Algumas variedades se destacam pela estrutura, mais do que aromas e sabores, e o Tannat é uma delas
Patricio Tapia Publicado em 19/02/2013, às 06h52 - Atualizado em 07/03/2019, às 12h33
No mundo do vinho, como em quase todos os mundos, o reinado do gosto pessoal é o que tem a supremacia. A garrafa que lhes agrada, a que os comoveu, pode ser que a mim não diga nada. Com isso em mente, surge a ideia: há três castas que aprecio, três uvas que dão vinhos focados mais na estrutura que nos aromas ou sabores que possam entregar. Vinhos que vão além do seu lado frutado para se interiorizar no território da construção. Cepas que, para serem convertidas em vinho, precisam de arquitetos, não de perfumistas.
Refiro-me à Pinot Noir, com certeza. E também à Nebbiolo e à Baga. Estas três castas têm em comum seu centro de gravidade na acidez e nos taninos. Têm em comum, também, que se apresentam melhor em solos calcários. Os terrenos quase brancos de Le Cras, em Chambolle-Musigny, a pedra calcária de Brunate, em Barolo, e as colinas de argila e cal das costas da Bairrada, onde se produz a melhor Baga. A essa lista, seguramente, de vez em quando dá vontade de agregar alguns nomes. A Sagrantino de Montefalco, por exemplo, às vezes; também penso na Tannat de Canelones, nas cercanias de Montevidéu, no Uruguai. Sim, isso mesmo: Tannat uruguaio.
A Tannat não é uma cepa que seduza ao primeiro gole. De poucos aromas, de textura rígida e adstringente, de grande acidez, é o oposto ao que o "mercado" busca |
Há algumas semanas, para as degustações do guia Descorchados - que pela primeira vez incluirá vinhos uruguaios junto a argentinos e chilenos na versão de 2014 -, tive a oportunidade de provar mais de 200 amostras de 31 vinícolas do país, números que podem parecer um pouco mesquinhos, mas que, na verdade, abarcam quase a totalidade da produção que o Uruguai tem nos mercados externos.
E não houve surpresa. Há muitos anos que visito o Uruguai e, ainda que a distribuição de seus vinhos não chegue a transcender suas fronteiras - como fizeram Argentina e Chile -, a qualidade e sobretudo a personalidade de seus vinhos teve ascensão com a Tannat como principal bandeira.
Quando o Tannat não se disfarça, pode conjugar sua timidez aromática com sabores refrescantes
A Tannat não é uma cepa que seduza ao primeiro gole. De poucos aromas, de textura rígida e adstringente, de grande acidez, é o oposto ao que o "mercado" busca. Há esforços em amadurecer a Tannat e assim tornar o vinho mais suave, menos ácido e mais doce; também há quem o encha de madeira nova, mas esse não é o Tannat que eu, ao menos, procuro. Esses exemplares são só tentativas de agradar ao gosto internacional, são um disfarce.
O verdadeiro Tannat é o que cresce em solos de argila e cal, esses solos que acentuam suas características austeras, que marcam ainda mais seu eixo na estrutura e na acidez. O clima da costa atlântica uruguaia, por outro lado, não faz mais do que aprofundar esse caráter. Ainda que não possamos dizer que se trata de um clima frio, sim, é muito menos quente que em outra regiões do Cone Sul. Por exemplo, a média de álcool dos Tannat não ultrapassa os 13%, com os varietais e os Reserva rondando os 12,5%. Isso significa vinhos leves em álcool, mas potentes em taninos e acidez por outro lado.
Durante uma semana estive provando Tannat de todos os tipos: jovens e velhos, com ou sem madeira, de solos distintos, de regiões variadas. E meu ranking pessoal incluiu um bom número de exemplares, suficientes para alimentar minha adega com alguns dos melhores vinhos que posso beber esse ano. E não estou exagerando. Quando o Tannat não se disfarça, pode perfeitamente conjugar sua timidez aromática com sabores deliciosamente refrescantes. E se a isso somarmos o fato de que no Uruguai se come carne como os deuses, o Tannat honesto acompanha qualquer coisa que saia da churrasqueira.
