a 4.000 plantas/ha, e a nova (20%) foi plantada entre 2004 e 2017 com densidade de 8.000 plantas/ha. As videiras são formadas em uma treliça clássica e seu material genético é proveniente da seleção massal pré-filoxera, principalmente em pé franco.

“Já dizia Jacques Boissenot (consultor francês falecido em 2014): vinificar um vinho é fácil, difícil é compreender um terroir”, contou Isabel Guilisasti, que completou: “Quando se entende o terroir e se sabe o que quer, o que o terroir quer expressar, você se torna mais do que em um enólogo, torna-se um guardião do terroir”. “Como enólogo, o que você tenta fazer com uma vinha é compreendê-la e tentar tirar o máximo proveito dela, interpretá-la de uma forma que se mostre da maneira mais limpa. Os Cabernet Sauvignon de Puente Alto são muito mais robustos, muito mais concentrados, com muito mais sabores, que dão a oportunidade de as safras serem expressas, mas também há um pouco mais de trabalho, um pouco mais humilde ou mais respeitoso, para deixar que essa variação se expresse. As grandes origens do mundo sempre acabam transcendendo o tempo”, comenta Marcelo Papa.

Sob suas mãos está o vinhedo El Mariscal, localizado a 600 metros acima do nível do mar e composto por 52,95 hectares, dos quais 46,23 correspondem a Cabernet Sauvignon, 4,52 a Cabernet Franc e 2,20 a Petit Verdot. Ele foi plantado no ano 2000 no sistema clássico de treliças, com densidade de 5.555 plantas/ha, também com vinhas oriundas de seleção massal pré-filoxera e a maioria não enxertadas.

“Ter um grande terroir é a primeira coisa e, a partir daí, você pode fazer um grande vinho”, resume Tirado, CEO de Don Melchor

“Quando você visita outros ótimos lugares de produção de Cabernet Sauvignon, ela normalmente é plantada com padrões onde existem diferentes tipos, que mudam muito a qualidade, isso transforma a interpretação do lugar. Além disso, há muito material clonal. Em Puente Alto, por sua vez, há uma porcentagem muito alta de material massal em pé franco e isso faz com que a Cabernet se expresse de uma maneira diferente”, aponta Papa. “No Chile, quando esta Cabernet foi plantada, há mais de 100 anos, foram os enólogos franceses que viram em Bordeaux um terreno que produzia grande qualidade e trouxeram todo aquele material para o Chile. Em Puente Alto isso se multiplicou. O que fizemos, há 15 anos na vinha Don Melchor, foi olhar para mais de 3.000 plantas e selecionarmos o melhor em termos de qualidade. E com esse material inicial criamos essa seleção massal de Don Melchor, que temos armazenado no centro de pesquisa genética. É com isso que estamos multiplicando, plantando esses vinhedos, porque acreditamos na biodiversidade. A partir disso, vamos ter vinhos mais complexos e expressivos”, garante Tirado.

As sutis diferenças

Apesar de a base de Puento Alto ser Cabernet Sauvignon, os vinhos que surgem desse lugar mágico definitivamente não são todos iguais. Marcelo Papa, por exemplo, busca um estilo de blend diferente no vinhedo El Mariscal do que Enrique Tirado obtém em Don Melchor.

As traves do antigo campo de polo, hoje o Viñedo Chadwick

“O Cabernet que é obtido de El Mariscal é um vinho com uma precisão de fruta muito límpida, com um toque vermelho, que pode se mover um pouco mais para a fruta preta, mas, no geral, tem um lado mais vermelho. O Cabernet Franc tem uma textura diferente. Ele preenche espaços no paladar que o Cabernet Sauvignon não preenche, chega a um ponto no paladar que ela não chega. Dessa maneira, sinto que eles são muito complementares. E o Petit Verdot de El Mariscal não é de grande concentração, pois, quando entra na mistura, corta aquela gordura, aquela coisa mais opulenta. Gosto muito, porque dá ao vinho um pouco mais de leveza”, aponta Papa.

“Em Puente Alto tenho uma certeza, vou sempre colher a fruta um pouco mais cedo, dentro de uma maturação atraente, e também vou tentar incorporar o máximo de Cabernet Franc na mescla. A Franc se dá muito bem lá, pois é uma parente muito próxima da Sauvignon”, garante Papa. Isso só é possível porque o solo de El Mariscal é um pouco mais profundo.

