Como e por que essa técnica ancestral tem conquistado cada vez mais adeptos
Por Eduardo Milan Publicado em 08/06/2016, às 11h00 - Atualizado às 11h15
Já faz alguns anos que ouvimos, principalmente em conversas com enólogos, o termo cofermentação com mais frequência. Apesar de soar como uma prática nova, essa técnica, na verdade, já é conhecida há muito tempo; de fato, na França, por exemplo, tem sido utilizada desde sempre. Mas, afinal, por que – ou por que não – cofermentar?
É sabido que vinhos podem ser varietais (quando feitos a partir de uma única variedade de uva) ou blends (quando levarem mais de uma cepa em sua composição). A prática mais comum para se produzir um blend é misturar dois ou mais componentes já fermentados resultando no vinho final. Ou seja, fermentar cada cepa em separado, obtendo cada um dos vinhos-base e, a partir daí, mesclá-los, em porcentagens definidas nesse momento. Entretanto, assemblages também podem ser produzidos por meio de cofermentação.
Tecnicamente, a cofermentação é a prática enológica que consiste em fermentar duas ou mais variedades de uvas simultaneamente, no mesmo recipiente, para se produzir um vinho. Em teoria, o processo ressalta os aromas florais da bebida, além de realçar sua textura e aperfeiçoar seu brilho e a intensidade de sua cor.
A prática teve sua origem na Europa, notadamente em Côte Rôtie, no vale do Rhône, onde muitos dos afamados vinhos são blends entre a tinta Syrah e a branca Viognier – a legislação da denominação permite até 20% de Viognier na mescla. Outro exemplo clássico de cofermentação é o blend de Sangiovese com Canaiolo Nero, Trebbiano e Malvasia na região italiana de Chianti, que atualmente está quase em desuso. A partir dos anos 2000, vinícolas na Austrália e Estados Unidos e em outras partes do Novo Mundo, notadamente nos últimos anos no Chile e na Argentina, passaram a utilizar a cofermentação com bons resultados.
A técnica de cofermentação costuma dar mais complexidade ao vinho do que a simples mistura de vinhos-base
Ao fermentar diferentes variedades de uvas juntas, é possível ter um vinho com qualidades que transcendem aquelas que seriam obtidas por meio do método mais comum de se fazer blends. Em uma comparação simplista, do mesmo modo que ao se fazer um ensopado o resultado final do prato será mais profundo se todos os ingredientes forem cozidos em fogo baixo por um longo tempo do que se cozinhar cada ingrediente em separado juntando-os pouco antes de o prato ser servido, quando acertada, a cofermentação permite que uma maior complexidade seja conferida ao vinho produzido – em contrapartida ao resultado conseguido a partir da mescla de vinhos prontos obtidos a partir das mesmas uvas.
Usando o clássico exemplo dos vinhos de Côte Rôtie, onde as uvas são colhidas, maceradas e fermentadas juntas, Viognier e Syrah se complementam. A Viognier tem mais açúcar que a Syrah, o que ajuda a elevar o teor alcoólico do vinho, conferindo-lhe mais corpo, estrutura e sabor. Além disso, por ser muito aromática, garante notas florais. Já a Syrah traz notas de cassis, framboesas e morangos. Assim, o vinho acaba tendo bom corpo, mas permanece fresco e elegante. O simples processo de adicionar um pouco de vinho Viognier a um vinho Syrah provavelmente não garantiria essa estrutura floral e poderia, inclusive, diluir o produto final e torná-lo menos complexo.
Resumindo, o método comum de fazer blends traz complexidade ao vinho ao combinar sabores distintos, porém harmônicos. Na cofermentação, obtém-se complexidade e estrutura de sabores diferenciados, que não seriam atingidas somente ao se mesclar vinhos-base.
Além de complexidade, incremento do caráter aromático e maior intensidade, outro benefício da cofermentação é a estabilidade da cor do vinho, vinda da chamada copigmentação. Ao fermentar uvas tintas e brancas juntas, o suco destas últimas é impregnado pela cor das tintas. Assim, o resultado final é um vinho que apresenta características típicas do vinho branco, mas com toda a cor de um vinho tinto.
Field blendUm assemblage pode ser feito não só a partir de vinhos-base prontos e de cofermentação. Na verdade, o blend também pode ser feito já no vinhedo. É o chamado “field blend”, que ocorre quando o vinho é elaborado a partir de uvas de variedades distintas cultivadas misturadas no mesmo vinhedo e que são colhidas e fermentadas juntas. Essa prática era extremamente comum na antiguidade e hoje ainda é, por exemplo, nos Estados Unidos, onde se encontram rótulos “field blended” a partir de Zinfandel e Petit Syrah, e também em Portugal com as Vinhas Velhas, principalmente no Douro. |
Então, qual o motivo para a cofermentação não ser a regra? Para começar, variedades diferentes de uvas normalmente têm necessidades distintas durante o processo de fermentação, seja com relação ao tempo de maceração da fruta, seja ao controle de temperatura e, até mesmo, quanto ao tipo de levedura mais adequado. Assim, é obviamente mais difícil fazer ajustes e corrigir qualquer aspecto de um vinho que foi cofermentado. Mesmo se o enólogo providenciar uma quantidade de vinhos varietais das uvas cofermentadas, é provável que não seja possível acertar notas indesejáveis que tenham ocorrido durante a cofermentação.
