A revolução dos vinhos do Douro

Jorge Serôdio Borges, criador do icônico Pintas, conta como sua geração de enólogos transformou o vinho do Douro

Arnaldo Grizzo e Eduardo Milan Publicado em 11/01/2019, às 15h00 - Atualizado em 26/06/2019, às 11h19

O destino de Jorge Serôdio Borges dificilmente não estaria ligado ao vinho. Quinta geração de uma família de produtores de Vinho do Porto, ele cresceu em meio às antigas vinhas do vale do Pinhão, sob a tutela do pai, que faleceu quando ele tinha apenas 10 anos, e do avô. Logo, tornou-se enólogo.

No entanto, apesar de ter crescido em meio à tradição dos históricos Vinhos do Porto, Borges mostrou que seguiria uma linha diferente da de seus ancestrais e, juntamente com uma geração de jovens enólogos, ajudou a transformar a cara do Douro ao produzir grandes tintos (não fortificados) que prontamente se tornaram ícones. Aliás, ele e sua esposa, Sandra Tavares da Silva, foram responsáveis por criar o mais célebre tinto duriense, o Pintas, no projeto Wine & Soul.

Mais recentemente, na companhia de dois amigos, Jorge Moreira, do Poeira, e Francisco Olazabal, da Quinta do Vale Meão, criou o MOB (formado pelas iniciais de seus sobrenomes) em uma incursão para produzir vinhos no Dão.

Em uma conversa franca, Jorge Serôdio Borges, de apenas 42 anos, revelou como surgiram os tintos durienses, sua filosofia de trabalho e sua visão sobre como os vinhos do Douro podem ser no futuro.

Jorge Serôdio Borges é casado com a enóloga Sandra Tavares. Pintas, o pointer do casal, deu nome ao seu principal vinho

Sua família sempre foi ligada ao vinho, seguir esse caminho foi natural, não?

Sou da quinta geração. As quatro gerações anteriores se dedicaram exclusivamente à produção do Vinho do Porto. Sou o primeiro a produzir vinho tinto e branco, e também Porto. Meu avô era um grande proprietário de quintas. O negócio dele era produzir Vinho do Porto com suas próprias uvas, envelhecer esse vinho e vender a granel às casas exportadoras. Até 1985, era obrigatório exportar Vinho do Porto através de Vila Nova de Gaia. Uma lei impedia que lavradores como meu avô engarrafassem seu próprio vinho, pois não possuíam caves em Gaia. Para manter o negócio, eram obrigados a vender o vinho às casas inglesas. Era uma forma de proteger o monopólio. Isso só acabou em 1985. Desde pequeno me habituei a andar pelas quintas. Naturalmente, enveredei por essa profissão, estudei, fiz enologia, fiz estágio no sul da Itália, e depois comecei a trabalhar ativamente. Comecei na Quinta do Fojo e na Quinta da Manoella, mas em 1999, resolvi sair das quintas da família e trabalhar para fora. Meu objetivo era ganhar experiência. Comecei a trabalhar na Quinta do Passadouro e na Niepoort.

Nessa época, houve profundas mudanças nos vinhos do Douro com diversos enólogos partindo para a produção de vinhos tranquilos. Como você se encaixa nesse momento?

Tenho a sorte de pertencer a uma geração que iniciou sua vida profissional no momento certo na região certa. O desafio que tivemos de criar essa nova onda de vinhos foi uma oportunidade fabulosa de podermos aprender, descobrir, criar produtos novos, inventar. O Douro, apesar de ter mais de três séculos de existência, soube se reinventar criando os vinhos do Douro em paralelo aos do Porto. Sou uma peça num universo de muitas peças que ajudaram o Douro a se reinventar.

"O Douro, apesar de ter mais de três séculos de existência, soube se reinventar criando os vinhos do Douro em paralelo aos do Porto"

Os tintos tranquilos foram uma aposta da sua geração? Ou havia algo por trás desse movimento?

Há uma explicação muito prática e lógica para o começo desse movimento. Nos anos 1980, permitiu-se o aumento da área de vinha. A intenção era produzir mais uvas para o Porto. Mas a comercialização do Porto começou a decrescer. Ou seja, pela primeira vez, houve excesso de uvas na região. As quintas decidiram que a solução era produzir vinho tinto. Isso começou sobretudo com os pequenos lavradores, pois eles não tinham tanta tendência ao negócio do Vinho do Porto e, portanto, era mais fácil criar novos produtos. Em vez de utilizarmos aquelas vinhas novas que haviam sido plantadas, utilizamos os vinhedos mais velhos para esses vinhos. Sempre acreditou-se que o Douro tinha qualidades para produzir um tinto que tivesse o nível dos Vintages. Esta é a explicação para essa grande revolução.

Vinhas do projeto Wine and Soul, no vale do Pinhão

E como surgiu o projeto Wine & Soul?