Tirado reconhece as diferenças: “Em Almaviva [projeto em que ele trabalhou por alguns anos], por exemplo, tem-se o conceito do château bordalês, ou seja, um assemblagem feito em Puento Alto. Então, na mistura se consegue a expressão, a complexidade do terroir. A expressão do vinho é muito marcada pelo conceito de assemblagem de diferentes variedades. Já Don Melchor é uma assemblagem apenas de Cabernet Sauvignon. Nesse sentido, sempre foi um desafio fazer com que uma só variedade tenha essas distintas expressões. É como a suíte número 1 de Bach, em que um só instrumento, um violoncelo, dá distintas notas. Por isso temos tantas parcelas. O que marca essa diversidade para mim é a diversidade de solo em primeiro lugar. Em Don Melchor 80% do vinhedo é plantado com densidade de 4 mil plantas por hectare e dentro desses 80% está o coração de Don Melchor”.

Marcelo Papa, diretor técnico da Concha y Toro, responsável pelos vinhos Marques de Casa Concha

Don Melchor, Almaviva, Viñedo Chadwick e agora Marques de Casa Concha Heritage... É curioso ver como uma denominação pequena, cercada pela cidade (com uma grande pressão imobiliária), não apenas sobreviveu ao tempo, como se revela a cada dia o grande terroir da Cabernet Sauvignon no Chile.

Vinhos avaliados

Don Melchor 2008 - AD 93 pontos - Concha y Toro, Maipo, Chile

Nesta safra, o Don Melchor é um blend de 97% Cabernet Sauvignon e 3% Cabernet Franc, com estágio de 15 meses em barricas de carvalho francês, sendo 72% novas. Foi degustado duas vezes, a primeira em 2012 e a segunda em 2022.

Exuberante nos aromas, mostra notas florais, de ervas e de especiarias envolvendo sua fruta vermelha e negra de perfil mais maduro, com sua ótima acidez e seus taninos finos ditando as regras e trazendo equilíbrio ao conjunto. Tem final carnudo e persistente, com toques de grafite e de alcaçuz. Muito bem feito para um ano mais quente e seco, como foi o de 2008. 

Don Melchor 2013 - AD 95 pontos - Viña Concha y Toro, Maipo, Chile

No ano mais frio da história de Don Melchor, o blend escolhido foi de 91% Cabernet Sauvignon e 9% Cabernet Franc, com estágio de 15 meses em barricas de carvalho francês, sendo 66% novas.

Fluido e gostoso de beber, mostra notas de ervas secas, de especiarias doces e de eucalipto, que se confirmam no palato. Está evoluindo muito bem e mostra a influência de um ano mais frio no perfil de taninos firmes e de refrescante acidez. Um ano que pende para um estilo mais austero e vertical, com final longo e persistente, com toques de grafite, de cedro, de tabaco e de mentol. 

Don Melchor 2019 - AD 94 pontos - Don Melchor, Maipo, Chile

Esse blend de 92% Cabernet Sauvignon, 5% Cabernet Franc, 2% Merlot e 1% Petit Verdot, contou com estágio de 15 meses em barricas de carvalho francês, sendo 72% novas.

Ainda jovem, mostras notas florais, de ervas e de especiarias doces, que envolvem sua fruta vermelha e negra de perfil mais maduro. Mas, é na boca que merece atenção, com seus taninos firmes e de grãos finos e sua ótima acidez, que trazem equilíbrio ao vinho e aportam fluidez e uma sensação de frescor ao conjunto. Muito bem logrado para ser da safra 2019, em teoria, um ano mais quente.

Marqués de Casa Concha Heritage 2020 - AD 93 pontos - Concha y Toro, Maipo, Chile

Composto a partir de uvas 84% Cabernet Sauvignon, 12% Cabernet Franc e 4% Petit Verdot, cultivadas em Puente Alto, no Alto Maipo, com estágio de 16 meses em carvalho, sendo 85% em barricas (20% novas) e 15% em foudres.

Sedutor nos aromas e franco nos sabores, mostra notas de violetas, de ervas e de especiarias envolvendo sua fruta vermelha e negra mais madura, que se confirma no palato. Estruturado e carnudo, tem boa acidez e taninos firmes e de ótima textura, que trazem sustentação a sua untuosidade e madurez. Um retrato de Puente Alto em um ano mais quente, tem final cheio e persistente, com toques de ameixas, de amoras, de alcaçuz e de cacau. 

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