Por isso, os enólogos que se utilizam da prática são uníssonos ao afirmar que, para se aventurar pela cofermentação, é primordial ter absoluto conhecimento das uvas e dos vinhedos. O argentino Sebastián Zuccardi, da vinícola que leva o sobrenome de sua família, que tem produzido rótulos a partir da cofermentação de Malbec com Cabernet Sauvignon ou Cabernet Franc, conta: “Se as uvas têm datas de maturação parecidas e conheço bem os vinhedos e o vinho que estou buscando, prefiro cofermentar a fazer o corte posteriormente, pois sempre acabo obtendo um melhor equilíbrio. Entretanto, a maior dificuldade e a limitação da prática é a coincidência da correta maturação das diferentes variedades utilizadas, ainda que, por vezes, haja benefícios até mesmo em cofermentar uvas em estágios de maturação distintos, na busca por conferir complexidade ao vinho”. Seu compatriota Matias Michelini, da Passionate Wines, concorda que a vantagem da cofermentação é “obter vinhos mais harmoniosos desde o princípio, mas, para isso, é preciso conhecer muito bem os vinhedos de onde vêm as uvas, pois, do contrário, a técnica pode ser contraproducente e acabar ressaltando as debilidades de cada variedade”.
E, pelo que ADEGA tem degustado ultimamente, os resultados na taça comprovam que muitos enólogos têm acertado em cheio na decisão de cofermentar.
Vinhos degustados |
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93 pontos CÔTE-RÔTIE BRUNE ET BLONDE DE GUIGAL 2005 E. Guigal, Rhône, França. O mais afamado produtor da região, somente Guigal produz cerca de 40% de todos os vinhos de Côte-Rotie, incluindo as suas estrelas maiores “La Mouline”, “La Turque” e “La Landonne”. Este tinto, podemos dizer que é o seu “genérico”, tradicional blend de 96% Syrah com 4% de Viognier cofermentado e com estágio de 36 meses em barris de carvalho. Austero, estruturado e potente, esbanja frutas vermelhas e negras maduras envoltas por notas florais e de especiarias picantes, além de toques herbáceos e minerais. No palato, é cheio, intenso, tem taninos de ótima textura, acidez refrescante e final longo e profundo, conseguindo aliar com harmonia força, potência e finesse. Apesar de 10 anos, está bem jovem ainda e deve começar a atingir seu auge em cinco anos. Álcool 13,5%.EM |
94 pontos GRAN ENEMIGO SINGLE VINEYARD GUALTALLARY 2010 El Enemigo, Mendoza, Argentina . Projeto pessoal de Alejandro Vigil, enólogo-chefe da Catena, em conjunto com Adrianna, filha mais nova de Nicolás Catena. Tinto elaborado a partir de uvas 85% Cabernet Franc e 15% Malbec cofermentadas e advindas de um único vinhedo a 1.470 metros de altitude, com estágio de sete meses em foudres. Este vinho foi provado a primeira vez em 2012 e a última no final de 2014 e vem mostrando ótimo amadurecimento na garrafa. Sem dúvida, um grande tinto, que mostra as virtudes da Cabernet Franc em Gualtallary. Mostra fruta de ótima qualidade, tudo envolto por acidez vibrante, taninos de boa textura lembrando giz e final longo e profundo, sem medo de honrar o lado herbáceo e cativante da Cabernet Franc. Constrito, austero e preciso, mas sem desprezar a alegria da fruta fresca. Álcool 13,9%. EM |
92 pontos MALBÓN 2011 Passionate Wine, Mendoza, Argentina. Mais um ótimo vinho de Matias Michelini, elaborado a partir da cofermentação de Malbec (cerca de 50% do blend) e Bonarda, com estágio de 20 meses em barricas de carvalho francês. Estruturado e encorpado, mostra uma fruta mais suculenta, mas sem ser sobremadura. A acidez vibrante e os taninos de grãos finos trazem equilíbrio e certa tensão ao conjunto, tudo bem integrado. Seu final é longo e cheio, com notas herbáceas e de tabaco. Ao primeiro momento parece ser mais simples do que realmente é, mas, com o passar do tempo na taça, vai mostrando várias facetas de aromas e sabores, que convidam sempre a mais um gole. Álcool 14%.EM |
93 pontos TITO ZUCCARDI LA CONSULTA 2011 Familia Zuccardi, La Consulta, Mendoza, Argentina. Atualmente, o talentoso Sebastián Zuccardi, filho de José Alberto, é o responsável por elaborar os vinhos de alta gama da vinícola, inclusive este tinto, que é uma homenagem a seu avô. Elaborado a partir de 68% Malbec – cofermentada com 17% Cabernet Sauvignon – e 15% Ancellotta, com estágio de 12 meses em barris de carvalho novos e usados. Mostra aromas de frutas negras maduras lembrando ameixas e cassis, com notas florais, de especiarias picantes e de alcaçuz, além de toques minerais. No palato, é frutado, cheio, estruturado, tem o álcool bem integrado ao conjunto, acidez refrescante e taninos com textura de giz, que conferem tensão e nervo ao vinho. Está jovem ainda e deve ficar ainda melhor nos próximos cinco anos. Álcool 15,1%. EM |