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ANTIGUA BODEGA STAGNARI
Osiris 2006
Com um ano de barricas novas e plantas de apenas oito anos, é impressionante o poder deste vinho, a força do Tannat que se mostra emergindo entre a madeira (que não rouba a cena, mas que me incomoda igualmente) e a acidez que ajuda os sabores de frutas vermelhas ácidas serem ainda mais evidentes. Um vinho delicioso que precisa ainda de uns dois anos em garrafa e um pouco menos de madeira para que realmente mostre toda sua origem.
CARRAU
Juan Carrau Reserva 2010
Se querem aprender como é o Tannat, mas o clássico, o que parece não ter mudado há décadas, totalmente alheio às modas, têm que provar este Juan Carrau Reserva. A safra 2010 parece austera, levemente floral, tensa em adstringência, mas também gostosa em acidez e terrosidade, um tinto clássico de solos argilo-calcários, com 12 meses de estágio em barricas e dois anos de garrafa antes de sair ao mercado.
ESTANCIA LA CRUZ
Jano 2011
Jano é um projeto de Estancia La Cruz com a ajuda de Estela de Frutos, a lendária e encantadora enólogo uruguaia, rainha do Tannat. E esse título não só se deve por seu amor pela cepa, mas principalmente por seu domínio com ela. Jano 2008 foi a primeira versão, e este 2011 segue o mesmo caminho. Trata-se de um Tannat plantado em 1925, em solos pedregosos, somente com estágio em garrafa. É um vinho cristalino, maravilhoso em sua expressão varietal. Não é selvagem, nem exageradamente adstringente, mas tremendamente suculento e elegante, fino, delicado.
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JUANICÓ
Don Pascual Crianza en Roble 2010
No começo, a influência da madeira tende a deixar as coisas opacas, mas atenção para a evolução na taça: em pouco tempo, os aromas de flores e frutas negras ácidas começam a roubar a cena com sua estrutura e sua acidez. Este é um Tannat, mas também é um vinho de solo. A influência da argila e da cal lhe dão austeridade, força, estrutura monolítica. A madeira entorpece a expressão da fruta, é desajeitada como uma adolescente mal maquiada, mas esperem um tempo em garrafa, este vinho dura uns 10 anos.
LOS CERROS DE SAN JUAN
Cuna de Piedra Reserva Roble 2011
Um dos Tannat mais clássicos do Uruguai, seu nome faz referência ao solo onde nasce, um verdadeiro berço de pedras na qual essa vinha velha dá vinhos como este, um Tannat enciclopédico, rico em taninos, generoso em aromas florais, mas com um encantador fundo frutado de cerejas vermelhas, ácidas em um vinho delicioso.
MARICHAL
Tannat A Gran Reserve 2009
Este vinho vem de uma parcela de menos de um hectare, de vinhas plantadas no final dos anos 1980, logo na reconversão dos vinhedos que ocorreu no Uruguai, e o que hoje entregam essas vinhas é simplesmente uma delícia. Pura fruta vermelha raivosa, repleta de uma acidez pulsante, rodeada de uma mineralidade que lembra a cal por todos os lados, como se o vinho, na verdade, fosse feito de giz. E o corpo tenso, com sabores no grau certo de dulçor, o que faz deste vinho um tinto tremendamente vertical: passa pelo paladar como uma flecha.
PISANO
Pisano Arretxea Gran Reserva 2009
No estilo reto, fibroso, de grande estrutura, este é um dos grandes exemplares que degustei de Pisano, uma vinícola que segue esse caminho e que neste Gran Reserva mostra notas especiadas, licorosas, cheias de madurez, mas animadas por taninos como diabos selvagens e acidez pulsante, que pica a língua. Este vinho é feito com um blend de vinhedos, alguns com mais de 60 anos.
VIÑEDOS DE LOS VIENTOS
Angel's Cuvée Ripasso de Tannat 2007
Feito segundo o estilo Ripasso, este é um vinho austero, rico em notas de figos e frutos secos. É um vinho único, sem muitas referências no mundo. Originalmente a uva que se usa no Amarone é a Corvina, que é uma cepa muito menos tânica e potente que o Tannat. O resultado é um vinho de uma austeridade requintada, com um leve dulçor, mas com uma tremenda acidez. Um vinho para o inverno.