É definitivo, já fazemos vinhos de qualidade. Agora precisamos decidir como vamos continuar construindo o nosso próprio caminho
Por Eduardo Milan Publicado em 18/08/2014, às 00h00
Para compor a recém-lançada edição 2014/2015 do Guia ADEGA – Vinhos do Brasil, foram degustadas 587 amostras dos mais variados tipos e estilos, comprovando a diversidade dos vinhos produzidos em nosso país. O número de rótulos que nos são enviados vem crescendo todos os anos, o que prova que este Guia, depois de quatro edições, já é uma referência não só para os consumidores, mas também conta com o apoio e a confiança dos produtores.
Longe da pretensão de sermos unanimidade, estamos, ao menos, construindo, ano após ano, uma base de dados sólida e consistente a respeito da qualidade e dos rumos do vinho brasileiro, o que já é muito gratificante.
Desde 2011, quando a primeira edição foi publicada, até esta atual, foram degustados especialmente para o guia mais de 1.800 vinhos brasileiros, o que nos permitiu, no decorrer desses anos, acompanhar detalhadamente o desenvolvimento do vinho em si, assim como os rumos que ele está tomando.
Não conseguimos chegar a outra conclusão que não a de que já temos muitos bons vinhos, uvas de qualidade e enólogos competentes e de gabarito, precisando agora apenas acreditar em nosso potencial real de fazermos muito mais do que um produto de qualidade, mas, sim, vinhos que reflitam um lugar e/ou uma variedade.
Acreditamos que um dos caminhos para chegarmos a isso é valorizar e reconhecer as qualidades naquilo que é diferente dos parâmetros que conhecemos, seja em relação ao nosso gosto pessoal, seja ao mercado.
Analisando sob aspectos gerais e comparativos, apesar de a média geral (veja tabela comparativa) de notas estar ligeiramente mais baixa que a do ano passado – fato talvez relacionado às safras, ao número crescente de amostras e também de produtores –, percebemos claramente, durante as degustações, uma melhora do nível médio de qualidade, no sentido de que cada vez menos vinhos com algum tipo de defeito chegam às nossas taças, o que é um grande progresso.
A evidente vocação brasileira para produção de espumantes, cada vez mais consistentes em termos de qualidade, independentemente do estilo e do método de elaboração, não passou despercebida, haja vista que essa categoria foi a que recebeu o maior número de notas 90, num total de nove, e teve um dos dois melhores vinhos do guia, com 91 pontos. Não podemos nos esquecer ainda dos espumantes de uva Moscatel, cheios de tipicidade e que, na maioria das vezes, oferecem uma ótima relação qualidade/preço, sendo uma opção real para atrair novos consumidores e fazer o papel de porta de entrada para o mundo do vinho.
Porém, o aspecto mais interessante desse trabalho – muito mais do que avaliar os vinhos em si – é notar, através de nossas degustações, os caminhos que o vinho brasileiro vem trilhando nesses últimos anos. Acreditamos que, além de termos a missão de informar nosso leitor sobre que vinhos ele deve tomar, temos um compromisso com o setor de emitir opinião sobre as nossas percepções advindas da elaboração desse guia.
E essa nossa opinião se forma única e exclusivamente através da degustação das amostras, que é feita às cegas. De fato, as únicas informações que nossa equipe de degustadores têm quando provam são a safra e a variedade da uva. Os vinhos são agrupados em flights que levam em consideração seu estilo e suas variedades, justamente para que as degustações sejam comparativas dentro de um padrão. Por exemplo, degustamos todos os Merlot juntos, do mesmo modo acontece com os Chardonnay, e assim por diante.
As maiores surpresas quando desvendamos os rótulos é que muitos dos vinhos que achamos interessantes, agradáveis e, por assim dizer, mais verdadeiros, foram os menos “trabalhados” e, às vezes, menos pretensiosos. Em geral, vinhos mais vibrantes e vivos, que expressam a fruta em sua essência.
Queremos dizer que, como em outras áreas, às vezes, menos é mais. Durante nossas degustações, percebemos que, muitas vezes, aquele que elabora o vinho, no afã de buscar um ideal de qualidade do que considera ser melhor, ou baseando-se em uma ideia que tem sobre como o vinho deve ser, acaba por ofuscar a sua própria qualidade intrínseca. É como se um artista, depois de concluir a obra, resolvesse que ela necessita de alguns retoques, quando, na verdade, já estava pronta.
A impressão é de que, por vezes, há a uma inversão ideológica na construção do vinho. Elabora-se o vinho a partir de uma ideia de como ele deve ser, fazendo-se de tudo para que chegue àquele ideal preconcebido; e não o mais natural e contrário que seria: “Que vinho posso ter a partir dessa uva e desse chão?” e, com esse objetivo, fazer uso de todos os recursos para que ela se expresse através do vinho da melhor forma possível.
Outro ponto que percebemos nesses anos de intensa degustação é o padrão de se espelhar em algum estilo ou tendência que esteja em voga ou tendo algum tipo de reconhecimento. Por exemplo, o fato de alguns produtores terem obtido bons resultados com a Merlot no Vale dos Vinhedos não implica necessariamente que essa uva vá produzir os mesmos resultados em outras regiões vitivinícolas do Brasil, ou mesmo em terroirs diversos no próprio Vale dos Vinhedos.
Já temos muitos bons vinhos, agora é hora de criar produtos que reflitam um lugar e/ou uma variedade
É totalmente natural e justificável, em qualquer esfera, buscar ser igual ao melhor, mas acreditamos que o essencial para o setor vitivinícola brasileiro hoje é não abrir mão de continuar experimentando e testando, exemplo disso é que um dos dois melhores vinhos do Guia neste ano é coincidentemente um Merlot experimental, de pequena produção e elaborado a partir de uvas desidratadas.
O desafio de produzir uvas sãs e de qualidade está superado, mas ainda temos muito a explorar para desenhar um mapa mais rico, amplo e excitante do vinho. O lado bom – aliás, ótimo – de tudo isso é que temos muito a desvendar e liberdade total para experimentar, inclusive, através de intercâmbio e troca mais intensa de experiências entre produtores e enólogos daqui e também de outros países. Com isso, só temos a ganhar, afinal, temos muito a oferecer e a absorver.
Nossas colocações são absolutamente construtivas. Aqui, não queremos dar respostas. Nosso principal objetivo é indicar caminhos para uma reflexão mais profunda desse tema tão fascinante que é o desenvolvimento do vinho brasileiro.