Comecei a trabalhar com a Niepoort em 1999 e casei com a Sandra (Tavares da Silva), que também é formada em enologia, embora com origem na região de Lisboa. Casamos e continuamos a trabalhar separadamente. Cada um tinha seus patrões. A coisa começou um pouco por brincadeira. “Um dia vamos fazer nosso próprio vinho”. Até que surgiu a oportunidade de comprar um vinhedo que reunia todas as condições que achávamos que tinha que ter para produzir o tal vinho que queríamos. Decidimos iniciar esse projeto em 2001.

Como o Pintas se tornou um ícone tão rapidamente?

Sandra e eu sempre fomos muito disciplinados e objetivos. Decidimos que vinhas tínhamos que comprar. Tinha que ser no vale do Pinhão. Por quê? É, sem dúvida, o local que conheço melhor, pois vivi lá e é o lugar que considero ser o melhor para produzir os vinhos equilibrados no Douro. Tem sol suficiente, temperatura suficiente e consigo produzir vinhos com acidez e frescor. O ponto de equilíbrio entre concentração e frescor é o segredo de um grande vinho do Douro. Depois, tinha que ser um vinhedo velho, por razões óbvias. Tinha que ser uma exposição sul-poente. As pessoas acham que sul-poente tem excesso de sol. Se tiver excesso de sol, consigo controlar na folhagem da vinha, e consigo antecipar a vindima se quiser. Se não tiver sol suficiente para amadurecer, não consigo fazer nada. Tinha que ser um solo muito pobre. Tinha que ser uma vinha tradicional do Douro, com aquela mistura de castas típicas da região. Quando encontramos, compramos. Compramos também uma vinícola, um edifício que tinha sido de antepassados meus e começamos a produzir. De que forma? Vamos usar o conhecimento acumulado que essa região tem, que é a pisa a pé, mas ela precisa ser adaptada à realidade de hoje. Vamos introduzir o frio e controlar a temperatura nos lagares. Depois, fizemos uma coisa muito importante. O vinho foi fermentado e colhido em 2001, e só entraria no mercado em 2003. Nesse período, sem ter uma garrafa para vender, fomos falar com as pessoas que achamos que eram os “key players”, apenas com amostras de barrica, apresentado nosso projeto. Muitas pessoas começaram escrever sobre o vinho sem ele existir. No dia em que o vinho existiu, foi tudo vendido.

Um enólogo novo, que vai para Bordeaux, tem pouca margem para criar. No Douro, tem uma margem imensa

E o nome? De onde saiu?

Não queríamos usar o nome da família. Queríamos mostrar uma nova onda do Douro, não a onda tradicional, familiar. Aquela vinha não tinha nome de quinta que se pudesse usar. Temos um cachorro, chama-se Pintas. A Sandra sugeriu colocar o nome dele no vinho.

Como surgiu o MOB?

Somos três enólogos que, além de colegas de profissão, somos bastante amigos; e somos do Douro. Sempre nos reunimos para provar vinhos de outros produtores do mundo. Quando queríamos provar vinhos velhos de Portugal, a região que mais nos agradava era o Dão. Como um vinho de 12% de álcool consegue se manter tão jovem e tão fresco? Isso sempre nos seduziu. Comentamos isso com Álvaro de Castro. Um dia, ele ligou: “Há uma quinta ao meu lado que está para alugar. Querem ver?” Fomos visitar e gostamos. Ela está junto à Serra da Estrela, ou seja, um local ainda mais fresco dentro do Dão. O projeto se iniciou em 2011.

Segundo Borges, a escolha da vinha para o projeto de onde surgiu o ícone Pintas foi detalhista: “sempre fomos muito disciplinados e objetivos”

Como é sua filosofia de trabalho?

Nosso conceito começa a partir da vindima do ano anterior. Começa no vinhedo. A única tecnologia que temos é o sistema de frio, que é banal, mas é uma tecnologia. Preparamos o vinho na poda das videiras. O segredo do Pintas é a expressão daquele terroir, saber entender aquela vinha, que tem uma identidade e personalidade que devem ser respeitadas e mantidas na garrafa. A intervenção tem que ser no sentido de não perder as virtudes que o vinhedo nos dá. Essa vinha hoje tem 20 e tantas variedades, mas, quando compramos, tinha mais. Ao longo dos anos, selecionamos melhor. Se não tiver uvas em perfeitas condições, se aquela combinação não for perfeita, não consigo fazer um vinho perfeito. Minha enologia é uma enologia de muita atenção àquilo que está acontecendo. Mas supervisiono o processo.

Para onde vai o vinho do Douro?

Tudo isso é muito recente. No Douro, temos o privilégio de poder ainda descobrir coisas, não há receitas. Um enólogo novo, que vai para Bordeaux, tem pouca margem para criar. No Douro, tem uma margem imensa, pois ainda estamos a descobrir quais as melhores uvas para nossos vinhos em termos de percentagem de cada uma das variedades, tem uma enorme diferença de altitude nos vinhedos e diferentes exposições. Isso faz com que o Douro tenha uma diversidade enorme e cada enólogo tem que saber respeitar o terroir. A única biblioteca para ter alguma informação é a do Vinho do Porto e tenho que saber entender aquela informação e relativizá-la com os tintos que quero produzir. O que falta em termos de maturidade hoje no Douro? Entender as regiões e sub-regiões que existem e isso vai nos levar a uma especialização. É por aí que vamos caminhar. O Douro tem originalidade, identidade, uvas e características que mais ninguém tem.

Se não tiver uvas em perfeitas condições, se aquela combinação não for perfeita, não consigo fazer um vinho perfeito

Há espaço para os varietais?

Os melhores vinhos do Douro são blends, na minha opinião. Mas, às vezes, o consumidor menos esclarecido tem dificuldade de entender. Se ele não entende, não compra. Então, acho que os varietais podem ser uma ponte para o blend.

Como vê as diferenças no Pintas de 2001 para cá?

Pintas 2001 era um vinho fabuloso. Tem o estilo certo para aquele momento. Fazer o Pintas hoje com o estilo de 2001 não iria dar certo. Quando somos mais novos, somos menos comedidos. O 2001 era um vinho com enorme concentração, mas, naquela época, todos eram. Hoje você faz uma vertical e consegue entender que a identidade está em todos. No entanto, no 2001, era tudo muito mais excessivo. Hoje, o 2013 é muito mais fino, a expressividade do terroir é muito maior. Mudamos, mas mantivemos a identidade do vinho, a expressão de uma forma mais transparente, com menos maquiagem.

Na Quinta da Manoella, propriedade familiar, o casal produz o rótulo Vinhas Velhas, também consagrado

Como projeta o vinho no futuro?

O grande motor da nossa vida como criadores é reconhecer que as coisas ainda não estão feitas. Estamos a afinar coisinhas pequenas. Aquilo que fazíamos era aquilo que acreditávamos ser o melhor naquele ano. É assim que tem que ser, senão perco o ânimo. O bonito dessa profissão é você, ano após ano, entender melhor a expressão daquela vinha. Isso obviamente vai se transformar numa alteração mínima, mas é uma alteração no vinho. Gostaria que uma próxima geração seguisse com isso. Eles vão receber um conhecimento acumulado, mas vão ter a sua própria leitura e intervenção na forma de fazer os vinhos. Isso é um processo e esses pequenos detalhes diferenciam um projeto dinâmico, familiar, de um projeto mais industrial. Sou muito crítico comigo mesmo e com o que faço. Acho que devemos ser assim, se não for crítico com meu vinho, como posso fazer melhor no próximo ano?

Vinhos avaliados

AD 92 pontos

PINTAS CHARACTER 2013

Wine & Soul, Douro, Portugal. Tinto composto de mais de 20 variedades de uvas, entre elas Touriga Franca, Touriga Nacional e Tinta Roriz, advindas de um vinhedo de mais de 48 anos, com estágio de 18 meses em barricas de carvalho francês 50% novas. Chama atenção pela qualidade da fruta, é estruturado, equilibrado, tem ótima acidez, taninos finos e final persistente, fresco e mineral. Álcool 14,5%. EM

AD 95 pontos

QUINTA DA MANOELLA VINHAS VELHAS 2012

Wine & Soul, Douro, Portugal. Tinto composto de mais de 20 variedades de uvas, entre elas Touriga Franca, Touriga Nacional e Tinta Roriz, advindas de um único vinhedo de mais de 100 anos, com estágio de 20 meses em barricas de carvalho francês. Mostra exuberantes notas florais seguidas de aromas de frutas negras e vermelhas mais frescas, além de toques especiados, minerais e de ervas. Impressiona pelo estilo compacto, preciso, cheio de camadas e de profundidade. Austero, tem taninos de excelente textura e final longo, com toques de grafite. Álcool 14,5%. EM

AD 92 pontos

PASSADOURO TINTO 2013

Quinta do

Passadouro, Douro, Portugal. Blend de Touriga Franca, Tinta Roriz, Touriga Nacional e Vinhas Velhas, com estágio de 16 meses em barricas de carvalho francês 20% novas. Apresenta frutas negras seguidas de notas florais e de ervas frescas, além de toques especiados e minerais. Num estilo mais acessível, alia abundância de fruta, com acidez refrescante, taninos de boa textura e final persistente e vibrante. Álcool 14,5%. EM

AD 94 pontos

PASSADOURO RESERVA TINTO 2013

Quinta do Passadouro, Douro, Portugal. Tinto composto de mais de 30 variedades de uvas, entre elas Touriga Franca, Touriga Nacional e Tinta Roriz, advindas de um vinhedo de mais de 60 anos, com estágio de 18 meses em barricas de carvalho francês 50% novas. Mostra cassis e amoras frescas acompanhadas de notas florais, minerais, de ervas e de especiarias doces, que se confirmam na boca. Os taninos de ótima textura e sua ótima acidez trazem sustentação e equilíbrio a toda essa fruta deliciosa e suculenta. Gostoso e cativante, tem a virtude de se beber com facilidade, aparentando ser menos complexo do que realmente é. Álcool 14,5%. EM

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